“Deixai a China dormir. Pois quando a China acordar, o mundo tremerá”. É um célebre aviso atribuído à mais marcante personagem do séc. XIX, Napoleão Bonaparte. Atualmente, estando este Gigante já muito bem desperto, é difícil escapar à ideia de que a China irá (ou que até já conseguiu) dominar o mundo. Desde artigos nos mais prevalentes jornais até àquele tio que é estranhamente obcecado com teorias da conspiração, por vezes parece que um futuro em que todos falamos mandarim é simplesmente inevitável. No entanto, apesar de ser inegável que o país alcançou uma posição de relevância no palco internacional, possui ainda alguns entraves à sua conquista do mundo. Apresento aqui um dos mais pertinentes obstáculos para a hegemonia chinesa: a sua fragilidade demográfica.


Comecemos pelo imprescindível contexto histórico. O período entre 1839 e 1949 é conhecido na China como o “Século da Humilhação”. É uma época marcada por subjugação a potências estrangeiras, começando com a Primeira Guerra do Ópio, passando pela opressão do “Império do Sol” (especialmente durante a Segunda Guerra Mundial) e apenas terminando após a expulsão dos japoneses e estabelecimento da República Popular da China. Neste novo clima de relativa segurança, a taxa de fertilidade da nação, que já era elevada, subiu para mais de 6,1 nascimentos por mulher e quem fosse mãe de mais de 6 filhos era celebrada como heroína, pelo regime e pelo povo, por estar a contribuir para uma futura China mais poderosa e incapaz de sofrer as humilhações do passado. Contudo, certamente influenciados pela Grande Fome Chinesa, os líderes comunistas acabaram por considerar este crescimento populacional insustentável. Dá-se então início, nos anos 70, à implementação de políticas de controlo de fertilidade, sob o slogan “wan, xi, shao” (“later, longer, fewer”). O governo chinês incentivava a população a casar mais tarde, alargar o intervalo de tempo entre cada filho e a gerar menos descendência. Tudo culmina quando, perto do fim da década, é introduzida a notória Política de Filho Único, tornando-se assim ilegal um casal conceber mais do que 1 filho. Desta decisão controversa resultam duas alarmantes consequências.


Por um lado, proliferou o aborto seletivo. Dada a realidade cultural da nação chinesa (como, por exemplo, serem os homens a carregar o nome e o legado de cada família), os casais chineses demonstravam uma esmagadora preferência por descendência masculina, preferência que ainda hoje se mantém. Assim, caso descobrissem que o seu futuro filho seria do sexo feminino, muitos optavam pelo aborto. Esta prática originou a situação atual de desequilíbrio entre sexos na natalidade do país, atingindo o seu pico em 2004, no qual nasciam 121 rapazes por cada 100 raparigas. Hoje, a pressão já se faz sentir nas gerações mais jovens, como prova o advento e aumento de popularidade de serviços de “aluguer de namoradas”. Isto, numa sociedade que dá uma profunda relevância à constituição de família, é receita para depressão, alienação e agitação social.

Por outro lado, com a ajuda de uma esperança média de vida crescente, provocou um envelhecimento populacional sem precedentes. Passar de mais de 6 filhos por mulher para 1.6 filhos (isto se acreditarmos nos dados oficiais do governo chinês, dados que são frequentemente postos em causa por especialistas, que apontam para 1.1 filhos por mulher) em apenas 30 anos permitiu à China deter uma população ativa que representava uma enorme parte da população total. Isto é uma das principais razões para o estupendo crescimento económico do país: uma vasta e jovem força de trabalho, com poucos filhos para cuidar. Porém, como é evidente, este “empréstimo populacional” tem de eventualmente ser pago. É de esperar que, nos próximos 20 anos a China duplique o seu número de idosos (>64 anos). A Alemanha (um país bastante envelhecido) demorou 60 anos a fazê-lo. Prevê-se que, na China, em 2050, a população idosa represente quase 30% da população total (em vez dos atuais 12%). Em 2018, por cada reformado, havia 2.8 trabalhadores. Em 2050, espera-se que este número desça para 1.3 trabalhadores.

Para além de abrupto, este envelhecimento incide num país no qual, apesar do admirável crescimento económico, o PIB per capita continua a ser baixo. O suporte destes futuros reformados exigirá um esforço hercúleo da sociedade chinesa. A futura crise demográfica chinesa é inevitável: mesmo que as tentativas do Partido para estabilizar a taxa de fertilidade (tal como a tardia permissão, a partir de 2013, de 2 filhos por casal) sejam bem-sucedidas, os bebés que nasçam nos próximos anos ainda demoram pelo menos 20 anos a entrar no mercado de trabalho, pelo que o choque demográfico sentir-se-á na mesma.


Como consequência, a China encontra-se numa corrida contra o tempo. Caberá ao governo chinês utilizar os anos que lhe restam antes do choque para mitigar os seus efeitos. Este é um dos objetivos do programa “Made in China 2025”, que visa ajudar a alterar estruturalmente a indústria produtiva chinesa, tornando-a menos dependente de grandes quantidades de mão-de-obra. Outro projeto impulsionado pelo Partido é a “Nova Rota da Seda”: uma ambiciosa iniciativa de expansão e estabelecimento de ligações comerciais diretas com países da Ásia Central e África, que possuem populações jovens mas relativamente pobres e que, por isso, são possíveis economias emergentes que podem acabar por reforçar os fundos da máquina estatal chinesa. Numa onda de pensamento menos otimista, do cada vez maior desespero do governo chinês pode surgir uma propensão para o conflito armado. Expansões territoriais para a Ásia Central ou até mesmo para a Sibéria são uma possibilidade, dada a esmagadora vantagem numérica que a China possui sobre os seus vizinhos.


Em suma, o Gigante acordou, mas em larga medida graças a uma demografia insustentável no longo prazo. Depara-se, então, com um grande problema que, se não resolver eficazmente, pode originar uma multiplicidade de cenários prejudiciais tanto para os seus cidadãos como para o resto do mundo. Dado o avassalador tamanho e influência da China, a sua crise demográfica deverá ser atentamente acompanhada pela comunidade internacional, de modo a evitar possíveis crises humanitárias e/ou mesmo eventuais agressões bélicas.