Opinião de Sofia Condez Alves
Artigo exclusivo do site, publicado em Fevereiro de 2025
Dizem que a terra onde nascemos nunca nos abandona, mesmo quando tentamos escapar. De tempos em tempos, voltamos “em passo de bala” (“Para os Braços da Minha Mãe”, Pedro Abrunhosa) com as malas cheias de novas memórias, pela autoestrada acima. Deixamos de ver os prédios e o cinzento citadino, que são substituídos pelo verde e pelas eólicas, o ar respira-se de forma diferente, o silêncio das montanhas é mensurável, passamos o túnel do Marão. Trás-os-Montes, agora mandamos nós.
Miguel Torga chamou-lhe “um reino maravilhoso”, um “nunca acabar de terra grossa, fragosa, bravia”, e nos seus poemas percebemos um lugar onde a rudeza do solo molda o carácter dos que nele permanecem. Aqui, o tempo parece dobrar-se sobre si mesmo, e passa tão devagar que, por vezes, na calada da noite, é possível sentir os nossos próprios órgãos a trabalharem. A verdade é que toda esta calma reflete uma realidade inquietante – nas terras de Trás-os-Montes e Alto Douro, somos muito mais árvores do que pessoas. Isto é, obviamente, normal, estimando-se cerca de 422 árvores por cada pessoa no Planeta Terra, mas serve de um eufemismo necessário para realçar o problema do abandono progressivo do interior português.
Com uma densidade populacional a descer a cada ano, os campos, outrora trabalhados por muitas mãos, vão sendo engolidos de volta pela Natureza. Em 2021, as taxas brutas de natalidade para as sub-regiões de Alto Tâmega, Douro, e Terras de Trás-os-Montes foram, respetivamente, 4.6, 5.5, e 5.1, pertencendo às quatro mais baixas das 25 sub-regiões do país. Para além disso, é a região com os concelhos que apresentam Índices de Envelhecimento mais agravados (Vimioso, Melgaço, Montalegre, e Torre de Moncorvo apresentaram todos números acima de 500 nos Censos de 2021), que compara a quantidade de indivíduos residentes acima de 65 anos com a de jovens até 14 anos.
“Este desequilíbrio demográfico contribui para um crescimento populacional negativo, que intensifica a sensação de abandono que permeia Trás-os-Montes.”
A razão para que isto esteja a acontecer há uns anos é clara: o interior já não é apelativo para muitos jovens. Crescemos a sonhar com horizontes mais amplos, oportunidades que nos escapam nesta terra onde o tempo corre devagar. Fugimos. Sabemos que há algo mais para além das montanhas, algo maior do que os vales que nos viram crescer. Partimos, então, para cidades vibrantes, maiores, mais cheias, onde o ruído do frenesim urbano nos distrai daquilo que deixamos para trás. Apesar dos grandes esforços desta região para se modernizar, das duas universidades públicas que possui (a UTAD e o IPB), das suas inúmeras iniciativas culturais e económicas, falha em ser suficiente para segurar os sonhos de quem, desde cedo, aprendeu a olhar para fora.
Ainda assim, entre os prédios mais altos e as multidões mais barulhentas, há sempre um vazio que as luzes não preenchem – o cheiro das manhãs frias, uma visão longínqua das montanhas, uma promessa de regressar. A cidade acaba por ser um substituto barato do que já tínhamos, porque, por mais que tentemos reinventar-nos longe, o sabor do norte que nos viu crescer permanece entranhado nos nossos corpos. Por mais estranho que seja, o que mais aviva a nossa memória é precisamente a comida – o pastel de chaves que nunca consegue saber tão bem, aquelas alheiras na cantina da faculdade que são apenas fantasmas da autenticidade das de Mirandela, o cheiro do fumo dos carros que por um leve, mesmo leve momento nos leva de volta à casa dos avós, com o fumeiro pendurado no teto.
A gastronomia transmontana é robusta e autêntica, como uma extensão da sua gente. São pratos intensos e pesados, carregados de séculos de tradição e de resistência. O cozido, a feijoada, a sopa de castanhas, o folar de Valpaços, o vinho dos mortos, as cristas de galo – cada prato é uma história, uma ligação ao passado que nunca se rompe. Comer, por aqui, não é apenas uma necessidade, mas um verdadeiro ritual de convivência e de celebração do que a terra tem para oferecer.
“Há quem parta e nunca olhe para trás, há quem volte, há quem fique, mas há, sobretudo, aqueles que acabam suspensos entre dois mundos, presos entre o sentimento de “casa” e a necessidade de ir. “
A escolha entre agarrar uma nova oportunidade e viver com a saudade, ou ficar e carregar a sensação de que ficou algo por fazer é uma constante para os habitantes do interior de um país que é “só Lisboa e Porto e o resto é paisagem”. De facto, Trás-os-Montes e Alto Douro registaram dois dos maiores picos migratórios da história portuguesa – o primeiro na década de 1960, e o segundo após a crise financeira de 2010. Nos últimos 60 anos, a região perdeu quase metade da sua população, passando de cerca de 700 mil habitantes para menos de 400 mil.
No verão, as ruas enchem-se de emigrantes que regressam temporariamente. Ouvimos um português afrancesado nas esplanadas, que conta as histórias que nós perdemos por ficar, e repetem-se as mesmas palavras todos os anos – “estamos a pensar em voltar de vez”. As saudades apertam, mas o regresso definitivo raramente acontece. Diz-se que a maldição do emigrante é passar a ser um estrangeiro fora e cá, sem nunca ser inteiramente de lado nenhum. O tempo transforma a terra natal numa memória, distorcida pela distância e pelo passar dos anos e, ao regressar, encontram as mesmas ruas e as mesmas paisagens, mas já não lhes pertencem da mesma forma. Os rostos envelheceram, os cafés mudaram de nome, as casas foram repintadas, e veem-se eternamente à procura de um lar que talvez já só exista dentro deles.
Em Trás-os-Montes aprendemos que “a vida é feita de nadas; de grandes serras paradas à espera de movimento” (“Bucólica”, Miguel Torga), e há algo assombroso na necessidade de partir e na impossibilidade de verdadeiramente regressar. Sente-se um peso invisível nas badaladas dos sinos das igrejas, na poeira das aldeias quase vazias, nas ruínas humanas, no nevoeiro das manhãs de inverno. É uma presença densa, praticamente tangível, um quase-monstro que assusta os de fora, mas que prende os transmontanos à terra com toda a força. Em Lisboa chamariam “saudade” a tal criatura, mas o que se esconde por Trás-os-Montes fica assim, sem nome, persistindo com o medo de o abandonarmos como as gerações passadas.
Continuar-se-á, então, a falar da natureza, da “dureza das pedras”, da “frescura das fontes”, e do “perfume das flores”, e de tudo o que Trás-os-Montes sempre “carregou” (“Carregou”, Miguel Torga).
Francisco
7 de Fevereiro
Um fantástico e importantíssimo artigo! parabéns!!
Raquel Cortez
7 de Fevereiro
Lindo artigo!
Ana Fernandes
7 de Fevereiro
Trás-os-Montes, que bela terra e que bela adoração neste artigo.