Conduzida por Gonçalo Sobral Martins e José Guilherme Sousa
Também incluída no FEPIANO 6, publicado em Dezembro de 2013
Numa altura em que nos aproximamos do Natal, impõe-se falar na família e nos amigos em que investiu ao longo dos seus 79 anos. Qual a importância que lhes atribui?
A família é o núcleo fundamental da nossa felicidade. No entanto, esta não é composta apenas pelos consanguíneos – costumo dizer que a família são as pessoas que nós escolhemos, até porque um elemento crucial da nossa família é a esposa – mãe dos filhos e avó dos netos. Portanto, a afectividade conta muito mais do que a consanguinidade. No Natal, convencionalmente, as pessoas aproximam-se e têm um comportamento mais fraterno. Ainda assim, na minha opinião, o Natal deveria ser o dia em que andávamos todos à pancada e, assim, o amor, a compaixão e a solidariedade ficavam reservados para os restantes dias. E parece-me viável tornar universalmente aceite sermos maus apenas uma vez por ano. O Homem não passa fome apenas na quadra natalícia!
Como é viver uma vida lado a lado com a morte e o que representa para si o morto?
O filósofo Bertrand Russel dizia que só tinha medo da morte quem não vivia bem a vida. Portanto, quem temer a morte deve fazer um balanço existencial para perceber o que tem de mudar, porque o Homem muda desde o nascimento até à morte. A personalidade adquire-se por lei com o nascimento, com vida, mas até na barriga da mãe já há qualquer coisa que vai determinar aquilo que nós haveremos de ser. Nós somos 30% de genética e os outros 70% dependem do ambiente, da aprendizagem e da interacção com a natureza.
Nunca idealizou uma vida afastada das salas de aula, das conferências e dos hospitais, depois de estar reformado?
Eu fiz aquilo que toda a gente deve fazer – não se reformar! Quanto mais motivarmos o cérebro mais tarde morreremos, porque, se mantivermos a actividade cerebral, o cérebro não nos deixa morrer. Eu costumo dizer que tenho uma vida tão ocupada que não tenho tempo para morrer. A minha agenda para 2014 já está muito preenchida. Nesta idade, continua a haver margem para definir objectivos a longo prazo. As pessoas com pouca literacia devem, pelo menos, fazer todos os dias as palavras cruzadas e as que tiverem mais conhecimento partir para um sudoku diário, para preservar as células cerebrais.
E o que diria àqueles que o acusam de estar a ocupar o lugar de um jovem especialista na sua área?
Eu não estou a ocupar o lugar de ninguém. Esta competição é muito saudável. Não devemos privilegiar um jovem apenas porque é jovem. Ao jovem falta uma coisa que é importante – a experiência. E como o que interessa é a eficiência intelectual e não a inteligência, essa eficiência consegue-se com a inteligência e com a experiência. Admito que os jovens sejam muito mais inteligentes do que eu, mas eu tenho muita mais experiência do que eles.
Quais seriam os resultados se autopsiasse, neste momento, Portugal?
Os cadáveres são todos diferentes. Mas todos são passíveis de ser autopsiados! Comecemos, então, pela cabeça, que, ao que me parece, funciona muito mal; o pescoço, não sei, mas, pelo menos, anda tudo sem gravata; continuando, olhando para o tórax, não estamos a respirar muito bem e o coração em termos afectivos também não pulsa de um modo conveniente. O suicídio e o homicídio estão a aumentar em flecha. Há uns anos, referia-se que Portugal era o único país em que, quando havia perturbações socioeconómicas, não havia aumento de suicídios. Agora, já foi demonstrado que não somos essa excepção! Em relação à criminalidade, somos um país com poucos crimes, porque até que alguém seja julgado somos todos inocentes. E a verdade é que a nossa justiça não funciona! Eu entendo que há uma evolução cíclica. O século XX destinou-se a desfazer um grande tabu, o tabu do sexo, mas criou-se um outro, enorme, que se prende com o facto de o sexo ter deixado de ser tabu. O século actual é o século da morte… e o próximo será o século que encaminhará a humanidade para um equilíbrio e será o século do amor. Aquilo que Cristo disse e falhou há dois mil anos vai-se reflectir somente nesse período. Haverá uma homogenia, as pessoas deixarão a sua religião, porque essa não presta para nada. A religião actual é a do nosso “Senhor Dinheiro”! E tudo joga nesta espiritualidade máxima perversa a que todos nos subjugamos. Tudo tem que mudar… A Ciência altera-se em 30% de cinco em cinco anos e, ao que vejo, vamos ter que esperar cem anos por esse século que será uma maravilha.
Quais os valores que tentou incutir aos seus filhos e alunos durante todos estes anos?
Lutei, sobretudo, pela defesa da verdade. Um indivíduo deve defender aquilo em que acredita! Quaisquer previsões que façamos agora, enquanto pais ou professores, podem falhar porque o conceito ético poderá ser outro daqui a vinte anos. Em pedagogia, uma única coisa é sagrada – ensinar a pessoa a resolver problemas! O conhecimento evolui de tal forma rápida que não temos tempo de o assimilar, portanto só essa capacidade de nos adaptarmos e de resolver os problemas que nos surgem parecem responder às necessidades que qualquer filho e aluno encontrarão ao longo da sua existência.
Que comparação faz entre o ensino e o estudante do privado e do público?
Trata-se de uma divisão puramente artificial. O professor só ensina quando o aluno aprende! Se um professor é ignorante ou fica nervoso perante uma sala cheia (sendo um grande especialista), não vai conseguir fazer com que o aluno aprenda. Se tiver que lhe bater para aprender, ou se tiver que lhe oferecer chocolates, que assim seja. Tudo o que não seja aprender é secundário. Mas o professor apenas tem que disponibilizar ferramentas, porque é o aluno que tem de aprender e, depois, usar o que aprende de acordo com os seus interesses. O resto é retórica, conversa que não interessa para nada!
Que casos mediáticos é que já lhe passaram pelas mãos e qual a autópsia que mais o marcou?
Esta é a resposta que costumo dar: as mais significativas não posso falar delas! Houve alguns casos que me marcaram, mas uma das autópsias mais marcantes foi uma que não fiz. Tratava-se de uma aluna muito boa que morreu de desastre automóvel. Recusei-me a vê-la porque queria que permanecesse uma boa imagem dela, na minha cabeça. Isto para dizer que não somos carniceiros e que temos a nossa afectividade.
É conhecedor da história de vida de cada cadáver que vem parar às suas mãos?
Isso faz parte do processo, não é ignorável. A autópsia médico-legal é constituída por quatro partes: informação, ou seja, todo o historial relativo àquela pessoa; exame do local – onde está e esteve o morto; análise do cadáver e, finalmente, os exames complementares. Não me parece, portanto, que, sendo feito um trabalho exaustivo, haja margem para haver autópsias inconclusivas.
Como reage a momentos de queda e o que faz para se reerguer?
Eu dou a volta! Sou uma pessoa linearmente optimista. Jogo sempre na garrafa meio cheia, ao contrário de alguns que se lamentam por só já terem meia garrafa. Consigo ver sempre o lado positivo das coisas. Costumo dizer que até o maior criminoso tem o seu lado positivo e uma justificação “válida” para cometer aquele crime.
Considera que uma pessoa mais culta tem um acesso mais facilitado à felicidade? Aprende-se, também, a ser feliz?
A felicidade é relativa. Está relacionada com processos bioquímicos denominados por “via de recompensa”. Nós podemos ser felizes fazendo o mal! O serial killer tem fome de matar e fica feliz quando mata. Mas uma morte traz-lhe felicidade durante pouco tempo e tem necessariamente de continuar a matar até que veja extinto esse plano biopsicológico que lhe fornece felicidade. O ser humano dispõe de cem mil milhões de neurónios e bastaria que estes funcionassem bem para que fôssemos felizes. Creio que esse número avultado de neurónios é insuficiente! Chegava, sim, para o Homem das cavernas, que apenas tinha de decidir se o cajado que ia levar consigo era mais curto ou comprido, ou se levaria ou não setas para a caça.
O que é que fascina um aluno que escolhe Medicina Legal como especialização?
Actualmente, a maior predilecção é devida a uma série televisiva: o CSI. Na verdade, as pessoas não sabem bem o que é o CSI e ficam apaixonadas. Toda a gente gosta do CSI e da investigação que lhe está inerente. Para além do mais, há um certo fascínio humano pelo crime. Prova disso é o facto de estarmos entusiasmadíssimos sempre que o televisor está ligado a dar uma série de crimes. Se puserem a Branca de Neve, dizemos logo: «Tira lá isso!». É natural, é o comportamento humano. Digamos que é a aprendizagem que nós tivemos. O que é que os pais dão, agora, aos filhos? Dão metralhadoras de plástico, uns animais horrorosos… tudo a incitar à violência. Não dão o rato Mickey. Aliás, o rato Mickey até está a mudar o seu aspecto, porque se vendia pouco. É preciso incutir-lhe um ar violento. Presumo que seria um sucesso pôr o rato Mickey a violar a Minnie. Tornar-se-ia um êxito de vendas.
Qual foi, então, o seu CSI?
Até certo ponto, duas explicações. A primeira o facto de sempre me terem interessado imenso os problemas sociais e a medicina legal tem evidentemente um pendor social. A segunda razão deveu-se a uma casualidade. Quando era estudante, havia a tradição do professor de uma determinada cadeira convidar um aluno para seu assistente. Como tinha sido um bom aluno, o meu professor de Medicina Legal, que eu não conhecia fora do âmbito de professor, convidou-me para seu assistente. Fiquei muito admirado, não estava nada à espera do convite. No entanto, como sempre cultivei o travesseiro, dormi sobre o assunto. Lembro-me, também, de ter falado com a minha mãe e de ela ter comentado: «Que coisa esquisita!». Porém, ela sempre respeitou a vontade dos filhos e sugeriu que seguisse aquilo que mais quisesse e gostasse. E assim foi: encontrei-me com o professor e aceitei o convite.
Classifica esse seu “mundo” apaixonante?
Hoje em dia, tudo está complicado para todas as profissões e licenciaturas. Actualmente, não sei quais as garantias, em termos de mercado de trabalho, que um indivíduo que queira dedicar-se à Medicina Legal terá. Isto não quer dizer que este mundo deixe de ser apaixonante, mas temo que essa paixão seja diminuída por não encontrar ocupação profissional, já que um médico-legista tem que funcionar nos quadros de Medicina Legal e a parte privada, apesar de possível, não tem vazão.
Qual foi a reacção à sua primeira autópsia?
Não houve essa reacção, porque estive um ano a estagiar antes de a ter realizado. Nesse estágio, ia observando os outros a fazerem as suas autópsias, de forma que o aspecto emocional foi mínimo ao ter metido a faca num cadáver.
Não houve aquela surpresa porque já sabia o que havia de fazer. Em termos clubísticos, há sangue azul aí dentro?
A minha família foi sempre do Futebol Clube do Porto e eu não degenero. Sempre tivemos dirigentes desportivos no F.C.P. – um dos meus tios paternos foi, há muitos anos, director do F.C.P., um dos meus tios maternos também teve relevância no futebol e assim sucessivamente.
Como vê agora o seu irmão, Jorge Nuno, actual presidente do Futebol Clube do Porto? Admira-o?
Admiro uma vez que ele se entregou a esse ramo. Eu privilegio imenso a liberdade das pessoas. Desde o momento que uma pessoa faça, seja o que for, conscientemente, julgo que pode fazer as asneiras que quiser. Tem é de o fazer por opção e com responsabilidade, depois de saber escolher. Sem informação não há conhecimento e sem conhecimento não há liberdade e nós só podemos distinguir entre “A” e “B”, em escolha, se soubermos distinguir inequivocamente o que é o “A” e o que é o “B”. Portanto, ele fez a sua escolha. Pois fez muito bem, era isso que ele queria. Eu fiz a minha escolha. Pois fiz muito bem, era aquilo que eu pretendia. Ele nunca compreendeu que eu dedicasse a minha vida a este ramo e que andasse a “aturar” alunos sem ganhar nada – como é o vosso caso. Ele acha isso um pouco estranho… Já para mim isso é perfeitamente normal.
O que o move e comove?
Ora bem… Todo o prazer e o sofrimento do próximo emocionam-me. Graças à carapaça que vamos concebendo com o avançar da vida, posso dizer que em termos afectivos e emocionais o abalo da maioria das situações não é assim tão preponderante. Ainda assim, estas duas coisas comovem-me nesse sentido de me “co-mover”. Por exemplo, quando um par de namorados está in love eu fico comovido, mas se um par de namorados está a bater um no outro fico emocionalmente insatisfeito. Julgo que o Homem é o animal mais curioso que existe à superfície da Terra.
O que vale, realmente, a pena nesta vida?
Todos os dias, de manhã, quando acordo, a primeira coisa que faço é mexer os dedos das mãos e dos pés. Aí digo: «Ai que bom, estou vivo!». A vida não tem qualificação nem tem preço. O facto de viver já é um valor existencial. O que nós temos é de desfrutar de todas as possibilidades que a vida nos proporciona. Para mim, o prazer existencial é o que, realmente, vale a pena nesta vida. Sou feliz desde que respire. Atrevo-me, até, a dizer que nunca trabalhei na vida. Tudo o que fiz foi com prazer e fi-lo pelo prazer e não para obter meios de subsistência, que depois advinham secundariamente.
Qual a sua maior qualidade e o seu maior defeito?
O meu principal defeito sabem qual é? É não saber dizer não. Quando vocês me telefonaram eu disse, logo, que sim, mesmo sabendo que teria complicações de vir a correr de Braga para o Porto. Isso causa- -me, às vezes, alguma confusão, já que o dia só tem 24 horas e eu digo sim a tudo. Em todo o caso, é muito importante na vida saber empregar a palavra não. A educação dos nossos jovens talvez fosse melhor se os pais soubessem dizer não. Quanto à minha maior qualidade, talvez seja a inexistência de egoísmo em compartilhar o meu conhecimento. Sempre tive prazer em transmitir aos outros aquilo que vou sabendo e descobrindo.
Permita-nos uma comparação entre o seu tempo de estudante e o nosso…
Os dois tempos são muito diferentes. Na minha altura de estudante, todos os dias ia tomar um café ao Piolho. Para mim, era um ritual normal. Durante três anos, fui para África e a última coisa que fiz, aqui no Porto, foi tomar um café no Piolho. Quando regressei, a primeira coisa que ia fazer era tomar um café nesse célebre estabelecimento. O Piolho era, até 1963, tradicionalmente frequentado só por homens. Quando queríamos namoriscar umas colegas, tínhamos de ir para a Primar. As meninas não entravam no café Piolho. Em 1966, quando regressei do continente africano, ia retornar aos meus costumes e não cheguei a entrar no café, dado que não percebi se eram as meninas que estavam sentadas ao colo dos meninos, se eram os meninos que se sentavam ao colo delas. Como aquilo era um panorama perfeitamente insólito, a minha reacção espontânea foi pegar e ir-me embora. Por outras palavras, é complicadíssimo comparar os dois tempos. Hoje é ridículo estar a dizer que há por aí um lugar onde só podem entrar homens. A própria legislação é muito diferente. No meu tempo, um homem que se quisesse casar tinha de casar com uma mulher e agora não. Agora casa, legalmente, com um homem se quiser. Portanto, há uma evolução completamente distinta.
No seu longo percurso profissional, do que é que teve de abdicar e do que é que se arrepende de ter abdicado?
Eu tenho imensa sorte porque não me arrependo de nada. Todas as asneiras que fiz foram conscientes. A meu ver, a pior coisa que há na vida é o arrependimento, já que é a demonstração tácita de que o indivíduo optou por aquilo que não queria. Um sujeito se se arrepender irá sempre cismar de que deveria ter procedido de uma outra forma, ao passo que se tomar as opções de forma consciente não terá por onde se arrepender.