Conduzida por Catarina Ribeiro e Mariana Loureiro
Também incluída no FEPIANO 54, publicado em Janeiro de 2025
O professor fez a licenciatura e o mestrado na FEP e o doutoramento na LSE sempre na área da economia. Foi economista no Banco Português do Atlântico, no Fundo Monetário Internacional e avaliador economista externo no Infarmed.
Já ocupou vários cargos de chefia: diretor da Soserfin; presidente da Administração Regional de Saúde do Norte, presidente do conselho no Espaço Atlântico – Formação Financeira e presidente da Entidade Reguladora da Saúde.
Foi professor coordenador convidado da Atlântico Business School. Na Porto Business School é professor e desde 2018 também é diretor da Pós-Graduação em Gestão e Direção de Serviços de Saúde. Na FEP é professor e já foi diretor do Mestrado em Gestão e Economia de Serviços de Saúde, bem como já foi presidente do Agrupamento Científico de Economia.
Por fim, já foi consultor no Ministério da Saúde, foi vereador da Câmara Municipal do Porto e Deputado na XIV Legislatura, no qual o foco eram as comissões parlamentares da Saúde; Orçamento e Finanças.
Qual destas áreas (economia, cargos de chefia, educação e política) o professor se revê mais, no sentido de maximização da sua competência? E qual delas o professor sente mais prazer de exercer?
Eu sou professor, a minha carreira é de professor, é isso que gosto de ser, tudo o resto é acessório e conjuntural. Se por relevante entende por mais impacto, provavelmente foram os casos em que fui presidente de uma instituição porque aí a minha capacidade de intervenção era maior.
Se por relevância entende eu gostar mais, já não é necessariamente a mesma coisa. Excluindo a parte académica, aquilo que eu sou, tudo o resto estive conjunturalmente, aquela que eu gostei mais de exercer foi quando estive no Fundo Monetário Internacional.
Qual foi o momento mais desafiante da sua carreira? Se tivesse de o enfrentar de novo, sabendo o que sabe hoje, faria algo diferente? Que conselhos daria a alguém que estivesse a passar por algo semelhante?
Isso depende daquilo que considera desafiante, mas há dois momentos que eu escolheria. Se entendermos desafiante por um momento de elevada situação em que eu senti me numa situação frágil, nesse caso o momento mais desafiante foi quando eu estive, juntamente com os meus colegas da equipa do FMI cercados no Banco Central da Venezuela por uma manifestação “espontânea” de pessoas contra o Fundo Monetário Internacional. Aí foi desafiante porque foi uma situação de algum perigo, não aconteceu nada, mas tive de sair pela janela, andar pelas varandas de vários prédios para evitar a manifestação.
Agora, desafiante do ponto de vista profissional isso foi com certeza quando estive na Entidade Reguladora da Saúde, porque esta quando lá estive a entidade tinha um ano e pouco, havia muita gente que considerava que a entidade não devia existir e portanto foi um grande desafio conseguir afirmar a importância de uma entidade reguladora independente no contexto do sistema de saúde, quando havia uma grande maioria dos interesses instalados que era contra. Isso obrigou-me a lidar com toda essa atmosfera negativa, de quererem eliminar ou contrariar o meu trabalho. O que eu poderia dizer para quem passar por isso, é primeiro ter a certeza do que se quer, do que é preciso fazer e quando se tem a certeza do que é preciso fazer, fazê-lo independentemente das adversidades que possam surgir, obviamente sempre tentando gerir o melhor possível essas adversidades.
De onde e como surgiu o interesse e a ligação da área da economia para a área da Saúde na sua carreira?
Eu acho que foi durante a minha passagem pelo FMI. As missões em que eu estive eram de apoio a países com dificuldades financeiras no âmbito de programas de ajustamento, como aquele que Portugal atravessou entre 2011 e 2014. Fui a vários países da América Latina, e também estive na Arménia, e em todos esses casos tínhamos de lidar com as dificuldades financeiras que invariavelmente resultavam de problemas orçamentais e dentro dos problemas orçamentais o setor da saúde era quase sempre um dos principais problemas, se não o principal em muitos casos.
Portanto, comecei a interessar-me pelas questões do sistema de saúde precisamente aí, vindo da parte orçamental, portanto pelo impacto que tinha no orçamento desses países, comecei a interessar-me pelas formas mais eficientes de organizar o sistema, como é que se pode racionalizar de maneira a que o esforço orçamental não seja tão grande.
De que forma avalia as medidas propostas no Orçamento de Estado 2025 na área da Saúde? São suficientes para resolver a atual crise deste setor, tendo em conta a pressão de reformas estruturais e de um orçamento público restrito?
Este orçamento é um orçamento que resulta de negociações muito complicadas e como o governo quis aproximar-se do Partido Socialista e foi o PS que acabou por viabilizar a aprovação pelo menos na generalidade, o que aconteceu é que este orçamento não se distingue muito do que eram as políticas do Partido Socialista e na área da saúde não é exceção, pelo contrário.
Na área da saúde, o último governo PS introduziu uma reforma profunda que foi a generalização a todo o continente do modelo das unidades locais de saúde, essa foi uma reforma profunda que este governo não alterou, apesar de na minha opinião devia ter alterado.
E portanto, o que aconteceu é que, por essa razão, o orçamento da saúde e as medidas que lá estão previstas são na sua maioria a continuidade do que vinha de trás do governo socialista e portanto, quanto à segunda parte da sua pergunta “se resolve os problemas”: não, não resolve os problemas todos porque pouco altera o sistema, praticamente é um orçamento de continuidade. Há uma ou outra medida importante, mas não ao ponto de serem transformadoras do sistema.
Acredita que boa parte dos problemas do nosso atual sistema de saúde poderiam ser resolvidos abandonando em definitivo o atual modelo de Beveridge em detrimento do modelo de Bismarck, por exemplo como a Alemanha, ou até um modelo misto, como a França?
Esses modelos, quer o modelo alemão, quer o modelo francês, são modelos que têm uma característica em comum com o Serviço Nacional de Saúde português – são modelos universais. A universalidade é uma característica fundamental de qualquer sistema de saúde, ou seja, a universalidade no sentido de todos terem acesso a cuidados de saúde, gratuitos ou quase, no momento de utilização. Depois, a forma como isso se faz concretamente no terreno não é o mais importante e, portanto, se é um modelo Beveridgiano como o nosso, ou se é um modelo Bismarckiano como os franceses ou os alemães, não me parece que seja a maior preocupação.
Agora, o que se deve fazer é utilizar o melhor de cada modelo e uma das grandes vantagens dos modelos Bismarckianos, como os que citaram, é a liberdade de escolha e a concorrência que resulta da sua liberdade de escolha, isto é, o facto de os utentes não estarem limitados a um prestador, hospital ou centro de saúde público, mas sim poderem escolher entre vários médicos, clínicas ou hospitais diferentes, alguns públicos e outros privados. Essa liberdade de escolha e essa característica que obriga depois os prestadores a concorrerem entre si para poderem ter clientes e sobreviver, é um elemento importante para o aumento da eficiência. Só que não é preciso mudar a natureza Beveridgiana para termos isso, nós podemos ter isso também no modelo Sistema Nacional de Saúde como o nosso.
Aliás, já temos, ou tínhamos isso até 31 de dezembro de 2023, no caso dos meios complementares de diagnóstico e terapêutica, já havia o modelo das convenções que era um modelo pela qual os utentes do Serviço Nacional de Saúde podiam recorrer a qualquer prestador de análise clínicas ou imagiologia que o SNS pagaria essa despesa de acordo com termos que já estão pré-definidos. Isso demonstra que o facto de ser Beveridgiano ou Bismarckiano não é o essencial.
O essencial é como ele, na prática, está organizado e desde que haja liberdade de escolha e concorrência, podemos aproveitar tudo de bom que os modelos Bismarckianos têm, sem ter de necessariamente deitar fora o que nós temos. Até porque, nestas questões de organização do sistema de saúde, não há sistemas de saúde que são criados do zero. Todos eles aproveitam o que já existe e são meras adaptações e evoluções do que já existe. Portanto, acho mais eficaz e potencialmente com melhores resultados pegar no que já existe e fazê-lo evoluir nesse sentido de liberdade de escolha do que estar a mudar completamente a natureza do sistema.
Com o crescente envelhecimento da população e a já instalada crise na saúde, considera que este é o maior problema a médio/longo prazo? Acredita que a única solução realística no cenário atual para este problema é o fator da imigração?
Há aí duas questões diferentes na pergunta. A primeira questão é quais são as consequências do envelhecimento no sistema de saúde e, obviamente, são consequências importantes. Não tão importantes como às vezes se pensa, já que o envelhecimento faz com que haja pessoas mais velhas e, portanto, mais sujeitas a ter problemas de saúde.
No entanto, o envelhecimento é resultado de um processo de melhoria generalizada da saúde. As pessoas vivem mais tempo, porque têm melhor saúde ao longo da vida, o que significa também que precisam de cuidados de saúde mais tarde na sua vida. A maior parte das pessoas de sessenta anos hoje não tem grandes necessidades de cuidados de saúde como há trinta ou quarenta anos, eram pessoas que estavam na idade da esperança média de vida. Portanto, o envelhecimento traz alguns desafios para o sistema de saúde, mas não tantos quanto assim à primeira vista poderia parecer.
Os desafios do sistema de saúde vêm, sobretudo da tecnologia, da descoberta de novos meios de tratamento, de diagnóstico e medicamentos, que vêm aumentar a despesa, mas também são os responsáveis por essa melhoria do estado de saúde. O envelhecimento não é um problema em si, é só um problema orçamental, logo, é uma questão de acomodar no Orçamento de Estado esse desafio.
Mas também o problema orçamental e se calhar bem mais grave, é o problema das pensões que o envelhecimento traz, pois, em termos de problema, o problema do envelhecimento não é um problema a não ser no sentido em que causa um aumento da despesa pública.
Como é que se resolve esse problema orçamental? Essa é a segunda questão. Se tem de passar pela imigração, objetivamente sim, porque o que nós vemos é que a população em idade ativa e nascida em Portugal está a diminuir, a cada ano que passa há menos pessoas em idade ativa nascidas em Portugal. Portanto, se nós queremos manter a economia a crescer e com o mesmo nível de emprego, só é possível recorrendo a trabalhadores nascidos fora de Portugal.
Acredita que os jovens olham para a área da Saúde sem expectativas de progressão de carreira? De que forma este problema irá impactar o setor da saúde em Portugal no futuro?
Acha que há menos hipóteses de progressão da carreira na saúde? Não sei se isso será uma afirmação totalmente correta, porque as necessidades de saúde são crescentes e, portanto, o número de lugares disponíveis para profissionais de saúde tende a aumentar. Agora, provavelmente, essa afirmação que fez está influenciada pelas restrições orçamentais que o Serviço Nacional de Saúde enfrenta.
Mas primeiro, não é óbvio que essas restrições orçamentais sejam ao ponto de impedir a criação de mais lugares de chefia, nem o sistema de saúde português se limita ao SNS. Aliás, o setor da saúde é daqueles setores onde o potencial de crescimento e de progressão da carreira é mais elevado, sendo talvez só o setor das tecnologias melhor do que o da saúde.
Quais são as competências que considera essenciais para os futuros líderes deste ramo?
Têm de ter competências de gestão. As instituições de saúde têm especificidades, mas não deixam de ser instituições que partilham muitas características com qualquer outro tipo de instituição. Só que são instituições que têm algumas características específicas que as tornam particularmente complexas, nomeadamente, o desafio tecnológico. Há uma grande inovação, o que obriga os gestores a estarem continuamente capacitados para avaliar a relevância dessa inovação, porque há muita inovação que não acrescenta valor, acrescenta despesa, tendo um gestor de saber distinguir estas duas coisas.
O segundo desafio específico da saúde é o desafio de gerir profissionais de saúde de várias categorias e profissões, que têm cada uma delas um sentido corporativo muito forte, na medida em que a maior parte dos profissionais de saúde estão organizados em ordens. Logo, há uma lógica corporativa, no sentido que há uma ordem que define o modelo de funcionamento da profissão e, portanto, condiciona a capacidade do gestor de gerir esses recursos humanos porque há outras instituições, designadamente, as ordens que têm a capacidade para determinar o que é que esses profissionais fazem. E depois, combinar uma equipa eficiente e coerente, profissionais de várias profissões.
Esses dois grandes desafios de lidar com a tecnologia e gerir recursos humanos muito específicos são os dois grandes desafios que os líderes de instituições de saúde têm de enfrentar e que sempre foram complicados. Uma vez, eu vi uma afirmação que ainda não vi contrariada e duvido que seja contrariada: a única instituição mais complexa do que um hospital para gerir, é um porta-aviões, mas que tem uma vantagem de serem geridos por militares, que têm um sentido hierárquico muito forte, o que facilita a gestão, algo que não acontece no hospital. Portanto, são desafios muito grandes, mas é por isso que é preciso ter competências de gestão e conhecer o setor, essas duas questões que eu referi e muitas outras que são específicas do setor da saúde.
Acredita que é possível, num futuro próximo, o cenário de substituição de profissionais da saúde por máquinas ou inteligência artificial para reduzir custos, mesmo que isso signifique um atendimento mais impessoal?
Penso que era o professor Abel Salazar que dizia: “um médico que só sabe de medicina, nem de medicina sabe”. Ele queria dizer que a medicina não é apenas um ato técnico, ou seja, não basta conhecer a ciência médica para ser um bom médico, porque a medicina é uma relação entre um médico e uma pessoa e portanto, admitindo que o professor Abel Salazar tinha razão (eu tenho todos os motivos para achar), nunca poderá haver essa substituição.
Agora, o que pode haver é uma facilitação e uma alteração da natureza do trabalho dos profissionais de saúde que resulte desses meios tecnológicos que apoiam esse trabalho, mas isso é verdade para a medicina, como para o ensino, como para todas as profissões do setor. Comparado com todos os outros setores de atividade, eu não estou a ver muitos onde essa substituição nunca poderá acontecer como acontece nos cuidados de saúde, porque apesar de tudo, por muitos gadgets tecnológicos que existem e ajudem o profissional de saúde, no final, para prestar cuidados, é preciso um tratamento humano.
As máquinas ajudam, mas nunca podem eliminar completamente o tratamento humano. A substituição total nunca existirá, mas sim existirá instrumentos que vão tornar o modelo de funcionamento diferente, porque estão mais facilitados. Aconteceu, por exemplo, com os meios de diagnóstico. Antigamente, quando não havia ressonâncias magnéticas, quando não havia uma panóplia de análises clínicas que há hoje, o médico limitava-se a observar o paciente e a auscultá-lo com o estetoscópio, tudo “à mão”. A Inteligência Artificial vai continuar esse processo (muito mais acelerado), retirando também muito trabalho ao médico, mas nunca deixará de ser uma auxiliar.
Considerando o seu percurso na área da Saúde em contexto universitário, como avalia a preparação destas instituições para formar profissionais capazes de lidar com o crescente desafio da saúde mental nas organizações? Quais considera ser as competências essenciais a ser trabalhadas por parte das universidades?
A saúde mental é uma área muito particular e é uma área que tradicionalmente tem tido uma vida própria, “meio fora” do restante sistema de saúde. O plano nacional de saúde mental que foi criado em 2008, a última versão, veio introduzir alterações profundas na organização do sistema que ainda reforçaram mais essa característica de que está “meio fora” do sistema. A saúde mental saiu dos hospitais para passar para o nível comunitário, mas não está integrada diretamente no nível comunitário dos centros de saúde. Temos aqui um modelo em que a saúde mental está, em muitos casos, à margem. É algo que tem uma natureza própria.
Se isso vem da formação, não me parece. A qualidade da formação na área da saúde mental é ao nível do resto da medicina, mas essa característica de estar meio à margem do resto do sistema, tem sempre um tratamento diferente, por exemplo, da cardiologia ou da ortopedia, pois a saúde mental tem características próprias e isso faz que seja um grande desafio o seu financiamento.
Uma das características que nós vemos no caso português é que há diagnósticos de problemas de saúde mental muito mais acima da média do que dos outros países europeus, o que não deixa de ser algo que levanta questões se estamos a organizar bem essa parte. Portanto, em termos de formação, acho que não temos grandes problemas, em termos de organização, é preciso uma reforma na saúde mental. Aliás, esta opinião não é só minha, não fui eu que inventei, mas é também opinião do governo. No plano de emergência da saúde, dos cinco eixos do programa, há um especificamente dedicado à saúde mental.
Atualmente, os dados demonstram que cerca de um terço da população portuguesa sofre algum tipo de doença mental, sendo a depressão e a ansiedade as mais comuns. O que pode ser feito para reverter esta situação?
Primeiro há essa questão de ⅓, que é um número particularmente elevado. Eu tenho algumas dúvidas se nós estamos a falar de um excesso de problemas no diagnóstico ou se estamos a falar no tipo de problemas. Não sei. Não é a minha especialidade, não sei quais são as verdadeiras causas desse número, mas é um número muito alto, exagerado.
Porquê? Não sei, mas de que é preciso fazer alguma coisa, é. Aliás, vê-se pelo consumo de medicamentos específicos de saúde mental, que está claramente acima da média dos outros países. Se o consumo está acima da média, ou há um excesso de diagnósticos ou um tratamento demasiado medicalizado. Num dos lados, alguma coisa estará errada.
O aumento no uso de medicamentos psiquiátricos levanta questões sobre dependência e medicalização excessiva da saúde mental. Acredita que a sociedade tornar-se-á demasiado dependente destes medicamentos e que o seu efeito seja, afinal, contraproducente?
Não sei. Suspeito que possa ser isso. Não sendo médico, não me atrevo a entrar por aí, mas há esse risco. Um risco excessivo de uso de medicamentos que pode ser prejudicial a longo prazo, um efeito de “autoalimentação”, o que faz as pessoas procurarem ter acesso a esses medicamentos e portanto, têm primeiro diagnósticos para depois ter acesso e temos, talvez, mais diagnósticos do que seria necessário. Mas não sei, não é a minha área.





