Deu há pouco tempo uma entrevista na qual lhe perguntaram onde se via, caso tivesse sucesso, daqui a 40 anos. O Pedro respondeu “como um homem vivo”…

A primeira dimensão da resposta é apenas uma piada, daqui a 40 anos terei 82. Mas por outro lado também não tenho expetativa de ser recordado como coisa nenhuma. Não tenho expetativa de ser uma das pessoas que ficam na memória da comunidade depois de morrerem, de ser recordado pela posteridade.

O Philip Roth afirmou numa entrevista que nunca se tinha visto como uma pessoa feliz, e que não via a felicidade como um objetivo pelo qual se guiasse. Dizia que queria deixar um corpo de trabalho que pudesse influenciar as gerações futuras, deixar uma marca. Afirmaste que essa parte não te interessava…

Não, não disse que não queria deixar um legado, eu disse que não vou deixar um legado, gostava mas não vou. Não vou, porque não sou o Philip Roth. Também não acredito quando ele diz que não tem como ambição ser feliz… acho que (a formulação em si pode parecer um bocadinho pífia), mas qualquer coisa parecida com essa ideia de felicidade, move toda a gente. Acho é que quando deu essa entrevista já sabia que tinha falhado a felicidade, mas sabia que tinha conseguido o génio.

E há uma dicotomia entre génio e felicidade?

Génio no sentido estrito da palavra? Acho que sim, embora haja uma mitologia um bocadinho cansativa, se formos estudar a biografia dos chamados génios, das pessoas que nós consideramos génios, muitos deles, uma quantidade assustadora deles, tiverem vidas onde a felicidade não se manifestou. Pode ser por acaso. Pode ser, acho arriscado tirar conclusões sobre isso. Mas é verdade, muitos dos génios da humanidade tiveram vidas absolutamente miseráveis, muito mais nos génios artísticos, muito mais do que se calhar os grandes economistas, não sei, não sei quantos economistas foram felizes.

Mas os grandes escritores, uma boa parte deles, dentro do que nós podemos dizer de fora se uma pessoa foi feliz ou infeliz, nós sabemos que o Keats não foi feliz, sabemos que o T.S. Eliot não foi feliz, enfim…o génio é sempre um excesso – não o talento, acho que houve pessoas que tiveram uma vida completamente normal, não problemática e que eram muito talentosas – mas o génio é sempre um excesso, quase uma doença, o génio é um desequilíbrio qualquer que se manifesta como pessoa, nós percebemos que aquilo é uma cabeça que não tem condições para ser humanamente feliz, aquela cabeça é grande demais, é problematizadora demais para ter uma vida burguesa normal.

Não é um pouco dessa infelicidade do génio que transparece depois no consumo cultural?

Não creio que seja o génio, o génio não é certamente contagioso. É mais provável a infelicidade ser contagiosa do que o génio… eu acho que as pessoas no fundo descobrem que isso acontece nas nossas vidas, descobrem afinidades, e há artistas, escritores que podem ser mais ou menos geniais, mais ou menos canónicos, que por qualquer razão falam daquilo que lhes interessa ou falam de uma maneira que as cativa e que as chamam à atenção.

Eu não sei explicar exatamente porquê, mas lembro-me que nos primeiros casos que me aconteceu isso, era uma experiência muito banal. Camus, um dos autores mais populares do Ocidente, Kafka, um daqueles autores que imediatamente é impossível não gostar, mas quer dizer, o apelo é tão grande que é quase difícil não se sentir convocado por aqueles textos.

Cada um de nós faz essa associação, por exemplo, eu sempre me associei ao Kafka: como estudava Direito e detestava, associava o Kafka ao Direito, como uma espécie de máquina, mais ou menos repugnante, porque lia muito na altura da faculdade. Há pessoas que, por exemplo, sobreviveram a regimes opressivos e que relacionam o Kafka com a expressão política; outros identificam- -se a ler a Metamorfose por a verem como uma doença mental. Quer dizer, uma das caraterísticas do Kafka é a sua pluridade de sentidos. Nós podemos projetar o que quisermos.

No entanto, há autores como Kierkegaard, que quando o li pela primeira vez não havia enlouquecido ainda mas sabia à partida que viria a ser um dos autores centrais na minha vida. Há autores de quem eu gostava muito aos vinte anos mas não gosto tanto hoje como é o caso de um poeta a quem, embora continue a gostar, raramente volto, o Paul Éluard. Eu aos vinte anos tinha alguma coisa de celebratório que agora não tenho. Não estou com espírito de celebração no geral mas particularmente em relação ao mundo que eu vejo associado àquele poeta que aos vintes anos me parecia extraordinário. Às vezes o que muda não são os livros, ele continua a ser um grande poeta, mas sim as nossas visões do mundo, a nossa apetência para uma determinada tonalidade.

A cultura deve ser subsidiada?

Eu acho que o Estado tem determinadas funções e sobretudo monopolistas. Há áreas em que o estado tem que ser monopolista e há outras em que o estado tem que ser supletivo, em que este deve garantir alguns cuidados, serviços e prestações a toda a gente ou então simplesmente a quem não tenha acesso às condições de mercado. Na cultura é isso que se trata. Sobretudo as artes do espectáculo como o teatro, a ópera, o bailado, e também o cinema, que em Portugal não temos mercados que as sustente.

Nenhuma dessas artes existe em Portugal, não há simplesmente um grande número de pessoas que se interesse pelo cinema português. O Estado tem então duas opções: ou afirma que não há espaço no mercado e que por isso não faz nada ou então, gozando das competências culturais que lhe são atribuídas pela constituição, conclui que a presença do Estado garante a sobrevivência de certas artes. E alguns responsáveis políticos acham que um país sem teatro, sem dança, sem ópera, sem concertos seria um país atrasado. Pessoalmente eu gostava que o Estado não tivesse que intervir na cultura.

O grande problema do dirigismo cultural é pôr os artistas ao serviço do Estado. Mas se a escolha implícita é entre isso ou acabar com as artes do espetáculo em Portugal, eu acho que nenhum país civilizado acaba com as artes. Ao longo da história, os artistas sobreviveram, os artistas dependeram do mercado (mesmo antes de haver um mercado propriamente dito), dependeram da Igreja, dos aristocratas. O caminho privado, no caso das pessoas individuais das fundações, é melhor. O dinheiro público é sempre mais problemático. Mas no fundo acho que o Estado não se pode alhear da criação cultural, aliás, não se pode sequer alhear do destino da criação cultural.

Para além do Miguel Gomes temos ainda o Pedro Costa, na literatura temos o Gonçalo M. Tavares, Valter Hugo Mãe, José Luís Peixoto, está-se a perfilar uma grande nova geração?

Não seria necessariamente a minha lista, mas acho que sim. Acho que no caso do cinema temos basicamente quatro cineastas com produção internacional, Pedro Costa, Miguel Gomes, João Pedro Rodrigues e um bocado o Joaquim Pinto ou o João Botelho. E isso os cineastas que são conhecidos no circuito dos festivais. Não é extraordinário, mas quantos cineastas de países com dimensões iguais às nossas conhecemos, Holanda, Noruega? Não é mau, não é mau termos quatro cineastas conhecidos na Europa. Claro que no meio cinéfilo, claro que as pessoas na rua não sabem quem é o Miguel Gomes.

Então será possível num país como o nosso haver algum ressurgimento cultural?

Eu tenho instintivamente uma reação cética a essa mitologia do Quinto Império, a essa excecionalidade, todas as culturas se acham extraordinárias. Nós de facto até temos algumas razões para o achar, sobretudo na literatura, sobretudo Pessoa, Camões, Padre António Vieira, Eça. A literatura é muito forte, então para a dimensão do país. Mas não no sentido de excecionalidade, do Quinto Império ou do místico destino de Portugal, ou dos valores portugueses, o saudosismo, mas acho por exemplo que nos temos um Império, sem as conotações negativas, que é a língua portuguesa. Temos uma realidade pluricontinental com que não sabemos lidar. Não sabemos lidar com essa riqueza, com milhões de pessoas, comparando com Espanha, e com o facto de que em qualquer pais da América Latina nas livrarias encontrarmos livros de autores espanhóis e vice versa.

Deveria ser o mesmo cá, todos os autores brasileiros deveriam estar nas livrarias portuguesas e todos os autores portugueses deveriam estar nas livrarias brasileiras. É uma coisa evidente, óbvia. Mas os livros brasileiros são caríssimos cá, é absurdo, não se devia pagar nada, o câmbio livreiro devia ser mais baixo, devíamos potenciar tudo o que tem a ver com essa grandeza da língua portuguesa. O dicionário da Real Academia Espanhola é o dicionário de referência da língua espanhola em todos os países da América Latina, todos, com as múltiplas variantes que o castelhano falado tem ou mesmo escrito tem na América Latina. Portanto, Cervantes é um exemplo de uma política cultural mundial de uma língua pluricontinental como é a espanhola. Nós estamos na infância disso.

A relação cultural com o Brasil devia ser intensíssima, os filmes deles deviam estrear cá e os nossos lá. Tendo a perfeita noção de que existem barreiras linguísticas, principalmente de cá para lá. Mas independentemente desses pequenices, devia haver também com os países africanos, mas aí a vida cultural é um bocado mais limitada. Mas isso existe e não é preciso ter uma ideia de um império cultural. Basta termos uma língua que subsiste em vários países, que é a quinta mais falada no mundo. E isso é uma riqueza cultural que é preciso gerir de uma forma inteligente e atenta, o que não tem acontecido.

Pode-se falar hoje de produção artística original?

O Vargas Llosa dava o exemplo do Marcel Duchamp, ele dizia “O Duchamp quis ser subversivo e isso era novo na altura, a partir dessa altura todas quiseram ser subversivos e a própria subversão deixou de ser algo novo”. Acho que há duas maneiras de ver essa questão, uma em que é verdade desse ponto de vista: a questão das vanguardas, porque a vanguarda depende muito do efeito novidade e a partir do momento em que este se esbate podemos ver as coisas de duas maneiras diferentes.

Por um lado podemos dizer que perde o interessante, mas podemos ver de outra maneira, passa a fazer parte do leque aritístico genérico. Na televisão, A Balada de Hill Street, foi a primeira série televisa mainstream a ter várias histórias por episódio, porque se achava que os espetadores não acompanhariam no mesmo episódio histórias diferentes. A série foi um sucesso, e hoje em dia qualquer episódio tem várias histórias.

No cinema, saltos no tempo, sem que se mostrasse um flashback a preto e branco. Hoje em dia uma pessoa consegue ver um filme com saltos no tempo e não fica confusa. Escrever outra vez um livro como o Ulysses ou como o Finnegans Wake? Não tem interesse porque já foi feito, mas há coisas que entraram nos nossas hábitos e há coisas que se podem fazer de maneira radicalmente diferente. Neste momento, estamos perante um caso desses na cultura ocidental. Tivemos o Em Busca do Tempo Perdido, escrito em sete volumes, autobiografia introspetiva, exaustiva, isto é uma obra-prima.

A Minha Luta, esta sequência de livros do Knausgård pega nesse modelo e transforma-o numa forma completa nova, por um lado sendo muitíssimo menos literária, isto é, as frases, a expressão estilística é muito mais flat, não tem aquela intensidade, aqueles longos parágrafos, as orações subordinadas que tinha o Proust… por outro lado ao nível da exposição pessoal leva ao limite do suportável, porque apesar de tudo no Proust há ali umas transposições e há personagens que são homens claramente transformados em personagens femininas, e em que ele lida com questões como a homossexualidade, mas Knausgård fala da amante dele, sendo casado.

Temos alguém que escreve um livro, e que tem lata de chamar ao livro A Minha Luta, fazendo algo que nunca ninguém tinha feito, pelo menos com aquela qualidade, que é descrever as coisas até à exasperação. Ou seja fazer uma cena de dois irmãos a limparem uma casa de banho que dura cem páginas, porque ele quer mostrar a casa de banho da casa do pai que morreu alcoolizado, para que se sinta o horror que foi contactar com a decadência em que o pai tinha caído. Portanto estamos cem páginas a levar com duas pessoas a lavar uma casa de banho, que não é uma coisa muito interessante de ler em dez linhas, quanto mais em cem páginas, e que de facto torna se insuportável. Mas eu sentia exatamente o contrário do que o Vargas Llosa sentia, nunca tinha lido isto, e insisti. No ponto de vista das vanguardas, sim, já foi tudo feito, mesmo quando o Cesár Monteiro fez a Branca de Neve, um filme quase sem imagem com o ecrã negro, já havia quadros completamente pretos desde os vanguardistas russos.

Mas não acabaram as possibilidades da expressão artística, não há um momento em que se diga “não há nada mais, acabou, já foi tudo dito”. Dizer por exemplo, “depois do Camões porquê escrever um poema de amor em português?” Podia dizer- -se isso, muitas pessoas pensaram isso, mas de facto há muito bons poemas de amor em português escritos depois do Camões. Não há razão nenhuma para se dizer que existe um poeta que fecha a loja. Apenas há momentos mais fortes do que outros, há aqueles momentos em que estão à mesma mesa de jantar o Eliot, o Pound, a Virginia Wolf, o Huxley, a Catherine Mansfield. São momentos, são assim os oásis, os prodígios criativos como naquelas 2 ou 3 décadas em Itália em que havia o Fellini, o Visconti, o Pasolini, o De Sica. Mas isso faz parte de haver numa geração mulheres mais bonitas que outras, uma fatalidade.

Mas qual é o objetivo da cultura então? Ou da Arte?

Eu não diria que tem um objetivo no mesmo sentido em que a engenharia tem um objetivo, ou que a panificação tem um objetivo. É qualquer coisa como a criação do belo, mas isso não chega a ser uma resposta, porque o belo também não serve para nada, serve para contemplação, para o prazer sensorial ou intelectual, mas o belo em si mesmo não é uma utilidade. Eu sempre vivi pacificamente com a inutilidade da literatura, há pessoas que acham que isso é problemático, mas eu sinto que ela é útil num sentido muito imaterial e subjetivo, é útil para nos fazer companhia, para nos fazer perceber os outros, para nos mostrar um mundo que não conhecíamos se não fosse através dos livros, para alargar a nossa sensibilidade humana.

É por isso que as respostas são do foro individual, uma pessoa não pode dizer “uma pessoa que não leu a Madame Bovary não sabe o que é a vida”. Quer dizer, não tem nenhum sentido, “uma pessoa que não comeu uma bola de Berlim não sabe o que é a vida”. Umas pessoas gostam de bolas de Berlim, outras gostam da Madame Bovary, há espaço para tudo.

Há vários autores que referem a capacidade única do Homem de se rir, como maneira de se superiorzirar em relação a algumas situações. Vês no humor essa capacidade humana?

Eu fui-me apercebendo de que os autores de que mais gostava (já falei no Tchekov, podia também falar no Beckett), muitos deles escreveriam o que se poderia definir como tragicomédias, e eu sou muito sensível a esse registo. Eu tenho uma visão relativamente trágica da existência, tenho uma fraca opinião do ser humano, acho que as coisas em geral acabam mal, não tenho uma visão otimista da vida, pelo contrário, mas acho isso muito divertido!

Acho isso muito divertido, isto é, não vejo que isso signifique o abatimento e o humedecimento, não, acho que, tendo em conta a graça que isso às vezes tem, se pode encontrar um registo onde que a condição humana não é escamoteada, mas onde o lado das peripécias e de todas as coisas que nós fazemos, achando todos que somos estamos a fazer tudo pela primeira vez na história da Humanidade, tem graça. Eu gosto muito de uma história do Beckett que não é de um livro, é uma história biográfica: o Beckett vai almoçar com um amigo num dia de Primavera, em Paris, saem do restaurante, está um dia esplendoroso, saem para o jardim do Luxemburgo e diz o amigo, “É em dias destes que dá gosto estar vivo!”, e o Beckett “Bom não exageremos”.

E as peças dele têm frequentemente essa dupla dimensão, sendo muito negras em relação à condição humana porque ele tinha uma coisa, que eu pessoalmente também tenho muito, que é a sensibilidade ao humor verbal, ao humor que se faz sobretudo com jogos de palavras, não no sentido de trocadilhos mas que se faz à base da utilização de palavras por oposição ao slapstick, que é uma coisa mais de quedas e tartes na cara. Se me perguntarem ao que eu acho graça, eu acho graça ao Groucho Marx. Para mim a grande comédia é aquela da linguagem ser surpreendente na maneira como resolve as situações humanas.

E portanto isso não é incompatível com uma visão pessimista da humanidade, que eu genericamente diria que era a minha. Nós vamos todos morrer e não é por isso que deixamos de almoçar. Nem todas as pessoas são pessismistas, felizmente, mas há aquele caso daquelas pessoas que antes de se suicidarem tomam os comprimidos para a tensão alta ou coisa do género, têm aquela rotina, tomam os seus comprimidos e depois atiram-se da janela. Que é uma coisa que não tem sentido nenhum, parece que há até quem tenha estudado isso e que é comum os suicidas manterem a rotina, tipo beber uma cola zero para não engordar e a seguir saltar da janela. Isto tem graça, obviamente tem graça, não tem uma pessoa atirar-se da janela mas tem quando uma pessoa toma um comprimido para a tensão e se atira da janela a seguir.

O Homem não se subjuga demasiado às ideias que são tão mutáveis por este mesmo Homem?

No Kafka é o Processo, no Orwell é o Estado… Não diria que são mutáveis mas o que acontece é que há alguns livros que foram por exemplo proibidos por ditaduras de esquerda e por ditaduras de direita, ambas achando que esse livro as descrevia. Houve um grande debate a propósito do 1984 e sobretudo d’O Triunfo dos Porcos, sobre o que era aquilo, sobre que regime é que ele estava a descrever, n’O Triunfo dos Porcos parece-me claramente ser a União Soviética.

Mas eu acho que há uma ambiguidade essencial na obra literária que permite que ela não se esgote em si própria. Há uma história que eu costumo contar a respeito de um poema meu que se chama Os Dez Mil, que é uma passagem da literatura clássica, do Xenofonte, sobre um exército de dez mil gregos a regressar a casa após uma derrota. Fez-me muita impressão quando li essa passagem e escrevi um poema chamado Os Dez Mil. E é sobre isso, sobre essa passagem, mais nada. Sobre a ideia de derrota e a ideia das pessoas a regressarem a casa depois de uma derrota. E houve uma vez uma pessoa que me disse “gosto muito daquele seu poema sobre os retornados do ultramar”. E eu primeiro disse “não, deve estar enganado…a que poema é que se está a referir?”, “É um que se chama Os Dez Mil”.

E tal nunca me tinha ocorrido, não tem nenhuma ligação pessoal à história da África Portuguesa portanto nunca me ocorreu, mas aquela pessoa que provavelmente tinha aquela experiência ou a quem aquela experiência interessava, viu pessoas a regressarem a casa depois de uma derrota e acha que é a Guerra de África. Se para esta pessoa o que ela vê é aquilo, se foi aquilo que ela viu no poema e foi por isso que o poema lhe disse alguma coisa, não lhe posso dizer que não é sobre isso. quem é que pode dizer que não, não é legítimo interpretar isso? Não, não creio que se possa fazer isso, e eu não o fiz e não o faria também.

Quando poderemos ver um grande romance de Pedro Mexia?

Um livro não sei, não sei que livros é que escreverei, que virei a escrever, como é que eles serão. Vai sair um livro novo agora, vamos ver o que é que é, mas não tenho a menor ideia do que é que pode acontecer. Sei que com 42 anos e a publicar já há quase 20 tenho uma noção da qualidade daquilo que eu escrevo: não é suficientemente mau para eu nunca mais escrever nada, nem é suficientemente bom para eu achar que alguém me vai ler depois de eu morrer, portanto há ali um limbo entre essas duas coisas.

Quais as questões a que a economia deve dar resposta?

Há uma tradição que ainda existe em alguns países que é aquela expressão das ciências morais. Eu acho que na questão da economia o que aconteceu é que houve, bem ou mal, uma expectativa muito grande das pessoas na economia como ciência, e houve um grande desencanto moral em relação à economia. Toda a gente diz hoje da economia o que se calhar há umas décadas se dizia sobre o comunismo ou outra coisa qualquer, foi um bocadinho “o Deus que falhou”. As pessoas esperavam que houvesse uma capacidade de previsão, tinham uma espécie de exigência profética acerca da economia e hoje em dia a economia está muito degradada na apreensão que as pessoas têm, hoje em dia é quase “pior só ser banqueiro”.

Portanto acho que houve uma expectativa moral acerca da economia que não é absurda porque nalguns aspectos da economia, não da ciência económica, mas do funcionamento da economia, ela perdeu de vista de facto a dimensão moral no sentido lato. Há aquele filme bastante engraçado que se chama Margin Call que dá o exemplo de uma espécie de funcionamento da economia, não da economia ciência mas da economia real, totalmente desligada de uma dimensão moral, uma espécie de jogo matemático. E nesse filme, como noutros, há a confrontação de uma ideia da economia enquanto uma espécie de lotaria conceptual e depois o que isso significa na ruína de vidas individuais e de sistemas bancários e de crédito imobiliário e etc.

E portanto acho que essa dimensão moral da economia tem que ser forçosamente resgatada pelos economistas ou por alguém por eles porque neste momento eu diria que é uma das áreas vistas como mais distantes de qualquer noção de moralidade do mundo contemporâneo, justa ou injustamente ou se calhar as duas coisas. Uma das hipóteses de dar uma dimensão moral à economia seria justamente uma visão um pouco mais humilde, nós vimos, e não foi só na economia, vimos também na política que houve muitas experiências de projectos muito perfeitos e acabados no papel e que não funcionaram, de entre as quais o comunismo foi claramente o mais teorizado, o mais sólido intelectualmente e, enfim, diga-se o que se disser e arranje-se os eufemismos que se quiser, falhou. Acho que se pode dizer isto assim sem grande erro.

E portanto se calhar isso, a ideia de não ter um supersistema que prevê tudo incluindo a sua apropria infalibilidade, não é uma má ideia, não é má ideia ser um pouco mais humilde e um pouco mais cauteloso. Só há grandes deceções quando há grandes ilusões, se alguém nos promete o mundo todo é mais fácil que depois nos desiluda amargamente do que se simplesmente nos guiar, mostrar umas tendências, umas regras umas leis…mesmo essas sabe Deus enfim.