Opinião de Fábio Castro
Também incluído no FEPIANO Especial 25 de abril, publicado em Abril de 2024
No próximo dia 25 de abril, a democracia portuguesa festeja o seu 50º aniversário. Com o término de um período negro de mais de quatro décadas de ditadura, vários foram os direitos conquistados pelos portugueses mas até que ponto vivemos verdadeiramente numa democracia liberal? Para cerca de 800 mil portugueses, no último 10 de março, não vivemos.
A Revolução dos Cravos, golpe militar liderado pelo Movimento das Forças Armadas que derrubou o regime autoritário do Estado Novo, celebra 50 anos, pondo um ponto final a décadas de ditadura e trazendo consigo mudanças significativas na vida dos portugueses, principalmente a liberdade política, social, de expressão e de associação. Não existem democracias perfeitas e todas elas enfrentam os desafios consequentes da complexidade das sociedades humanas, mas a Democracia é o bem mais precioso que o cidadão tem e deve sempre procurar o seu aperfeiçoamento e fortalecimento, especialmente quando os seus direitos e interesses não estão assegurados.
“A Democracia é o bem mais precioso que o cidadão tem.”
A ironia do destino quis que os portugueses, no mesmo ano em que celebram uma data tão marcante na sua história, voltassem às urnas para escolher um novo governo. A vontade do povo falou e decidiu punir o anterior executivo socialista. Nas eleições legislativas de 10 de março, o vencedor foi a Aliança Democrática de Luís Montenegro, que acabou indigitado pelo Presidente da República, embora pela frente tenha o grande desafio de liderar um governo minoritário e, dessa forma, negociar com os partidos da oposição. Este cenário é frequentemente apresentado como indesejável embora não pudesse discordar mais – governar em minoria é um incentivo à negociação e ao consenso, à responsabilidade e prestação de contas, à flexibilidade e à menor concentração do poder. Será a oportunidade para compreender, nos próximos meses, o quão madura é a nossa democracia, quais os partidos que fogem às suas responsabilidades e quais não representam os interesses dos eleitores. Mas de todos os eleitores?
Infelizmente, a resposta a essa pergunta é NÃO. Através do mapa oficial publicado pelo CNE, percebemos que aproximadamente 800 mil votos, mais de 12% do total dos votos válidos, não foram convertidos em mandatos. Um bom exemplo desta situação, são os distritos que elegem menos deputados, tal como Portalegre. Os dois partidos mais votados elegeram 1 deputado cada (o PS com 20.658 votos e o Chega com 14.915 votos), sendo que, por exemplo a AD (com 14.132 votos) não elegeu qualquer deputado, ou seja, o voto desses eleitores foi deixado sem qualquer representatividade – completamente reduzido a cinzas. De acordo com o portal O Meu Voto, a situação é ainda mais dramática: cerca de 74% dos votos no PAN, 48% no BE, 44% no PCP, 36% no Livre e 27% na IL não foram convertidos em mandatos, isto sem mencionar alguns dos “pequenos” partidos que poderiam ter elegido algum deputado para a Assembleia da República. No total, cerca de 800 mil votos foram completamente ignorados pelo regime português.
“No total, cerca de 800 mil votos foram completamente ignorados pelo regime português.”
Os votos dos portugueses nas eleições legislativas são apurados através do método de Hondt, o que tem levado frequentemente a que alguns círculos eleitorais elejam apenas deputados do PSD e PS. Nessa vertente, várias têm sido as iniciativas que procuram evitar que os votos em outros partidos sejam perdidos, por exemplo, a criação de um Círculo de Compensação, tal como ocorre nos Açores. Mas haverá vontade política por parte dos partidos do arco da governação? Duvido muito.
Para além dos votos desconsiderados, os argumentos para a criação de um Círculo de Compensação são vários. A grande maioria dos eleitores considera que numas legislativas está a escolher um primeiro-ministro e não os deputados da Assembleia da República o que, tal como verificado em 2015, com a queda do governo de Passos Coelho e a formação do primeiro governo de António Costa, são questões bem distintas.
Além disso, geralmente os eleitores não conhecem os deputados que elegeram, ou seja, não existe uma responsabilização direta pelos eleitores em relação às decisões tomadas pelos deputados por eles eleitos – que por sua vez responsabilizam-se e seguem preferencialmente os interesses do líder partidário (disciplina de voto).
Dessa forma, é justo referir que a criação de um Círculo de Compensação garantiria a proporcionalidade dos votos e o interesse dos eleitores (e consequentemente, diminuiria a abstenção) e aumentaria a representatividade e a responsabilização dos deputados eleitos.
Os votos perdidos prejudicam essencialmente as regiões do norte e interior de Portugal, regiões onde a densidade populacional é menor comparativamente a outras regiões mais urbanas e densamente povoadas. Uma parte considerável dos eleitores dessas regiões sentem-se sub-representados no parlamento, uma vez que os candidatos que poderiam representar os seus interesses acabam por não obter assento parlamentar, conduzindo a uma menor voz política destas áreas durante o processo legislativo. Podemos mesmo considerar que existe uma marginalização política e falta de atenção às necessidades específicas dessas populações, que não será corrigida com um túnel ou uma barragem a espaços de tempo. Seja através da criação de um círculo de compensação, seja pela redução do número de círculos eleitorais, pelo bem da democracia portuguesa, este problema tem de ser mitigado.
Numa altura em que a Coesão Territorial é um tema tão abordado, principalmente desde o primeiro governo pós-Troika, e até se criam ministérios dedicados ao tema, é no mínimo irónico que os dois grandes partidos que governaram o país nos últimos 50 anos, sejam os menos atentos a este problema. É evidente para todos que estes partidos parecem relutantes em adotar medidas que promovam uma representação mais equitativa das diversas regiões do país, na medida em que seriam os mais prejudicados pelo resultado consequente, e apenas sabem governar em maioria absoluta.
A liberdade conquistada pelo 25 de abril e consolidada no 25 de novembro, devolveu-nos a soberania da vontade do povo. Devemos, por isso, assumir a nossa responsabilidade em honrar o legado daqueles que lutaram por um país mais justo, e assegurar que o sonho de uma democracia verdadeiramente liberal é concretizado – mesmo que isso envolva lutar contra os interesses políticos instalados.
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