Conduzida por Francisco Centeno e Luís Barreiros
Também incluída no FEPIANO 31, publicado em Março de 2018
João César das Neves é economista e professor catedrático da Católica Lisbon School of Business & Economics, onde se licenciou e obteve o seu doutoramento em Economia. É também mestre em Economia pela Universidade Nova de Lisboa e mestre em Investigação Operacional e Engenharia de Sistemas pela Universidade Técnica de Lisboa. É membro de várias organizações católicas, colabora regularmente com a imprensa sendo colunista no Diário de Notícias, onde semanalmente assina a sua crónica “Não há almoços grátis”, e é autor de vários livros sobre desenvolvimento económico, macroeconomia e história económica. Nasceu no ano de 1957, em Lisboa. Foi técnico do Banco de Portugal (1990-1991 e 1995-1997), assessor do Ministro das Finanças Miguel Beleza (1991-1995) e assessor económico do Primeiro-Ministro Aníbal Cavaco Silva (1991-1995).
É conhecido por ser economista e por ser também católico praticante. Uma vez que acredita em Deus, também acredita no Diabo?
Claro, na economia e em todas as coisas. Faz parte da visão da Igreja a existência de um mal que nós sentimos em todas as coisas, e na economia isso é bastante visível, infelizmente. Encontra-se bastante bem um mal inexplicável e inesperado que se pode atribuir a forças exteriores ao sistema.
Em 2016 escreveu o livro “As 10 Questões do Colapso Financeiro” no qual previa um colapso financeiro para 2016 ou 2017. Quais seriam os principais catalisadores desse colapso?
As razões que eu apresentava para essa análise tinham vários elementos. O elemento fundamental era, evidentemente, uma situação de fragilidade financeira. O país está muito endividado, quer em termos públicos, quer em termos privados. O investimento estava em mínimos históricos, e ainda está. A poupança estava em mínimos históricos, e ainda está.
E, portanto, a primeira razão para um colapso, que era um colapso eminentemente financeiro, tem a ver com isto. Qualquer perturbação internacional, por mais pequena que fosse, geraria uma situação de emergência financeira que exigiria provavelmente uma nova ajuda internacional como aconteceu em 2011. Em primeiro lugar, nós tivemos muita sorte.
De facto não aconteceu nenhuma emergência. Pelo contrário, praticamente na altura em que eu estava a escrever o livro, começaram-se a inverter todas as previsões internacionais. Portanto a primeira razão e a mais importante de todas é evidentemente uma evolução internacional muito favorável. A segunda razão tem a ver com políticas – internas e externas – que foram também inesperadas.
O BCE continuou com a sua política de taxas de juro baixas e em Portugal, de alguma maneira, o governo fez o contrário do que disse que ia fazer. Apareceu contra a austeridade mas chegou lá e fez ainda mais austeridade do que o governo anterior. E esse elemento é um elemento importante. O meu livro é menos uma previsão e mais um aviso. Felizmente o governo fez o contrário do que disse e apresentou, também de forma inesperada, uma atitude muito mais restritiva na despesa pública que permitiu evitar esse tipo de males.
Uma vez que estamos em 2018 e o colapso não surgiu, acha que esses catalisadores se extinguiram tendo o colapso sido evitado ou acha que se mantêm tendo o colapso apenas sido adiado?
Estes fatores justificaram a situação mas não estão de todo resolvidos. Os problemas de fragilidade continuam lá. O crescimento económico, que tem sido tão saudado, é na verdade um crescimento económico bastante frágil. A produtividade está a cair. O investimento continua em mínimos e o investimento líquido está negativo. O único elemento que está a gerar este crescimento é um aumento do emprego essencialmente por redução do desemprego, porque a emigração continua a ser muito forte.
Portanto, Portugal está numa situação muito frágil e não está a fazer coisas que devia fazer neste momento de algum alívio para evitar um problema. Nós estamos a criar um problema que a prazo será muito difícil. Qualquer instabilidade internacional gerará imediatamente um problema gravíssimo em Portugal e nem sequer estamos a tentar resolver os problemas estruturais.
Por exemplo, o crédito dos bancos às empresas está em mínimos históricos e continua a descer. A única coisa que está a subir em termos de crédito é o crédito ao consumo e o crédito imobiliário, exatamente os mesmos disparates que fizeram a crise de 2011. Está tudo muito contente porque o consumo está a subir e o turismo está a puxar, mas isso não é um sistema sustentável. A probabilidade de nós virmos a ter um colapso no horizonte é muito elevada.
Ainda assim temos o menor défice da democracia, um crescimento relativamente positivo e o desemprego mais baixo em anos. Acha que estamos de facto a crescer ou simplesmente a recuperar?
Nós ainda não atingimos o pico anterior, por isso ainda estamos num período de recuperação. O menor défice da democracia é absolutamente verdade, mas é importante dizer que não foi feito com uma restruturação do Estado, mas sim sobretudo à custa de cativações e cortes nas despesas de funcionamento que têm criado enormes fragilidades no funcionamento dos sistemas. Nós temos vários sistemas que estão muito contentes, porque os salários estão altos na função pública, mas que estão inoperantes porque não têm despesas de manutenção nem de operação.
Estamos a destruir o aparelho do Estado desta forma e não houve nenhuma reestruturação, não houve nenhuma melhoria do sistema. Também aí existe um enorme potencial para rapidamente disparar o défice assim que as coisas se invertam. Quanto ao crescimento é a mais baixa recuperação da história portuguesa. A economia não está claramente com dinamismo suficiente e está com a produtividade a cair.
A mesma situação que é de crescimento é também muito frágil. Por outro lado, se olharmos para onde está a crescer o emprego, vemos que é em torno do turismo que este tem crescido principalmente. Há um grande aumento de emprego na indústria mas é compensado por uma queda ainda mais extraordinária na agricultura. Todo o setor tradicional junto perdeu emprego. O que quer dizer que são os serviços que estão a aumentar o emprego. E dentro dos serviços são os setores à volta do turismo.
Portanto mais uma vez há aí várias fragilidades importantes que, no meio do crescimento, como está tudo contente, não são faladas, mas que deviam ser faladas porque de facto estamos a comprometer o futuro. Não estamos a aproveitar este período de alívio, essencialmente à boleia de um crescimento externo que nos está a ajudar, para fazer algumas reformas importantes que poderiam amortecer o drama que vem aí. Mas isso infelizmente não está a ser feito.
Defende que o crescimento foi impulsionado por fatores conjunturais. Reconhece, contudo, mudanças na inovação, nas exportações e no empreendedorismo que podem ser prova de que Portugal se está a modernizar e a mudar também estruturalmente?
Há alguma coisa nesses campos, e há alguns setores novos mas são muito pequenos, não chegam para mudar a estrutura. O nosso problema nunca foi falta de empreendedorismo, o nosso problema é uma falta de crescimento das empresas. Nós temos excesso de empreendedorismo. Temos empresas a nascer todos os dias, mas depois não chegam a crescer. Temos uma espécie de teto de vidro que impede as empresas de ficarem grandes.
Qual é que acha que é a causa desse teto de vidro?
Nós gostamos muito do Portugal dos pequeninos, das PME’s, das empresas pequeninas, essas são favorecidas. Assim que uma empresa começa a crescer muito cai-lhe logo em cima uma enorme quantidade de regulamentos, de instituições e de impostos que perseguem o crescimento. Isto não é um problema apenas português mas é dramático. Não é forma de fazer um desenvolvimento sustentável, não é razoável.
Então, qual é que acha que devia ser o caminho a seguir?
O caminho a seguir é muito fácil de determinar, é só a gente querer. O problema é que temos o país capturado por uma série de pessoas que vivem à custa do Estado, e que são a questão central. Não foram os que perderam mais no período da Troika mas foram os que fizeram mais barulho, e são aqueles que agora estão a recuperar. Estou a falar de funcionários públicos, médicos, professores, bancos, construtoras, todos esses setores que andam à volta do Estado e que claramente capturaram a política a seu favor.
Os problemas do crescimento económico nem sequer aparecem, aliás neste governo isso tem sido nítido, nem se fala disso. O que estão é outra vez a dar mais aos funcionários públicos, é o problema dos pensionistas, e é isso que interessa em termos políticos. E, pelos vistos, é isso que dá votos. Os políticos não são estúpidos nem são maus, eles jogam um jogo democrático e para serem eleitos têm que fazer isso. Os recursos são canalizados para certas zonas que nem sequer são as mais produtivas do país.
Evidentemente que os pensionistas são pessoas muito respeitáveis e eu não tenho nada contra eles, mas se tirarmos às empresas para dar aos pensionistas, no final não temos nem para uns nem para outros, porque damos cabo das empresas que pagam aos pensionistas. Esta orientação foi muito agravada mas já vinha de trás. Todo o período do endividamento foi nesse sentido.
Há um enviesamento que não é diretamente partidário nem político, é mais um enviesamento social que não está virado para o desenvolvimento. Nós não estamos preocupados com o crescimento do país ou com a sua modernização, estamos preocupados em garantir o consumo, em garantir as pensões e em garantir os salários dos funcionários públicos, e assim não vamos lá.
Tem sido um crítico transversal dos partidos políticos e tem apontado várias falhas ao sistema político português. Sente que uma dessas falhas é haver alguma corrente ideológica que não esteja representada na Assembleia da República?
Não. Acho é que temos um sistema político estranho quando comparado com os outros países da Europa, dada a característica de ser muito estável. É sempre o mesmo. Nós só tivemos três partidos no poder desde a Constituição de 1976. Tivemos o PS, o PSD e o CDS, o que é uma coisa extraordinária numa democracia. Todas as democracias europeias estão a ser devastadas por revoluções políticas com extremistas de esquerda e de direita a subirem. Aqui em Portugal os partidos novos desapareceram, não existem, e continua tudo igual. Nós temos uma solidez política muito forte, o que evidentemente não é um defeito mas sim uma vantagem.
Acha que isso joga a favor de Portugal?
É uma característica. Dos partidos novos que surgiram nenhum conseguiu vingar. O caso mais extraordinário foi o do PRD dos anos 80 que desapareceu e nunca mais ninguém o viu. Desde então temos tido vários movimentos. Mesmo o Bloco de Esquerda, que é talvez o mais recente dos partidos que estão no poder, é simplesmente a UDP que já lá estava desde o princípio, nem sequer é uma novidade, apenas mudou de rosto. Portanto, há uma grande solidez. Eu acho que o problema não é um problema do sistema partidário, nem é um problema parlamentar, acho que é um problema cultural e social.
Tem a ver com as elites que tomaram o poder em Portugal. E os partidos ou jogam com essas elites e as favorecem ou nem sequer são eleitos. O PSD sofreu imenso nas últimas eleições autárquicas precisamente porque com a Troika foi obrigado a confrontar essas elites. Foi visto como mau. Porquê? Porque obrigou os funcionários públicos e os pensionistas a reduzir e isso não é aceitável. Desculpem, é aceitável e tem que ser! Nós não podemos gastar tanto dinheiro, não temos dinheiro para gastar nisso.
Não é que seja maldade mas não há dinheiro. Estamos a estrangular o país, depois não há crescimento económico e não temos investimento nem desenvolvimento. E é esta visão que, no entanto, é dominante, e a democracia funciona. Há outra coisa que é claríssima na nossa democracia: temos um país para velhos, não é para novos. Porquê? Porque os velhos são muitos e votam todos e os novos são poucos e não votam. Temos um país virado para os velhos, por razões estritamente democráticas.
Mas vai ser muito difícil continuar a ter o país virado para os velhos se os jovens não conseguirem arranjar emprego, se não conseguirem investir ou se forem todos embora. Depois claro, os partidos têm que fazer o que têm que fazer para ser eleitos, eles não são maus. Eu acho que os políticos são ótimos, mas se algum deles dissesse alguma coisa do que eu estou a dizer nunca mais era eleito. Eles estão a dizer o que têm que dizer, todos eles, e esse sim eu acho que é o problema do país.
Mas acha que somos um país irremediavelmente de esquerda?
Nós somos um país estruturalmente de esquerda. Eu acho que em Portugal só há socialistas. Há os muitos socialistas e os poucos socialistas, mas só há socialistas desde o CDS até ao Bloco de Esquerda. Nós gostamos muito do Estado a tomar conta da gente, que o Estado nos faça as coisas e que nos dê as coisas. Não somos um país que seja a favor da iniciativa e da resolução. Somos um país que quer que o Estado faça e que o Estado pague. E claro que o Estado e os burocratas adoram isso. Porque o país adora o Estado, quer mesmo o Estado, mesmo que seja pior, não é esse o problema. Eu acho isto assustador.
Porque se no final se dissesse que depois o Estado funciona bem e dá bons serviços, mas não, está toda a gente a dizer mal do Estado, mas toda a gente quer mais Estado. Aliás, ninguém diz mais mal do Estado do que o PCP e o Bloco de Esquerda. Estão sempre a protestar contra o Estado em todas as coisas e estão permanentemente a querer mais Estado. Sem nunca se perceber como é que é possível quererem mais se estão sempre a dizer mal do que há. Não se percebe. Esta contradição existe e as pessoas nem sequer pensam um bocado sobre isto, e é assustador.
Não acha que esse traço cultural da nação portuguesa, de querer mais Estado e ser socialista, resulta como reação ao regime corporativista que tivemos durante 40 anos?
Eu acho que é exatamente o mesmo regime, porque isto é corporativo. As pensões de reforma, os pensionistas, os funcionários públicos, os professores, são corporativos. O nosso socialismo é corporativista. O PCP e o Bloco de Esquerda não são marxistas, são corporativos. O PCP e o Bloco de Esquerda não defendem os pobres, defendem os funcionários, defendem os pensionistas, não defendem os pobres.
Não estão preocupados com os pobres, estão preocupados com as cliques que os alimentam. São esses que votam neles, são esses que os apoiam. Depois chamam-lhe “os trabalhadores”, mas não são “os trabalhadores”, são alguns trabalhadores. Porque para esses terem essas regalias todas, há uma enorme quantidade de contratados a prazo e a recibos verdes e etc., que não têm nenhuma segurança, mas sobre esses ninguém fala, ou quando fala é para dar mais regalias aos primeiros.
Nós temos uma lei laboral que está claramente a favor dos sindicatos, mas nos sindicatos não estão os tipos dos recibos verdes que nem sequer têm dinheiro para pagar a conta do sindicato. Portanto, são os outros que nem sequer são sindicalizados. Portanto, o que nós temos é um corporativismo. O Salazar percebeu melhor [do que eles] e nós estamos simplesmente a copiar o que o corporativismo fez. O nosso socialismo pode-se-lhe chamar corporativismo, é exatamente a mesma coisa.
Se Portugal é um país tão à esquerda, que lacunas é que tem a direita portuguesa para não mudar isso?
Bem, primeiro é preciso dizer que existe uma direita que provavelmente nem sequer existe. Como disse, é tudo intelectualmente corporativo. A nossa direita também é corporativa e, portanto, nesse sentido, não existe. O que nós nunca tivemos em Portugal são os liberais, não há liberais em Portugal. Aliás, há poucos liberais na Europa mas em Portugal nunca houve liberais, não existem.
Conheço um ou dois mas são um bocadinho isolados e folclore. Portanto pessoas que sejam a favor da liberdade, da iniciativa privada, não temos. Mesmo os grupos económicos, mesmo os empresários, querem o Estado a ajudá-los, querem é estar sentados no colo do Estado. Portanto, são todos corporativos.
Não existem liberais. Eu nem sequer estou a criticar, estou simplesmente a constatar. Eu não sou liberal e não estou a criticar por não haver liberais. É um espetro político que é truncado e, portanto, não é um problema da direita portuguesa. Não existe sequer uma direita portuguesa. A nossa direita, a que nós chamávamos “direita” e que a esquerda chamava “direita”, era corporativista. E este sistema também é corporativista, portanto é igual. É só um outro tipo de corporativismo talvez.
Não estou a dizer que a democracia não seja preciosa. Agora, a atitude, a captura dessa democracia por parte de grupos instalados, é exatamente o mesmo que havia no tempo do sistema corporativo, que era completamente diferente porque era corporativista e ditatorial. Mas esse traço é um traço comum.
O seu nome surge normalmente por causa de declarações politicamente incorretas. Acha que atualmente há mais tolerância na opinião pública para esse tipo de divergência ou acha que tem havido uma certa cruzada pelo politicamente correto?
Mais do que havia quando? Nós vivemos numa situação de liberdade de imprensa e de liberdade de opinião. Mas, de facto, há uma certa ditadura intelectual, não uma ditadura formal. Eu posso dizer o que quiser e às vezes digo coisas que as pessoas consideram horríveis e ficam horrorizadas, e depois andam aí aos gritos. Porque de facto no meio de uma atitude formalmente de liberdade existe um pensamento único em algumas matérias que é quase asfixiante em certos aspetos. Eu não me incomodo com isso mas é claro que me afasta de uma enorme quantidade de possibilidades sociais, culturais e intelectuais. Só quem pensa de uma certa maneira é que é aceite nesses meios.
Se bem que essa ditadura de pensamento único também se tem sentido em países de maior dimensão. É algo que mesmo em Inglaterra se tem falado bastante…
Sim, nós estamos agora a assistir a um outro problema que é muito mais complicado e que é muito pior do que a nossa situação. É um fenómeno diferente, embora pareça semelhante, que ocorre em países que estão drasticamente divididos sobre questões. Há questões que dividem o país de tal maneira, que qualquer opinião que seja do outro lado é insuportável. E isso é muito pior e não acontece aqui em Portugal. Esta ditadura intelectual, que acontece sempre de alguma maneira, onde sobre certos assuntos não se pode dizer o contrário, aqui em Portugal às vezes é um bocadinho asfixiante.
Falando em questões que podem dividir um país. Como é que assiste ao recente debate em torno da legalização da eutanásia e da cannabis para fins medicinais?
Eu acho que existem certas pessoas em Portugal que são profissionais da subversão, que precisam de ter algum assunto para aparecerem. Houve tempos em que lutavam pela democracia, pelos direitos humanos, pela liberdade, e nessa altura estavam a tratar de assuntos sérios e significativos. Quando isso acabou ficaram desempregados. Então agora andam à procura de causas porque têm que ter causas para defender, são profissionais da subversão.
Relativamente a estas causas, a primeira coisa que eu noto é que não têm nada a ver com a sociedade portuguesa. Não foi a sociedade portuguesa que levantou os problemas, foi um conjunto de “intelectuaizinhos” no cantinho deles que se lembraram de levantar o problema e depois dizer que é muito fraturante. E estão com isto sem o mais pequeno interesse pela sociedade portuguesa. Eles nem sequer olham para os problemas.
Não é um problema do real, é inventado. Vimos isso, por exemplo, no caso do aborto onde o tema central da campanha foi uma coisa que não existia que era mulheres na cadeia. Eles estavam todos contra a existência de mulheres presas por aborto. Não havia uma. Não era um problema real, era uma invenção. Portanto, não era para libertar mulheres que estivessem presas por terem cometido aborto, era porque dava jeito. Houve muita gente que fez carreira política à volta daquilo. É o que me assusta nestas coisas e em muitas outras, até económicas.
Por exemplo, o que se passa com o salário mínimo é uma coisa parecida com esta. A maior parte das pessoas está a usar o salário mínimo como se fosse um método de combate à pobreza e ao subirem o salário mínimo estão a aumentar a pobreza, estão a criar mais desemprego, estão a criar problemas. Mas nunca se deram ao trabalho de ir ver.
Limitam-se a inventar uma retórica que parece plausível e depois bombardeiam os meios de comunicação social com essa retórica, e a realidade passa completamente ao lado. Isto é verdade nas questões fraturantes e noutras políticas. Mas não é só em Portugal, não nos devemos chocar. Assusta- -me a não existência desta denúncia, não aparecer ninguém plausível a contrariar o disparate. Esse ao menos que seja ouvido.
Ou então aparece alguém esquisito como o César das Neves, que é um aberrante que está num cantinho e que diz coisas polémicas. Porque o resto, a generalidade das intelectualidades vai a correr atrás da procissão como se aquilo fosse uma coisa com pés e cabeça e não é.
Depois sofremos as consequências e a desgraça está por aí. E depois estas pessoas aprovam a lei e nunca mais ligam ao assunto, porque o problema deles nunca foi as crianças ou as mulheres, foi sempre aprovar a lei. Só estavam interessados em aprovar a lei e ter uma vitória para poder pôr no currículo. E agora com a eutanásia é a mesma coisa. De facto o país não muda, nestas coisas não muda.
É considerado mais conservador nos costumes e mais liberal na economia. Vê isto como uma dicotomia?
Não, repare, curiosamente disseram exatamente isso, por exemplo, do Papa João Paulo II e de outras pessoas. Portanto é normal. Eu tento sempre seguir a posição da Igreja em todas as áreas. Nas áreas económicas, que é o que tenho estudado, e também nas áreas da vida.
Na área económica em que é que isso se consubstancia?
Consubstancia-se na doutrina social da Igreja e nas posições que a Igreja tem apresentado sobre o sistema económico e sobre o sistema da sociedade em geral. Em termos ideológicos não sou liberal nem nunca fui. Se sou de alguma coisa é da doutrina social da Igreja, quer em termos económicos quer em termos familiares e sociais em geral. É essa a minha orientação e sempre procurei que assim fosse. Sou cristão, sou católico, e sigo a orientação que a Igreja dá para estes assuntos. Na área económica com mais profundidade porque, apesar de tudo, sou economista.
Nas outras áreas não sou especialista mas também já tenho sido chamado a falar e a escrever sobre esses assuntos. Portanto até nisso já tenho tido que estudar e analisar e mais uma vez digo que a Igreja tem sobre estes assuntos um corpo de reflexão e de elaboração muito mais profundo e muito mais vasto que a maior parte das outras orientações que andam por aí, que normalmente são um bocadinho superficiais e oportunistas. A Igreja não, já cá anda há muitos anos e portanto tem de ser muito mais profunda e radical do que os outros.
Sendo um conhecido devoto da fé cristã católica, como é que avalia o papel da Igreja no nosso país?
A Igreja tem um papel absolutamente central no nosso país. É indispensável, por exemplo, na ação social. Ao que nós chamamos IPSS’s é uma maneira simpática de dizer as paróquias. A esmagadora maioria das IPSS’s são católicas ou estão ligadas a organizações católicas. O mesmo acontece na educação e na saúde. E estamos a falar em termos estritamente sociais, mas não é só isso. A Igreja é importantíssima em termos espirituais, no acompanhamento das famílias e das pessoas. Em Portugal é uma instituição extraordinariamente importante que a intelectualidade portuguesa hostilizou durante muito tempo. E sempre que hostilizou deu-se muito mal.
E acho que uma das principais razões porque a democracia funcionou a partir de 1974 – e por acaso aí sigo em grande linha o Doutor Mário Soares que foi ele quem me explicou isto – foi porque se percebeu, em particular a esquerda percebeu, que não se podia atacar a Igreja e o Exército. Que era o que se tinha feito em todas as tentativas democráticas anteriores. Tinha-se sempre atacado a Igreja e o Exército por razões tontas, porque, de facto, politicamente não havia razão, e acabou sempre por se falhar. Desta vez felizmente não se fez isso.
A democracia tem colaborado muito bem com a Igreja. E isso é extraordinariamente inteligente, porque de facto, a Igreja é indispensável para a sociedade num país tradicionalmente católico. A Igreja sempre procurou manter-se e tem-se mantido fora da política. E os portugueses católicos têm- -se espalhado por todos os partidos do espectro político, do Bloco de Esquerda ao CDS.
Portanto a Igreja deverá ter sempre um papel social no país?
A Igreja tem um papel religioso, é esse o seu papel. A Igreja é uma entidade religiosa da qual sai evidentemente uma atitude moral deduzida da posição religiosa, como acontece com as outras religiões, que depois tem uma intervenção social. E, de facto, por falhanço do Estado, que normalmente não consegue cumprir as funções que diz que vai cumprir, a Igreja acaba por ser essencial.
Repare que foi exatamente isso que aconteceu com a crise que nós tivemos em 2011. O Estado dizia que tratava de tudo mas quando bateu a crise estava completamente estrangulado em termos orçamentais e quem salvou as pessoas foram as famílias e a Igreja.
Posto este retrato, sente-se um otimista ou um pessimista em relação ao futuro da nação?
Eu sou sempre otimista. Portugal é um país extraordinário que já cá anda há muitos anos. Tem oitocentos e tal anos de história e conseguiu passar coisas espetaculares. É uma pena estarmos a cair nos mesmos erros que ainda há muito pouco tempo cometemos, mas o mesmo se pode dizer da economia americana, da economia inglesa ou da economia francesa.
Portanto, não é uma característica dos portugueses. Um dos grandes defeitos dos portugueses é estarem sempre convencidos que isto vai correr mal, que o país não presta, que os políticos não são bons, que os empresários são umas bestas, que os trabalhadores são aselhas … Eu não sou nada nesse sentido. Acho que o país tem características extraordinárias.
Era bom que não tivéssemos outra crise a uma distância tão recente mas já estamos outra vez a cair no mesmo disparate. Era bom que tivéssemos um bocadinho mais de atenção e é sobre isso que eu protesto e falo. Mas o país é extraordinário e não estou nada convencido de que isto vá correr mal, não é isso que eu estou a dizer. A verdade é que podia correr bastante melhor.






