Conduzida por Francisco Carneiro e Lara Almeida
Também incluída no FEPIANO 35, publicado em Outubro de 2018
Marta Bateira é uma mulher na casa dos 30, que dá vida à tão conhecida personagem do YouTube Beatriz Gosta, uma personagem fictícia, que relata as suas aventuras de forma humorística e sem filtros. A Beatriz Gosta a única criação da Marta Bateira. Também dá vida a outros heterónimos, como a M7, rapper portuguesa, entre outros. Já foi repórter do 5 Para a Meia Noite e neste momento está a trabalhar num novo projeto surpresa.
A nossa primeira pergunta é: como é que surgiu a Beatriz Gosta?
Eu já contei, mas volto a contar. Em todas as entrevistas chuto essa e vou chutar mais uma vez. Já lá vão três anos. Eu já tinha este meu jeitinho extrovertido de estar com os meus amigos numa roda, numa mesa de jantar, num convívio maroto, e de ser uma contadora de histórias que não deixava ninguém dormir. O pessoal ficava antenado. Tirei o curso de Design de Moda e estava a trabalhar numa fábrica, em Paredes.
Estava feliz com o que eu fazia, inclusive com a entidade patronal, mas andava exaurida porque acordava às 6, para apanhar o comboio das 7 e entrar no trabalho às 8. A minha veia criativa estava a precisar de dar um pontapé na porta, todos os meus amigos sabiam disso. Nos fins de semana apanhava umas mocas muito tolas, mas à semana era só trabalho, trabalho, trabalho. Meio que não estava a dar. A minha amiga Capicua virou-se para mim e disse “tu tens jeito para contares histórias para o mundo, já visualizo!” Ela estava a ler a biografia da Beatriz Costa, atriz dos anos 20, que tem o cabelo todo pipipi, muito popularucha como eu.
No tempo dos intelectuais, ela dava-se com eles, mas não era intelectual. Como viveu muitos anos no Brasil, falava gíria brasileira só porque sim. A Capicua achou que tínhamos parecenças e eu concordei. Ficou Beatriz Gosta por causa do mundo da internet, por causa dos likes e porque o povo gosta. De repente, Vasco Mendes e André Tentugal já gravavam videoclipes para vários artistas, incluindo para a Capicua.
O André Tentugal apanhou logo este projeto de raíz, visualizou sucesso nisto. O Vasco, mais tímido, numa onda mais indie, mas sempre presente, artístico, juntou-se ao Vítor Ferreira e o projeto surgiu. Logo no primeiro episódio, Pack Night, não fui mal interpretada. O pessoal quer um toque de intervenção, um toque de feminismo, um toque de porra louca. Pontapé na porta, mulher de 2020. Aceitem que dói menos.
Há várias pessoas que não sabem que és muito mais que a Beatriz Gosta. Podes falar-nos desse teu heterónimo e de outros heterónimos teus?
O pessoal ficou triste porque ao início, pensou “ah, ela é mesmo assim, também posso ser assim, não é? Ela é, então não sou só eu!”. Mas quando descobriram que o meu verdadeiro nome é Marta Bateira, ficaram a achar que as histórias eram mentiras, que a Beatriz Gosta não era uma pessoa, que estava a inventar. Pensaram “isto é tudo ficção, sou a única pessoa louca do mundo”. Não, gente. Eu estou convosco. Eu sou louca mesmo também.
Acho que toda a gente tem heterónimos. Sinceramente, a mesma pessoa que vai para a escola e que está com o namorado ou namorada não é a mesma pessoa que está com os pais e vai conhecer os sogros, não é a mesma pessoa que está na noite. Há é pessoas que exploram mais, umas que limam mais essas arestas, outras menos. Há umas que extravasam muito mais. Já no rap, eu não sou Marta. Como M7, quando estou no palco pareço uma pitbull, pequenina, mas que faz muito barulho. Estou de bazuca, com a adrenalina ao máximo. Vivo muito o rap. Mas se vir o meu pai a ver um concerto, já não me vou sentir bem, porque essa já não sou eu, Marta, que ele conhece. Beatriz Gosta é igual.
Vocês não vão acreditar, mas eu prefiro que ninguém perto de mim veja nada meu. Prefiro que os meus amigos vejam longe de mim. Sou muito tímida com o meu trabalho e muito reservada. Extravaso na altura, mas depois mando para o mundo e fica do mundo. É como a música. Fazes a música e ela deixa de ser tua. Não fico agarrada a ver-me. No 5 Para a Meia Noite só me vejo para limar arestas e ver onde posso fazer melhor, porque por mim eu não via. Sofro muito. Esquadrão do amor? Não via. Sofro muito a ver-me.
Por exemplo, à noite, sou Isabel. É quando extravaso mais. No fundo, sou uma pessoa comunicativa, mas se tiver de estar tipo bicho do mato na minha, também estou. Adoro estar sozinha, vou de um extremo ao outro. E tenho muitos mais heterónimos. Toda a gente tem.
Qual é a principal diferença entre a Marta Bateira e a Beatriz Gosta?
Eu não estou sempre a bater no vermelho. Hello! Gente! Às vezes estou triste, às vezes estou em baixo. A Beatriz Gosta está sempre lá em cima. Está sempre observadora e muito atenta. A Beatriz gosta é a contadora de histórias. Se calhar a Isabel é que vive, a Beatriz Gosta conta. A Marta sou eu. Na tristeza e na alegria.
Sobre a igualdade de géneros. Estudamos Gestão e temos cadeiras como Comportamento Organizacional onde aprendemos a liderar. Quando se pensa em líder, muitos pensam logo no homem. Sentes que Portugal é conservador nesse aspeto?
Na teoria, não. O pessoal vai dizer que as mulheres já estão em muitos cargos de liderança, que é uma histeria vitimizarem-se e fazerem-se de coitadas. Mas na prática, é mais difícil uma mulher estar no poder, por vários motivos. Se um homem se impõe, é curto e grosso. Se uma mulher se impõe, dizem que está no TPM ou de mau humor. Ou com problemas em casa, ou que é mal amada. E isso ainda está muito enraizado. Sabes? Um homem quando é assertivo, está a arrasar. Quando é uma mulher, é malvista.
A mulher não é igual nesse ponto e em outros 1500. Contudo, vamos traçando caminho. Não sou pessoa de me queixar muito, prefiro pegar e fazer. Sou aquela pessoa que se impõe. Se acham que eu sou louca, não quero saber. Não tento agradar a toda a gente, não vale a pena. Se a mulher se focar no que quer, não há quem a pare. Se a mulher quiser, ela consegue. A mulher é competente. A entrega é que define se és bom profissional ou não.
Ter filhos é visto como um entrave para a carreia profissional?
Vivemos no mundo do empreendedorismo e no tempo do “temos de viver para a carreira”. As mulheres por vezes não têm tanto tempo, porque têm filhos, porque têm uma casa para cuidar, porque não podem dar tantas horas extras como o homem. Mas temos o exemplo da Blaya! Ela definiu o modelo de família que pode inspirar muita gente, ou seja: o homem, a maior parte do tempo, toma conta da filha e vai com ela por todos os espetáculos da turnê.
É um modelo de família que muita gente ainda julga e olha de lado, mas é um modelo muito atual e que pode servir de inspiração. Se ele quer, porque não? Eu sou feminista para os dois lados. Se fosse uma mulher a dizer “eu quero estar com os filhos”, era legítimo. Com o homem, igual. O que eu quero é a opção. Isso é que tem de estar em cima da mesa! A obrigação é que estraga o esquema todo. A mulher não tem de servir o homem quando ele chega a casa. Que eu saiba, ele tem mãos.
Para ti, o que é que ainda falta mudar?
Muita coisa. Eu sou de artes e paro nos Maus Hábitos, onde nós estamos agora. Estou rodeada de pessoas tranquilas e estou num condomínio fechado num sentido em que as pessoas que me rodeiam são de mente mais aberta. Mas quando eu saio, sinto diferença. Sinto preconceito. No entanto, até eu tenho de me policiar a mim própria. A sociedade ainda não está muito consciencializada e de vez em quando ainda sai uma coisa muito machista. Não vou estar a queimar na fogueira da praça pública uma pessoa que hoje está machista, porque isso não quer dizer que ela vá ser a vida inteira. As pessoas podem mudar. As pessoas podem questionar-se e ver o mundo de maneira diferente. Não vamos ao extremo. Calma. Ultimamente, há uma histeria desgraçada! Então no Facebook, que é uma rede muito odiosa, o pessoal que é feminista há dois dias queima logo a pessoa. “Já viram?!” Ficam todos indignados, focados naquilo, em vez de tentar mudar a pessoa. Preferem o foco em cima deles do que propriamente arregaçar as mangas e fazer algo. Menos protagonismo e menos carência, sim gente?
Consideras que o típico português ainda acha indecente dois rapazes andarem de mão dada na rua, mas vê como sonho de qualquer homem estar com duas raparigas ao mesmo tempo?
Óbvio. Sem dúvida. O homem ainda vê duas raparigas e pensa “amigas, estou aqui! Querem ajuda? Eu faço-vos o jeito”. Acha que tem” a ferramenta que falta para elas terem o prazer máximo”. Ainda há muito disso. Ainda há muita homofobia, apesar de ter melhorado muito. Os jovens têm ajudado imenso a mudar! Antigamente, havia gays na família e ninguém dizia nada.
A pessoa era “solteirona”, ninguém falava sobre isso. Hoje, as novas gerações não têm tanto medo de mostrar amor em público. Mas na rua, as coisas ainda não mudaram. É importante falar sobre tudo para quebrar o tabu. Sobre tudo, não só sobre este tema. Sobre sexualidade. Inclusive entre família e relações.
Qual é a tua opinião sobre existirem empresas que descartam automaticamente currículos que de pessoas que tenham tatuagens?
Meu deus, isso ainda existe! Descobri no outro dia que na TAP não podes mesmo ter nenhuma, nem uma pequenina. Acho que é muito anos 80! Esquece. Tatuagens? Eu sofro muito preconceito com as minhas tatuagens. Na rua, não ligo, porque me esqueço delas.
Uma pessoa com tatuagens esquece-se que as tem. Acordas e no espelho reparas é nas olheiras. Mas depois, quando conheces o teu sogro ou vais a uma entrevista de trabalho, sou sincera: vou de manga longa. Só sabem das minhas tatuagens depois de eu lhes provar o meu valor. Já estiveram 40 graus e eu de casaco de malha fina até à manga.
Até mesmo em design de moda continua a haver preconceito. Se estiverem indecisos entre duas pessoas, escolhem a que não tem tatuagens, “a pensar no cliente”. No recrutamento, eu fui tapada. Contrataram-me, porque provei que valia a pena me escolherem. Apareci lá de camisa sem mangas e foi um escândalo. Vais conhecer um sogro e ele cola nas pernas, fica incomodadíssimo. Isso incomoda-me. Incomoda-me alguém que te julga mesmo antes do tempo. Já tive uma sogra assim…
Na rua ou no autocarro não me importo, não quero saber o que pensam de mim. Mas quando isso vem de alguém mais próximo, confesso que me magoa. Quando queres agradar, isso deixa-te em baixo. Sou uma rapariga altamente, com personalidade, pratico o bem e trabalho para ir para o céu. Porque é que isto é mais importante e se sobrepõe ao que eu mostro? Fico muito em baixo. Mas pronto. A gente chora um pouco e ergue-se.
Falando do mercado online, a Kim Kardashian há pouco tempo vendeu 3 perfumes e fez 5 milhões de dólares em 5 minutos. A Kylie Jenner tornou-se a mais recente jovem bilionária. Quando ela deixou de usar o Snapchat, a companhia perdeu 1.3 bilhões em ações. Sentes que o futuro da economia passa pelo digital?
Passa mesmo e as Kardashian são pioneiras nisso. É puro negócio e dá muito dinheiro. A área do reality show é um pouco do que acontece nas redes sociais: pegares na tua vida e mostrares ao mundo. Quase que já nem faz sentido os paparazzi andarem atrás de ti. Quer dizer, por acaso faz, porque tu metes nas redes sociais só a parte bela e estás sempre muito incrível, mostras uma vida mega interessante, vais aos melhores sítios.
Tens um bom namorado, uma relação incrível, amor todos os dias. Vais a ver e são só mentiras. Mas o povo quer saber, nem que seja tudo uma mentira. As pessoas querem algo para ver e acreditar. Essa exposição gera negócio, como os cosméticos e os perfumes. Tudo vende, nos dias de hoje.
Sentes que as empresas vão começar a tentar marcar a sua presença digital?
Sim, porque tudo faz dinheiro. Por exemplo, um cancro em ti. Até isso conseguem rentabilizar. Apontam-te a câmara, fazem um vídeo, filmam, até focam na lágrima que escorre na cara. Muitas marcas vão te ligar porque querem trabalhar contigo e tu com cancro, chorando. Tens uns filhos insurretos em casa? Vamos ganhar dinheiro com isso. Em vez de pensares “vou ter de educar os meus filhos, estou em pânico, quero direcioná-los para a vida”, pensam “como é que vou fazer dinheiro disto?”.
Os americanos são experientes nisso. Kardashian? Pegaram na fita porno que vazou e pensaram “se alguém vai ganhar dinheiro com isto somos nós! Bum!” Pegas numa cena que vazou para o mundo e assumes o que aconteceu de tal ordem que vira virtude. És tu que ficas rico, és tu que és esperto. O reality show delas veio a seguir. Depois ela moldou o corpo artificial, que nem é igual ao do início, mas que agora está na moda e toda a gente imita. E há tantas Kardashians que metem lábios falsos e imensa maquilhagem por este mundo fora! Colocam as injeções no rabo, afinam aquela cinta.
O modelo geral saiu da magreza para aquilo. Mas aquilo não é natural, nem saudável. Mas eu não sou ressabiada! Isto tem a sua visão. Devemos observar e aprender, não sou hater para dizer que o mundo está perdido, nem para cortar os pulsos. Temos de andar para a frente. Eu, pessoalmente, filtro. Escolho o que é saudável para mim e para os meus. Já agora, não vou para as redes sociais mandar indiretas. Não vou para as redes sociais quando estou mal.
Acho que devem retirar o telemóvel a quem está mal, porque tu notas logo. A pessoa está sem amigos na solidão intensa? Tu notas. Ela está carente a precisar de likes para se sentir bonita? Tu notas. Isto acaba por ser um espelho do nosso estado de espírito.
Como é saber que a tua existência tem influência na vida de pessoas que estão do outro lado do ecrã?
Sou influenciadora? Não, não sou. Nem mãe sou, ainda. Mas é claro que eu, que não quero desiludir a minha família e os meus amigos, tento ser uma pessoa melhor e fiel aos meus princípios e valores. Logo aí, fico em paz com o que eu faço. Eu filtro muita coisa, não faço publicidade de coisas que não gosto ou não acredito. Só divulgo aquilo que experimentei e gostei, assino em baixo. Não faço publicidade banal.
Uma dieta de nove dias a líquidos? Não. Os jovens veem e quando dás conta estás a estimular anorexia e a passar a ideia superficial que a imagem é tudo, quando não é. Podes ser incrivelmente belo e determinadas portas vão-se abrir. Se és feio, outras portas vão-se abrir. Escolhe o teu caminho, há portas para todos. A beleza não é tudo. Já comi gente feia muito apetitosa e muito interessante.
Posso dizer que tenho muito mais prazer a bater papo, a jantar e a beber do que com uma pessoa real do que com uma de pele perfeita, olho lindo e corpo espetacular. Mas também há o melhor dos dois mundos! Só acho que deve haver um equilibro. Tudo cai. A velhice leva tudo. E depois como é? Faz-se plásticas? Depois não há dinheiro. Fazem-se plásticas baratas e parecem disformes.
Por fim, ultimamente é tendência grandes marcas apostarem em influenciadores no que diz respeito a estratégias de marketing. Recebes muitas propostas para divulgares produtos?
Começo a receber agora. Passado tantos anos é que se lembraram. Sabes porquê? Porque Portugal ainda está atrasado em relação a tudo. Antes pensavam “Beatriz Gosta? Não, não a quero associada à minha empresa, ela é louca desbocada!”.
Agora percebem que eu não sou tão louca assim, que o mundo está mais mente aberta e que se calhar, falem bem ou falem mal, falar dá que falar. Nos EUA e no Brasil, já me teriam contactado para 1500 cenas. Aqui não. Adoram o meu trabalho, até assistem a todos os meus episódios! Mas trabalhar comigo? Não. Agora sinto que isso está a mudar.
Acreditam mais em mim, sabem que eu me posso dosear. Um ponto que quero deixar claro é que só faço publicidade ao que acredito. Por exemplo, estou na Prozis, mas não é para o biquíni. É para os 36! Cai tudo. E eu sou grossa, gosto de comer imenso. Um cozido? Caio de boca! Mas para poder comer, tenho de treinar três vezes por semana. Se eu uso estes produtos, porque não divulgar e assinar em baixo? Só faço aquilo em que acredito. A minha rede social não é falsa nesse sentido.
A verdade é que há muita falsa propaganda. Não julgo quem o faça, mas não é para mim. Prefiro ser mais pobre do que me vender assim desse jeito. Um dia, de tanto que se vendem, vão olhar- -se ao espelho e não saber quem são.