Conduzida por Luísa Maitto e Rute Costa
Com o apoio de Ângela Coelho, Clara Campos, Inês Carneiro e Rui Pedro Graça
Também incluída no FEPIANO 46, publicado em Março de 2022
João Moreira Rato, chairman do Banco CTT desde 2019, foi escolhido pelo ex-ministro das Finanças, Vítor Gaspar, para dirigir os destinos da emissão da dívida pública portuguesa e o regresso de Portugal aos mercados internacionais, enquanto Presidente da Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública (IGCP), entre 2012 e 2014. Licenciado em Economia pela Universidade Nova de Lisboa, Master Of Arts em Economia e Doutorado em Economia com especialização em Finanças pela Universidade de Chicago, trabalhou em instituições como o Lehman Brothers e a Goldman Sachs. Nesta entrevista, questionámo-lo sobre o crescimento económico português durante a última década e os desafios que Portugal e a Europa terão de enfrentar nos próximos anos.
Passado mais de 20 anos desde a implementação da moeda única, acha que esta foi um fator importante para o desenvolvimento económico de Portugal, ou acha que, pelo contrário, o inibiu?
Isso é uma grande pergunta! Eu acho que a moeda única teve um impacto grande no desenvolvimento do comércio de Portugal com a Zona Euro, o que tornou o nosso setor exportador mais forte. O nosso setor exportador teve que se adaptar a mercados mais exigentes. Essa adaptação foi muito importante para o seu desenvolvimento e, nesse sentido, para o desenvolvimento da nossa economia. Por outro lado, também facilitou o movimento dos capitais entre a Europa e Portugal, e facilitou também a acumulação de dívida privada e pública que provavelmente não teria acontecido da mesma forma se não tivéssemos entrado na Zona Euro. A entrada na moeda única criou uma maior exigência para a economia portuguesa e essa exigência teve os seus custos. Eu acho que um dos custos que se pagou foi a necessidade de haver um ajustamento económico, entre 2011 e 2015. Houve outras ameaças de ajustamento económico antes de 2011, mas nada como entre 2011 e 2015.
Portanto, houve benefícios com a entrada na moeda única, a economia respondeu bem do ponto de vista do setor exportador a uma maior exigência por parte dos mercados europeus; mas, por outro lado, permitiu também uma acumulação grande de dívida pública e privada, sem o correspondente aumento de capacidade produtiva, o que provocou um grande ajustamento entre 2011 e 2015.
Desde 1999 que o nosso país regista uma convergência praticamente nula com as principais economias europeias. Do seu ponto de vista, quais são os principais fatores que originaram este cenário?
Os principais fatores são a falta de competitividade em alguns setores da economia, a falta de mobilidade do fator trabalho dentro de e entre alguns setores, a fraqueza, desde há uns anos para cá, do investimento e, por outro lado, a falta de habilitação da gestão de muitas empresas em Portugal. Em Portugal há empresas, no mesmo setor, muito produtivas e outras muito pouco produtivas. Isso só pode acontecer se houver alguns obstáculos à mobilidade do trabalho porque, dentro do mesmo setor, há trabalhadores muito pouco produtivos numas empresas e muito produtivos noutras. Normalmente, as mais produtivas são as maiores empresas e as empresas mais exportadoras, portanto há aqui um obstáculo, primeiro, à mobilidade de capital, porque as empresas mais fracas deveriam deixar o setor e libertar a capacidade produtiva e de capital para as restantes empresas, e, por outro lado, há também uma dificuldade de mobilidade do trabalho de umas empresas para as outras, o que tem que ver com a segmentação que existe no mercado do trabalho, com uma diferença muito grande que existe no tipo de proteção ao trabalho entre os contratos permanentes e os contratos temporários. Por outro lado, uma boa parte das empresas portuguesas ainda tem gestores com um nível de formação, quando comparados com a Europa, relativamente mais baixo. Além disso, alguns setores têm níveis de concorrência muito baixos. Portanto, toda essa rigidez ainda existe na economia portuguesa.
Há uma rigidez grande em muitos setores da economia portuguesa
Mesmo o mercado para gestores não é suficientemente ativo, porque a formação universitária, como vocês são testemunhas disso, tem aumentado imenso, o que não se tem espelhado na formação dos gestores. O facto de a gestão de algumas empresas não rodar o suficiente ou não ser suficientemente posta em causa e manterem-se ainda gestores com formação baixa em algumas empresas: Resumindo, penso que há uma rigidez grande em muitos sectores da economia portuguesa, tanto ao nível do mercado dos gestores, como ao nível do mercado de trabalho em geral, como ao nível do mercado de capital, e essa rigidez penso que está por detrás da existência de um diferencial muito grande entre empresas do mesmo setor em termos de produtividade. Se todas as empresas convergissem para a produtividade das empresas mais produtivas, Portugal teria crescido muito mais nestes últimos dez anos e a produtividade da economia portuguesa estaria a convergir para a produtividade das economias europeias, em vez de estar a divergir, já que hoje a população tem um nível de formação maior e há mais investigação e desenvolvimento do que havia há dez ou quinze anos.
Em setembro de 2012, tomou posse como Presidente do Conselho de Administração da Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública (IGCP). Durante o período em que se encontrou à frente desta instituição, qual acha que foi o seu maior desafio?
O maior desafio foi, sem dúvida, desenhar um programa sustentável e consistente de volta aos mercados financeiros para que conseguíssemos que os investidores internacionais voltassem ao mercado da dívida portuguesa. Para isso tivemos de lhes explicar que tínhamos um plano sólido de volta aos mercados e que não haveria acidentes de curso; que depois de se fazer uma ou duas emissões de dívida pública, algumas das reformas não voltariam para trás, e que, portanto, a nossa presença nos mercados seria sustentável ao longo do tempo. O mais difícil foi convencer os investidores que esse seria o caso.
A subida das taxas de juro (…) não deveria pôr em causa um certo ritmo de diminuição da dívida pública
A partir de 2011, até ao início da situação pandémica, Portugal desempenhou grandes esforços para a redução do peso da sua dívida pública em percentagem do PIB. Qual pensa ser o melhor caminho para se atingir este fim? O fomento do crescimento económico ou a perseguição a todo o custo de um superavit orçamental?
Eu penso que fomentar o crescimento económico a médio e a longo prazo é o fator essencial. Mas no curto prazo, para manter a situação sustentável, é necessário manter a disciplina orçamental. É a disciplina orçamental que nos garante proteção contra mais um período de ajustamento económico como os que aconteceram no passado e que provocaram desemprego e reformas muito duras para a população. Agora, deveriam ser feitas reformas para que no médio-longo prazo esse seguro fosse substituído por crescimento económico, já que este permite sustentar mais dívida pública e substitui a necessidade por disciplina orçamental, que só funciona como uma salvaguarda de curto prazo.
Tendo em conta o aumento das taxas de inflação a nível europeu, existe a possibilidade de o Banco Central Europeu (BCE) subir as taxas de juro. Esse novo panorama tornará mais difícil os objetivos de diminuir o peso da dívida pública nacional?
O ajustamento nas contas públicas que foi conseguido nos últimos anos foi, em boa parte, devido às descidas das taxas de juro. Portanto, vai-se tornar mais difícil daqui para a frente, com as taxas de juro a subirem, conseguir esses superavits nas contas públicas de que estava a falar. Em períodos de subida de taxas de juro vai ser mais difícil conseguir as poupanças orçamentais que se conseguiram até aqui. A subida das taxas de juro torna essas poupanças mais difíceis, mas não deveria pôr em causa um certo ritmo de diminuição da dívida pública. O que a subida das taxas de juro pode provocar é que voltem a existir diferenciais de taxas de juro entre os diferentes países da Zona Euro e que, mais uma vez, se criem perceções de risco diferentes para os diferentes países da Zona Euro e, nesse caso, Portugal, com um nível de dívida pública elevado, está numa posição relativamente frágil e isso pode pôr em causa a colocação de dívida pública no mercado que é necessária para refinanciar tem cada ano essa grande quantidade de dívida. Agora, há neste momento 2 instrumentos de política nas mãos do BCE: as compras de obrigações e as subidas das taxas de juro. O que pode acontecer é que, para combater a inflação, o BCE suba as taxas de juro, mas que utilize as compras de obrigações de forma a combater o alargamento dos diferenciais de taxas de juro entre os diferentes países da Zona Euro. Por exemplo, se o BCE comprar mais obrigações italianas, pode ter influência sobre o diferencial das obrigações italianas vs obrigações alemãs, e pode controlar esse diferencial ao mesmo tempo que sobe as taxas na Zona Euro como um todo. No fundo, nesta crise ao contrário da anterior, o BCE tem dois instrumentos para dois possíveis objetivos de política, sendo o primeiro o combate à inflação e o segundo o combate a uma grande diferença nas taxas de juro entre os diferentes países da Zona Euro.
Existirem investidores com diferentes tipos de objetivos (…) é muito importante
Aquando da resposta à crise pandémica, ocorreu a emissão de dívida conjunta por parte dos Estados Membros da União Europeia. Pensa que isso pode ser um importante passo para uma futura maior integração europeia? Ou tratar-se-á de um acontecimento isolado?
Eu acho que é um precedente muito importante, que penso não ser obrigatoriamente um ato isolado. No fundo, abriu-se aqui uma possibilidade para, em certas circunstâncias, em nome da solidariedade europeia, se emitir dívida conjunta e resolver a questão da tal perceção de risco diferenciada entre os vários países da Zona Euro. Agora, este precedente tem uma limitação: depende do julgamento político, em cada período, dos vários parceiros europeus. Ou seja, não existe nenhum mecanismo que o garanta: vai depender do acordo comum político entre os vários países da Europa, o que faz com que estejamos ainda dependentes das circunstâncias políticas de alguns deles em cada momento do tempo. Se estas forem contrárias a este tipo de emissão de dívida, numa altura de crise, podemos ter um problema. No caso da crise pandémica, não tivemos, porque se tornou consensual, entre os vários eleitores da Zona Euro, que fazia sentido emitir essa dívida em conjunto, dadas as circunstâncias da pandemia. Não é óbvio que, em outras circunstâncias, se tome a mesma decisão, mas é um precedente muito importante e é uma nova porta que se abre para a Zona Euro. É uma nova ferramenta que a Zona Euro tem para lutar contra períodos de crise sistémica.
No passado semestre, foi convidado do Programa de Seminários da Faculdade de Economia do Porto, onde falou aos estudantes do processo de negociação da dívida pública portuguesa nos mercados financeiros durante a crise económica e financeira. Quais foram os desafios que lhe foram apresentados pelos diferentes mercados e investidores?
Essa é uma pergunta muito boa, porque está relacionada com uma questão muito importante, no âmbito da gestão da dívida pública, que não é muito conhecida: a diversificação da base de investidores. É muito importante que um gestor de dívida pública procure, de alguma forma, diversificar o tipo de investidores que investem na sua dívida. Aliás, este foi um esforço muito grande que nós fizemos quando estivemos no IGCP, porque a falta de diversificação pode trazer problemas: por exemplo, foi um obstáculo à emancipação da Grécia. A Grécia, durante muito tempo, ficou dependente de um certo tipo de investidores. Se um país está muito dependente de investidores com características muito parecidas (por exemplo, hedge funds), quando o mercado, por alguma razão, está sob pressão, eles podem ter tendência para vender todos ao mesmo tempo, aumentando ainda mais a pressão do mercado. Isto para além de que estão a vender todos ao mesmo tempo sem haver compradores. Agora, se tiver um universo de investidores mais diversificado, quando uns estiverem a vender, podem estar outros a comprar. Nesse sentido, já não está dependente de um só tipo de investidores: tem vários investidores que se comportam de maneiras diferentes e, em períodos de maior tensão, podem aparecer investidores que digam “sim senhor, eu vou aproveitar esta oportunidade para comprar; os hedge funds estão a vender, mas eu acho que esta é uma boa oportunidade e, portanto, vou comprar”. Por outro lado, também pode ter alguns fundos que tenham a intenção de manter a sua posição a longo prazo, como fundos de pensões ou fundos soberanos. Estes, por exemplo, podem aproveitar alturas em que os preços estejam mais em baixo para comprar mais, porque têm uma visão de médio e longo prazo. Portanto, de alguma forma, existirem investidores com diferentes tipos de objetivos e com diferentes tipos de comportamentos é muito importante. Por exemplo, se tiver muitos investidores americanos que investem principalmente em mercados emergentes e houver uma crise de mercados emergentes, os investidores podem ser obrigados a vender. Porquê? Porque os seus clientes finais, que têm esses fundos de mercados emergentes, veem que há uma crise nesses países, que a performance não está boa, e vendem os fundos. Ao venderem os fundos, estes têm que vender as obrigações que detêm para dar o dinheiro de volta aos clientes. Se tiver outros investidores que não tenham a mesma sensibilidade aos mercados emergentes – por exemplo, fundos de pensões do norte da Europa –, estes podem aproveitar a oportunidade para comprar. Desta forma, o efeito no preço das suas obrigações é menor, porque tem vendedores que, por uma razão externa a Portugal, estão a vender, mas também tem compradores, interessados em Portugal – que não tem nada a ver com mercados emergentes –, a comprar. No caso da Grécia, como os investidores eram todos, durante muito tempo, muito parecidos, quando havia algum stress que afetava esse tipo de investidores, eles vendiam todos. Ao venderem todos, não havia compradores, e o preço da dívida grega caía. Como continuava a não haver compradores, o preço caía ainda mais e tornava-se cada vez mais difícil, a certa altura, estabilizar os preços na queda. Daí a importância, para o gestor de dívida pública, de diversificar a base de investidores. Nós tentávamos fazê-lo, não só do ponto de vista geográfico, mas também ao vender a diferentes tipos de investidores: sejam fundos de investimento com diferentes objetivos (por exemplo, uns mais virados para países desenvolvidos, outros para países emergentes), ou outros tipos de investidores (fundos de pensões, companhias de seguros, fundos soberanos, …) que tivessem uma visão mais de médio e longo prazo.
Desde 2014, o BCE tem comprado massivamente ativos financeiros no âmbito do seu programa de compra de ativos. Esses ativos atingirão brevemente a sua maturidade ou serão alvo de venda por parte do Banco Central, sendo a sua consequência a subida das taxas de juro. Esta subida das taxas de juro, se não for feita com cautela, poderá ter um impacto económico adverso. Como poderá, na sua opinião, o BCE conduzir este processo da melhor forma?
O Quantitative Easing tem permitido estabilizar e encurtar os diferenciais de taxas de juro entre os diferentes países da Europa, nomeadamente entre os países do Norte, que têm tendência a ter taxas de juro mais baixas, e os países do Sul, da periferia, que têm tendência a ter taxas de juro mais altas. Este programa de compras, no fundo, fez com que o Banco Central Europeu se tornasse um investidor muito relevante, chegando a ter mais de 30% do stock de dívida pública de alguns dos países da Zona Euro. Isto fez com que os diferenciais de taxas de juro entre os diferentes emissores europeus diminuíssem muito. No entanto, à medida que isto acabar, e o BCE seja substituído no mercado por investidores privados, a tendência vai ser para esses diferenciais voltarem a aumentar. Aliás, eu penso que será difícil o BCE não intervir no mercado se esses diferenciais aumentarem de forma descontrolada. Ou seja, é possível que o BCE venha a subir taxas para combater a inflação, mas esteja, ao mesmo tempo, a comprar obrigações de alguns países específicos para estabilizar esses diferenciais, de forma que não se volte a falar de risco de redenominação, como em 2012, quando eu me juntei ao IGCP. Por risco de redenominação, entenda-se o risco de um país poder sair da Zona Euro e passar a redenominar a dívida na sua própria moeda. Isto, naturalmente, envolve várias questões – quanto valerá essa moeda, quanto valerá a dívida existente, … –; é esse o problema do risco de redenominação.
O que se deteta por detrás deste rácio da dívida é um problema de afetação de recursos
Foi para lidar com esse risco que Mario Draghi, em julho de 2012, declarou que o BCE faria tudo o que estivesse ao seu alcance para evitar que esse problema estivesse em cima da mesa. Eu penso que essa vontade de contrariar o aparecimento desse risco continua a existir e, portanto, acho que vai ser difícil, se ele voltar a aparecer, que o BCE não volte a intervir no mercado, apesar de poder continuar a estar a subir as taxas de juro para combater a inflação.





