Opinião de Raquel Cortez
Artigo exclusivo do site, publicado em Janeiro de 2025
A pulsação frenética e pesada como a densidade sonora de uma sinfonia qualquer, observa um coração ardente e ansioso que magoa o peito de emoções desesperadas que não conseguem escapar. Tremores, a boca seca e uma respiração tão ofegante como um accelerando infinito e descontrolado. Ela entra perseguida por um único foco de luz pálida que lhe cega os olhos e as palmas ensurdecedoras que lhe acompanham a alma. E agora, uma massa escura de silhuetas sem rostos apresentam-lhe um ultimato: vais ser tu? Ou vais ser quem eu quero que sejas? Será que ainda tens uma opção?
Neste momento quem sou eu? Sou um aglomerado de experiências e ideias pessoais, sou o criador, ou sou simplesmente uma atriz que se anula a si mesma para tomar posse de outra alma? Sabemos que um instrumentista é responsável por reproduzir as obras de diversos compositores, mas será que esta profissão se resume a isto?
Tal como a Autopsicografia de Fernando Pessoa, não é errado deduzir que um músico, “é um fingidor”, e que deve ser conhecedor da existência de três sentimentos que surgem da criação de uma obra, o sentimento do compositor, o sentimento racionalizado deste e o que o músico interpreta da obra.
Se o artista optar por guiar-se pelo que está escrito, restringe-se a seguir ornamentos, dinâmicas e muitos mais detalhes inscritos como mandamentos nas partituras. Estes que são já provenientes de interpretações pessoais do criador. Assim, teria a certeza que estaria “certo” pela Razão, mas não seria mais gratificante criar uma nova interpretação da mesma obra? Onde está essa linha ténue que atormenta os compositores? Essa que separa um instrumentista que respeita a vontade do criador e apenas se fica por perseguir as entranhas de uma obra que explora exaustivamente a parte técnica de algo tão pouco técnico ou um instrumentista que absorve a obra que não é sua, usando o que está escrito para se expressar de uma maneira única. Devemos tomar a música como nossa, ou apenas reproduzirmos o que nos é pedido como se fossemos meras máquinas?
Ao longo da nossa vida, partilhamos um dilema semelhante ao que os instrumentistas confrontam diariamente, quanto da nossa alma devemos colocar nas coisas que fazemos? No fundo, devemos decidir se seremos mais racionais ou mais emocionais. Desde pequenos, as gerações passadas pressionam-nos com a incessante importância do dinheiro. Taxas, impostos e a inflação, coisas que tantos de nós falam, muitos não entendem, mas sabem que diluem os sonhos antigos de criança. Tivemos paixões pelas artes e desportos incentivados pelas mesmas pessoas que agora, dizem que nenhuma dessas áreas é uma carreira promissora. O que realmente importa são as boas notas e um comportamento exemplar, assim será mais fácil conquistarmos carreiras mais “seguras”. E assim, fomos traídos por uma desvalorização destas áreas do saber e enganados sobre a importância desta na nossa sociedade.
E agora, como jovens adultos, a massa escura de silhuetas aumenta a sua magnitude e as suas vozes ficam mais frias. Rendemo-nos então à “pressão social”, como se entregássemos a nossa vida às opiniões e crenças alheias. Felizmente, esta é também a fase em que devemos escolher uma área de trabalho da qual vamos desenvolver para o resto da nossa vida. Ainda temos vestígios de uma infantilidade inevitável dentro de nós, e mesmo assim pedem-nos para decidir algo tão definitivo na nossa vida, criticando e mostrando algum ceticismo sobre a importância de nos pedirem certezas nesta fase em que estamos rodeados de tantas incertezas.
Crescemos, já temos responsabilidades, obrigações e a possibilidade de seguirmos “Esse comboio de corda / Que se chama coração” é uma escolha cada vez mais irreal. Muitos gostariam de perseguir algo que sonhavam em criança, mas contentaram-se pelo caminho mais “seguro”. Tendo em consideração a estrutura inflexível da nossa sociedade, talvez tenha sido a decisão mais sensata. Permitiram que as paixões se transformassem em hobbies que vão sendo esquecidos à medida do tempo, e assim levam uma vida mais comum e semelhante à de tantos outros.
A escolha de carreiras consideradas mais “promissoras”, apesar da frustração sentida devido ao facto de nos impedir de seguir algo que adoramos, é compreensível. Devido a esta rigidez estrutural da sociedade, muitas pessoas decidem deixar os seus sentimentos de lado, para que as gerações futuras não tenham a mínima possibilidade de sofrer por causa da perseguição de um “sonho fantasioso de criança”. No entanto, não podemos negar que, de acordo com a Eurostat, em comparação com a média da União Europeia, Portugal tem menos de um quarto (21,6%) dos trabalhadores satisfeitos com a sua profissão. Este estudo é influenciado por fatores como, contratos a curto prazo, salários baixos e estagnação profissional que mostram uma evidente dificuldade em “ultrapassar” o Sistema e talvez algum conformismo da parte das pessoas.
Novamente, a pulsação frenética, o peito ansioso, os tremores, a boca seca e a respiração ofegante, mas desta vez o silêncio é mais ensurdecedor. Em forma de cadência suspensiva, pergunto-te a ti, figura pequena e só, vais ser tu? Ou vais ser mais uma de tantas sombras?
Rui Reis
4 de Janeiro
Bela reflexão!
Laura
4 de Janeiro
Gostei muito de ler. Um artigo muito bem escrito
Francisco
3 de Janeiro
Que artigo lindo!!