Um Estado democrático é um Estado que assegura a descentralização do poder e a liberdade de expressão. Nenhum dos dois era assegurado durante o Estado Novo, mas o primeiro elemento também escasseava mesmo depois de 1974.

Salazar, um antidemocrático assumido e um intelectual de excelência, acreditava que o melhor era afastar o povo das decisões políticas e deixar a governação nas suas mãos. Numa lógica de “a César, o que é de César”. Com o Estado Novo, apareceu em Portugal uma paz social à qual o país já não estava habituado depois do período agitado da I República e das décadas finais da Monarquia. Também por isso existiu pouca oposição organizada ao regime até aos finais dos anos 50, já com mais de 30 anos desde a queda da I República.

Rodrigues, M. B. (2007, março 1). Estado Novo (1933–1974): Receita fiscal, despesa pública e outras variáveis nacionais.

Ou seja, a sua popularidade não estava na amargura, justificado também pelo progresso económico que se estava a verificar (gráfico 1), em parte pelo boom económico do pós-2ª guerra ao qual Portugal não participou, pelo que se as eleições ocorridas tivessem sido justas e livres, muito provavelmente teria as ganho na mesma. 

É apenas a partir de 1958, com a forte candidatura de Humberto Delgado à presidência da República, que o regime começa a desmoronar. Humberto Delgado arrecadou 23,58% dos votos e fez soar os alarmes, pelo que a partir daquele momento, o Presidente da República começou a ser eleito pela Assembleia Nacional (apenas representada pela União Nacional) e não pelo voto popular direto. 

Juntamente a esta censura eleitoral, acresceu-se o início da guerra colonial em 1961 e o assassinato de Humberto Delgado pela PIDE em 1965, resultando na desistência por parte da oposição por achar que não havia condições para umas eleições legislativas livres e justas, incluindo as de 1973 já com Marcello Caetano. 

Como sabido, a ditadura tinha os dias contados e terminara a 25 de abril de 1974, uma data importantíssima e que alguns consideram o início da democracia. Mas devido ao PREC, no qual envolveu datas impactantes e revolucionárias como o 11 de março e o 25 de novembro de 1975, alguns afirmam que a democracia consolidou-se apenas com a eleição da Assembleia Constituinte e com a nova Constituição em 1976. Mas eu ainda vou mais longe e afirmo que a democracia apenas foi verdadeiramente conquistada 8 anos após a queda do Estado Novo, aquando da aprovação da Revisão Constitucional de 1982. E penso ter razões para tal: a descentralização do poder não era assegurada e a propriedade privada era desvalorizada.

Vejamos que na Constituição original existia um grande poder tanto do Presidente da República (PR), à época Ramalho Eanes, como do Conselho da Revolução. Este Conselho era essencialmente composto pelo PR, pelos Chefes de Estado-Maior das três Forças Armadas e pelo Primeiro-Ministro caso fosse militar (Art.º 143), sendo que competia também a este órgão de soberania aconselhar e autorizar o PR (Art.º 145), avaliar a constitucionalidade de quaisquer diplomas (Art.º 146) e ainda fazer leis e aprovar tratados referentes a assuntos militares (Art.º 148). 

Já o Presidente da República tinha, por exemplo, o poder de exonerar por livre e espontânea vontade o Primeiro-Ministro (Artº 136). Atualmente, após a revisão de 1982, apenas implicam a demissão do governo e consequente exoneração do PM, os mecanismos de moções de censura e de confiança, a rejeição do programa de Governo, ou uma demissão vinda do próprio Primeiro-Ministro. 

Além disso, apesar de nos artigos 61º e 62º da Constituição original referir o direito à iniciativa e propriedade privada, a realidade é que estas estavam muito longe de serem valorizadas. Por um lado, pela grande onda de nacionalizações que existiu durante o PREC (mais de 1300), num ódio “desCOMUNAl” aos grandes proprietários, e, por outro lado, porque estava precisamente representado no Art 82º nº2: “A Lei pode determinar que as expropriações de latifundiários e de grandes proprietários e empresários ou accionistas não dêem lugar a qualquer indemnização”

Através da Revisão Constitucional de 1982, aprovada com 195 votos a favor (PSD, CDS, PS, PPM, ASDI e UEDS), foi portanto dignificado o direito à propriedade privada, com a fixação de critérios de indemnização e à iniciativa privada, com o reconhecimento da autogestão das empresas privadas. Além de que foi destituído o Conselho da Revolução e criado o Tribunal Constitucional, representando uma vitória contra a tutela militar que assombrava o regime.

A Constituição voltou a ser revista mais seis vezes até aos dias de hoje, mas sem dúvida que a primeira foi a mais importante e tornou efetivamente Portugal um país democrático, embora apresente falhas graves e que dentro da Europa Ocidental e Central, continue a não ser exemplo a seguir.

Índice de Democracia (Portugal 2006-2024)

Para fundamentar a minha posição, analiso os Índices de Democracia, que representam uma ponderação do funcionamento do governo, da participação política, da cultura política e das liberdades civis. Em 2024, Portugal registou um score de 8,08 em 10, o valor mais elevado desde 2006, mas muito abaixo da média 8,4 e da mediana 8,28, ocupando a 14ª posição no total de 23 países analisados (ver referências). Relativamente a 2006, Portugal apresentava um score de 8,16 em 10, e ocupava a 15ª posição num total de 23 países, abaixo da média de 8,58 e da mediana de 8,39.

Países como Noruega (9,81), Suécia (9,39), Islândia (9,38), Suiça (9,32) e Finlândia (9,3), demonstram claramente o exemplo que Portugal deve seguir, mas que no entanto, o país de tempos em tempos é “surpreendido” com casos de corrupção, com uma justiça que leva tempos indeterminados, com uma população desinteressada e que opta pela abstenção nas eleições e por uma cultura de conformismo.

Um sistema político claramente polarizado, onde os discursos radicais e populistas ganham força tanto à esquerda como à direita, além de um bloco central completamente rompido e que dificulta claramente a governabilidade e a aprovação de matérias importantes como uma nova revisão constitucional (maioria de ⅔ dos deputados). No nosso país, PS e PSD sempre foram os responsáveis pela condução dos trabalhos e pela governação. Em 1982, Pinto Balsemão e Mário Soares entenderam-se, hoje tenho sérias dúvidas que Pedro Nuno Santos e Luís Montenegro chegassem a um acordo. Bem, os tempos mudam.

Mais do que dizer que amamos a “democracia” em todos os discursos e invocar o 25 de abril, é preciso criticá-la. De forma construtiva. Criticá-la para a melhorar e seguir o exemplo dos países nórdicos. Porque se não melhorarmos a democracia, garanto que irá aparecer um novo interveniente. E não serão os do costume.

Mas caso falem do 25 de abril, lembrem-se também do 11 de março, do 25 de novembro de 1975 e do 30 de setembro de 1982, cada um na sua ordem de importância.

Fonte: Democracy Index 2024 and 2006 by Economist Intelligence Unit

Para a obtenção dos dados da média e mediana, foi utilizada uma amostra, elaborada pelo autor, considerando apenas os países da Europa Ocidental e Central como referência, embora não haja uma definição clara destas regiões. A amostra de 23 países é a seguinte: Alemanha, Áustria, Bélgica, Chéquia, Dinamarca, Eslováquia, Eslovénia, Espanha, Finlândia, França, Países Baixos, Hungria, Irlanda, Islândia, Itália, Luxemburgo, Malta, Noruega, Polónia, Portugal, Reino Unido, Suécia e Suíça.