Opinião de Sofia Alves
Artigo exclusivo do site, publicado em Janeiro de 2025
A literacia mediática, ou media literacy, tornou-se um termo central nos debates sobre o consumo de informação na era digital. No entanto, o seu significado tem-se perdido em definições vagas e usos inadequados. Afinal, o que é realmente a media literacy e porque é que está a “morrer”?
Atualmente, vivemos num paradoxo informacional: nunca tivemos acesso a tantos dados e, ao mesmo tempo, nunca estivemos tão longe de os compreender. Há que perguntar: quantos de nós param para pensar no que realmente estamos a ver? Quantos de nós pausam um tiktok e refletem sobre a sua mensagem antes de passar para o seguinte? Entre algoritmos que moldam o nosso acesso a notícias e uma cultura que elege quantidade face à qualidade, as transformações no consumo de mídia estão a redefinir por completo a nossa perceção do mundo.
A verdade é que, nos dias de hoje, criar conteúdo é um emprego, não um hobby, e nunca esteve tão longe de ser uma paixão. O nosso shift de preferência de vídeos de longa duração para vídeos curtos trouxe novas regras – um momento viral não assegura uma carreira, e o algoritmo está concebido de forma a que seja necessário publicar regularmente para garantir uma imagem pública consistente. Neste contexto, a produção de conteúdo tornou-se numa indústria impulsionada por estratégias de “prender” quem está a ver, muitas vezes em detrimento da qualidade e profundidade do conteúdo produzido.
“O verdadeiro preço a pagar é o desaparecimento da nossa vontade de questionar, ameaçando profundamente a integridade do pensamento independente”
Assim, se esta atividade é um trabalho, o produto final assume a forma de um serviço ao público que, como qualquer outro, implica uma remuneração. Contudo, neste caso, o preço a pagar não é monetário e a troca é sobretudo inconsciente. Aceitamos o “conforto” do algoritmo – vídeos e textos que confirmam as nossas já existentes opiniões – deixando a visão crítica e a reflexão sobre outros pontos de vista fora da nossa bolha. O verdadeiro preço a pagar é o desaparecimento da nossa vontade de questionar, ameaçando profundamente a integridade do pensamento independente.
A popularização do binge-watching por serviços de streaming, como a Netflix, reformulou as interações do público com as histórias representadas. O intervalo tradicional de reflexão e de discussão entre episódios foi substituído por um estímulo contínuo. A falta de uma pausa para interpretar as ações das personagens e até para criar teorias sobre o que se passará de seguida transformou este tipo de entretenimento num passatempo predominantemente passivo. O resultado é uma audiência que absorve mais e questiona menos, perpetuando padrões de pensamento conformista e superficial.
Este fenómeno tem implicações tanto para o público, como para os escritores e produtores. Por um lado, os espetadores prestam cada vez menos atenção às camadas narrativas e são mais propensos a consumir sem análise crítica, reduzindo o entretenimento a algo quase mecânico. Por outro lado, os criadores veem-se pressionados a adaptar os seus trabalhos aos novos modelos de consumo, tendo muitas vezes de dumb down histórias, personagens, e mensagens para atender à procura por conteúdo facilmente digerível. A consequência principal é a queda num ciclo vicioso: um público cada vez mais conformado alimenta um mercado que prioriza “mais” em detrimento de “melhor”, enquanto obras mais profundas e desafiadoras lutam para encontrar o seu espaço neste mercado saturado.
Depois de delineadas as dinâmicas do consumo moderno de mídia e o contexto deste artigo, é possível direcionar a nossa atenção para o problema em causa: a morte da media literacy. Embora frequentemente mencionada em debates sobre a era digital, esta questão tem sido tratada de forma superficial e, por vezes, errónea. A realidade é que a media literacy não está a morrer agora – sempre esteve, se é que alguma vez viveu. O que observamos hoje é uma intensificação desta crise intemporal provocada pelo acesso mais amplo às suas consequências devido, nomeadamente, à globalização, bem como uma consciência mais afinada das mesmas.
“A realidade é que a media literacy não está a morrer agora – sempre esteve, se é que alguma vez viveu”
Ademais, o conceito em si tem sido cada vez mais apropriado para fins que distorcem o seu propósito original. Em vez de incentivar o diálogo crítico, o público preocupado tem-se servido dele para se opor a opiniões ou interpretações diferentes das suas, alimentando uma tendência de silenciamento. Aqui, a crítica do material base é desqualificada sob o rótulo de iletrada, contribuindo para a marginalização do pensamento crítico. De facto, este snobismo em relação ao assunto incentiva um movimento cansado que se opõe por completo à formação de opiniões próprias.
Cada vez mais procuramos programas de televisão, filmes ou até livros que nos permitam “uma hora de não pensar”. O público vê, agora, o entretenimento como um método de relaxar em vez de uma arte que deve ser interpretada. Esta postura não apenas desvaloriza o potencial artístico e narrativo do entretenimento, como também enfraquece a capacidade do público de reconhecer mensagens subjacentes, metáforas ou críticas sociais implícitas.
A famosa piada “às vezes as cortinas são só azuis” – que goza com a interpretação literária excessiva – é um bom exemplo do ceticismo em relação à análise crítica. Apesar de ser verdade que nem todos os detalhes numa obra refletem um significado profundo e que os autores nem sempre são intencionais nas suas descrições, o reducionismo sugerido pela frase promove uma abordagem mais preguiçosa que não considera aspetos inconscientes que podem surgir devido ao contexto histórico ou social em que o escritor se insere.
Há, de facto, uma confusão crescente entre a objetividade da media literacy e a subjetividade da reading comprehension, cujo tipo de iliteracia é mais literal. Por exemplo, a audiência que recebeu a série The Boys dividiu-se em dois grupos: aqueles que identificaram a sátira intencional do personagem Homelander, um dos principais antagonistas, e os que o denominaram como um “anti-herói incompreendido na sociedade atual”. Ambos praticaram o conceito de literacia mediática, tendo feito mais do que apenas “ver” a série, mas apenas os primeiros revelam capacidade de compreender e identificar as intenções por detrás do personagem. Na sua essência, a incapacidade de reconhecer a sátira ou a crítica decorre do analfabetismo literal – uma falha em reconhecer as intenções explícitas e implícitas por trás da narrativa.
Ainda assim, esta questão não está isolada e é agravada pela falta de literacia mediática, não conseguindo o público situar as histórias que vê num contexto social, cultural ou político mais amplo, a menos que este seja tornado óbvio pelo guião.
A verdadeira literacia mediática é inerentemente desconfortável. Exige esforço, desafia crenças e requer a vontade de nos questionarmos. Este desconforto, embora essencial para a educação, é cada vez mais visto como um obstáculo num mundo que prioriza o fácil e o cómodo. Ao tentar escapar do peso da análise ou da crítica, o público abdica de um elemento essencial da experiência humana: a procura por significado.
A media literacy não passa por ter as opiniões mais corretas, mas sim pela capacidade de formular indagações. Cabe a cada um de nós, de forma individual, tirar um momento para refletir sobre se temos, de facto, refletido. Se a resposta é não, é muito simples começar – basta perguntar: “Porque é que isto foi feito?”. Seja um filme, um livro ou até um meme numa rede social, o ato de questionar a sua origem e propósito permite-nos colocá-lo num panorama social mais amplo. Quem o fez? Que ideias reforça ou desafia? Qual é a situação atual do mundo em que se enquadra?
Francisco
20 de Janeiro
Um artigo tão bom sobre algo tão estruturante!
Natan Melo
17 de Janeiro
“A realidade é que a media literacy não está a morrer agora – sempre esteve, se é que alguma vez viveu”
Infelizmente, acredito que seja isso mesmo. Num terreno onde a quantidade precisa ser cada vez maior, é fértil o crescimento do uso de IA pra criação de conteúdos, como já está sendo visto em várias áreas do entretenimento.
Vitor Alves
17 de Janeiro
👏👏👏