A Inteligência Artificial (IA) está a transformar os mercados financeiros, aumentando a eficiência e a acessibilidade das operações. No entanto, o seu uso também levanta desafios, especialmente no que diz respeito à transparência e ao abuso de mercado.

A IA surgiu como área de estudo na década de 1950, mas foi nos últimos anos que experimentou um crescimento exponencial, impulsionado não só pelo aumento do poder computacional, mas também pela disponibilidade massiva de dados. Atualmente, a IA desempenha um papel fundamental na automação de processos e análise preditiva, desde a medicina aos mercados financeiros. É precisamente no setor financeiro, onde a transparência e a equidade são essenciais para o seu saudável funcionamento, que a rápida evolução da IA tem levantado diversas preocupações relativamente a possíveis abusos de mercado, nomeadamente a manipulação de preços, o trading algorítmico e práticas de front-running.


A manipulação de mercado pode comprometer seriamente a integridade dos mercados financeiros. Algoritmos de High Frequency Trading (HFT) podem ser programados para realizar uma grande quantidade de ordens falsas, rapidamente canceladas – um fenómeno denominado de spoofing ou layering – para criar uma perceção errónea das forças de oferta e procura. Dessa forma, os big players podem induzir os investidores a reagir a informações manipuladas e, consequentemente, causar oscilações artificiais nos ativos financeiros. A IA poderá ainda facilitar a disseminação automatizada de informações enganosas, as famosas fake news, espalhando rumores que influenciam as decisões dos investidores.

“(…) a rápida evolução da IA tem levantado diversas preocupações relativamente a possíveis abusos de mercado”


O algorithmic trading tornou-se uma preocupação crescente com o desenvolvimento desta tecnologia, devido à capacidade da IA em processar volumes gigantescos de dados e ser capaz de identificar padrões que passariam despercebidos a qualquer humano. Os algoritmos podem ser treinados para correlacionar eventos não divulgados publicamente, como mudanças nos padrões de comunicação empresarial ou movimentações atípicas dos respetivos executivos. Fazendo a devida ressalva de que a negociação baseada em padrões de mercado é mais que legítima, o uso da IA poderá facilmente capturar informações privilegiadas de forma automatizada e, assim, violar os princípios da equidade. Dessa forma, os investidores com maior capital (capazes de investir neste tipo de tecnologia) reforçam o seu poder e obtêm uma vantagem injusta sobre os restantes participantes do mercado.


O front-running, ou tailgating, é uma prática ilícita onde um intermediário utiliza informação privilegiada sobre ordens de clientes, de forma a antecipar-se e a lucrar com a variação de preços. Plataformas automatizadas pela IA poderão analisar fluxos de ordens no tempo e, assim, à semelhança do algorithmic trading, identificar padrões de compra e venda, antes que as ordens sejam completamente executadas no mercado. Dado ao potencial da IA, a criação de algoritmos sofisticados conseguirá detetar grandes ordens institucionais (big players) e antecipar a implicação dos preço dos ativos, avançando em segundos para negociações próprias antes que os preços se ajustem – uma vez mais, é criada uma vantagem desleal para as entidades de maior capacidade financeira em detrimento dos investidores de retalho, o que poderá conduzir à diminuição da confiança no mercado pela falta de transparência.


Historicamente, o setor financeiro tem sido alvo de uma evolução regulatória rigorosa na tentativa de assegurar a sua estabilidade e combater práticas abusivas. Desde a Grande Depressão de 1929, foram implementadas diversas normas para proteger os investidores e assegurar a equidade das operações. Entidades reguladoras como a Securities and Exchange Commission (SEC) nos Estados Unidos e a European Securities and Markets Authority (ESMA) na Europa, definiram diretrizes que combatem práticas como a manipulação de preços, insider trading e fraudes financeiras. A supervisão dependia essencialmente da análise humana, através de auditorias periódicas e/ou denúncias.


O surgimento da IA, como explicado anteriormente, veio mudar as regras do jogo. A utilização desta tecnologia nos mercados desafiam as entidades reguladoras, que necessitam de desenvolver mecanismos de monitorização mais avançados para detetar e combater abusos de mercado. O reforço da supervisão de algoritmos e a exigência de auditorias mais rigorosas poderá estar na base da solução necessária para mitigar estas ameaças. Além disso, os reguladores poderão exigir uma maior transparência aos brokers, a implementação de barreiras técnicas para impedir a extração de informação privilegiada e o reforço de penalizações para comportamentos abusivos, não limitados aos mencionados acima.


Seria de uma extrema injustiça salientar apenas as possíveis ameaças do surgimento da IA nos mercados financeiros. Existem também diversas oportunidades e benefícios que devem ser explorados. Apesar de num primeiro momento parecer paradoxal – típico numa qualquer análise dos mercados – as capacidades avançadas de análise de dados e a automação da IA podem tornar os mercados financeiros mais eficientes, acessíveis e transparentes.

“a IA representa uma verdadeira revolução para os mercados financeiros, oferecendo oportunidades para uma maior eficiência e inovação”


Os reguladores e as instituições financeiras poderão também fazer uso das potencialidades da IA para identificar atividades suspeitas com maior rapidez e precisão. Além disso, a automação dos processos financeiros vai reduzir a necessidade de intervenção humana, o que consequentemente torna as operações mais rápidas e menos propensas a erros. Numa vertente mais direcionada para o trading de retalho, as plataformas baseadas na IA podem oferecer recomendações personalizadas, permitindo aos pequenos investidores estratégias sofisticadas anteriormente reservadas às grandes instituições. Como esta tecnologia permite processar grandes volumes de dados em tempo real, será capaz de fornecer insights mais detalhados sobre as tendências de mercados e permitir aos investidores tomar decisões mais informadas.


Assim, a IA representa uma verdadeira revolução para os mercados financeiros, oferecendo oportunidades para uma maior eficiência e inovação. Contudo, os riscos de abuso de mercado são reais e exigem uma resposta rápida e eficiente dos reguladores para garantir a equidade e integridade de todo o sistema financeiro. A implementação de regulamentações adequadas à nova era da IA será fundamental para equilibrar as oportunidades da inovação e garantir a segurança dos mercados globais. Se as instituições regulatórias forem bem sucedidas, a IA pode não só reduzir riscos assim como criar um sistema financeiro mais acessível, eficiente e seguro para todos os participantes.