Opinião de Sara Ârede
Também incluído no FEPIANO 45, publicado em Dezembro de 2021
Após meses forçados a realizar espetáculos online, os teatros voltam a abrir as portas ao público. O Teatro Nacional de São João é o local ideal para retomarmos velhos hábitos ou para começarmos outros novos. Neste espírito, tive a oportunidade de assistir ao trabalho da Companhia ASSéDIO que deu vida à obra “O Pecado de João Agonia”, de Bernardo Santareno.
O autor viveu a época salazarista sob a censura da Igreja e do regime em vigor. No entanto, encontrou na escrita o instrumento que necessitava para defender os seus ideais. Assim, apresenta ao público temáticas ainda hoje consideradas “tabu”: desde homoerotismo e homofobia, a crimes de ódio, pedofilia e outros valores vinculados a um Portugal retrógrado e beato.
Feita esta contextualização, só posso descrever este espetáculo como incrível! A atenção da plateia é arrebatada de imediato.
O cenário, os figurinos, os maneirismos e entoações fizeram-me viajar para o interior de Portugal, na década de 60. Somos, desde o primeiro momento, contagiados por uma sensação de que a ação irá convergir para uma tragédia. Qualquer suposição quanto a tal é imediatamente confirmada, não só pela apresentação da família cujo apelido é Agonia, mas também por uma série de superstições e agoiros expressos por Rita, mãe de João, e Teresa, irmã deste, com uma emoção excessiva que rasa o simulado, mas consistente com a ideia de feminilidade propagada pelo poder patriarcal.
A ação vai-se desenrolando através do que não é realmente dito, de um silêncio particularmente barulhento e de entrelinhas denotadas de uma genial ironia. Aos poucos, vamos assistindo ao acumular da agonia de João que vê em tudo o reflexo do seu “pecado”. Porém, com ele, senti criar uma relação de quase confidência, pois, numa casa repleta de família e amigos, apenas eu, no meu lugar, tão isolada como ele, conseguia vê-lo verdadeiramente.
Inevitavelmente, o segredo acaba por ser exposto: João Agonia é homossexual.
A partir deste momento, a história evolui num ritmo frenético e João vê os seus medos tornarem-se realidade. Ao longo da peça, assistimos a atos de violência doméstica, luxúria e traição; no entanto, os homens da família veem na orientação sexual de João “o pior pecado de todos”, o que mais danos causa , nomeadamente, na virilidade dos machos Agonia. Sofredores de uma masculinidade atualmente apelidada de frágil e tóxica, decidem pôr fim aos “humores” de João, um ato visto, por eles, como benevolente.
Quando as cortinas se fecham, somos assolados pela impressionante atualidade da peça que, meio século depois, retrata uma situação perfeitamente possível de integrar, talvez não a primeira página de um jornal, mas decerto uma notícia intermédia, entre a vitória da equipa X da Liga dos Campeões e o anúncio de que o nosso craque vai ser novamente papá.
Esta peça realça que a necessidade de mudar mentalidades persiste, dado que, na atualidade, tanto Bernardo Santareno como o jovem João Agonia, permaneceriam sem encontrar uma realidade que os aceitasse abertamente. Os tempos mudaram, mas as vontades são as mesmas desde os primórdios: acabar urgentemente com a discriminação desta comunidade em particular.
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