Ingressou ainda muito jovem na política, via PS. Pensa que os atuais canais de entrada na vida política, nomeadamente as juventudes partidárias, são viáveis?

Não há comparação possível, porque eu entrei diretamente para o PS, e por uma razão simples: é que foi logo a seguir ao 25 de Abril, pelo que toda a conjuntura que precede a queda de um regime e o advento de um regime democrático não tem comparação com um sistema que já tem… que já está rodado agora ao fim de 40 anos. Em relação às juventudes partidárias, o que eu noto é que (e faço muitas conferências nas escolas secundárias) a apetência para militar do ponto de vista partidário numa organização de juventude é cada vez mais decrescente. Diminui cada vez mais. Há muito pouca apetência para esse tipo de participação, o que deveria levar os partidos e as próprias juventudes partidárias a questionar-se porque é que é assim.

Numa entrevista que deu recentemente, afirmou que tinha uma carreira muito errática, e que o único critério por que se guiava era o de jamais se ver num posto em que não se sentisse feliz. Como é que se faz uma carreira destas seguindo um princípio tão simples?

O meu ponto de partida é contestar a ideia de carreira, que pressupõe uma lógica …crescente (risos), com determinados estádios de evolução. Eu não tenho essa visão. Se quiser fale antes de trajetória, percurso político: por isso errático. Sempre fiz coisas diversificadas porque acho que a vida é curta e se nós pudermos ter o maior número de experiências isso nos enriquece do ponto de vista humano, que é a parte mais importante, e também do ponto de vista profissional. Portanto nunca dei um passo a pensar de facto que ele era um degrau para chegar ao patamar de cima, mas sempre dei os passos que achei que em cada momento correspondiam àquilo que eu podia e sabia fazer e também àquilo em que eu poderia ser feliz, porque eu acho que esse critério é um critério muito importante: há quem não saiba o que é a felicidade; eu acho que como ideal alcançável tenho uma ideia do que é a felicidade.

Pode-se falar em responsabilidade social, quase numa obrigação moral de enveredar por uma via política?

Há desafios que nos interpelam e que, digamos assim, a decisão de dizer ‘não’ não é fácil. É uma decisão difícil, por um lado, porque muito provavelmente esses desafios não se voltarão a colocar mais à frente, mas, por outro lado, também porque a pessoa deve ter a humildade suficiente para avaliar as condições que tem ou não tem para poder ter sucesso num desafio. Isto é, não juntar apenas ao peito uma medalhinha. Ou um título. Não sem ter a convicção de que o desafio que se aceita é ultrapassável com sucesso. Quanto à responsabilidade, pode-se falar desta em termos de participação. Fazer uma…carreira, para agora usar a sua expressão, fazer uma carreira política não. A participação pode ser feita de muitas maneiras diferentes, e não há maneiras mais qualificadas do que outras. No meu caso eu exerci durante 28 anos, ininterruptamente, cargos públicos, portanto entendo que o meu contributo de participação no exercício de cargos públicos apresenta uma longevidade assinalável, para ser modesto (risos).

Na sua opinião quais são os valores a que a política e os políticos devem dar prioridade na sua ação?

Eu acho que a maior dificuldade com que os políticos são hoje confrontados é a de serem autênticos. A política conheceu uma deriva, em larga medida fruto da alteração fundamental do tempo. O tempo, em política, mudou radicalmente nestes 40 anos de democracia. A híper-mediatização e o instantâneo retirou à política aquilo a que os anglo-saxónicos chamam space to think. Muitas vezes têm 15 segundos para responder a uma questão sobre a qual nunca pensaram, apenas porque têm um microfone e um ecrã ligados. Não me lembro de alguma vez ter visto um político a dizer “Eu sobre esse assunto não tenho opinião porque não pensei o suficiente sobre ele”, ponto. Nunca. Nunca vi isto. E contudo é humanamente impossível que não haja situações onde esse space to think era necessário e se perdeu. Perdeu- -se porque existe uma volúpia mediática. Perdeu-se, também, porque muitos dos critérios que eram válidos há 30 ou 40 anos, designadamente uma ideologia consistente, acabaram por se desfazer.

Umas demonstraram que eram um embuste, e que a realidade era a negação do que proclamavam, outras defrontaram- -se com uma realidade social em profunda mutação. Todas as teorias sobre a vanguarda da classe operária hoje em dia estão confrontadas com a terciarização e a desindustrialização da sociedade, a redução do peso relativo daquilo que era a vanguarda operária no conjunto da sociedade, e um crescimento exponencial das classes médias que também tem como consequência a indiferenciação das ideologias. Portanto, entre a alteração do ambiente mediático, por um lado, e a transformação da própria sociedade do outro, eu acho que os termos de referência da política hoje são fundamentalmente diferentes do que eram no início da nossa democracia. Os valores continuam a ser os elementos de referência só que hoje muitos desses não têm tradução operacional.

Por exemplo, as desigualdades: ninguém é a favor de uma sociedade desigual, mas a luta contra estas tem hoje um comportamento diferente face ao enquadramento de há 30 anos atrás. Se há 30 anos havia uma dimensão muito mais existencialista das desigualdades, hoje o problema tem a ver com a igualdade de oportunidades, com a qualificação das pessoas e sobretudo com a requalificação das pessoas, isto é, daqueles que, já tendo passado o período escolar, têm a necessidade de melhorar as suas habilitações e as sua qualificações para viverem num mundo em constante competitividade. Os valores são permanentes, a maneira de os traduzir do ponto de vista operacional é que é diferente.

Acredita na possibilidade de compatibilizar socialismo e liberdade? (Ainda que provavelmente não haja muitos liberais em Portugal…)

Estão todos na Universidade (risos)! Mas repare, tudo depende de como é que valoramos a coesão da sociedade. Se acharmos que a liberdade deve ser levada ao ponto onde apenas vigoram na sociedade os princípios de mercado, onde não há obrigações de solidariedade, de compaixão para com os outros, obviamente que a simples ideia do imposto redistributivo é atentatória da liberdade. A diferenciação da social-democracia hoje está cada vez mais posta em causa, e por isso falo de uma crise da social- -democracia ou do socialismo, porque o principal instrumento da operacionalização da social-democracia é o imposto redistributivo. E com a globalização da circulação dos capitais, a eficácia redistributiva do imposto perdeu força. É mais fácil eu tributar as pessoas, o trabalho, do que tributar o capital, e isso revela uma transformação fundamental na própria ideologia social-democrática.

Em relação ao papel do TC, ainda que não sejamos de Direito…

Sorte sua! (risos)

… considera que este papel deve ser de obediência cega à Constituição, ou que, pelo contrário, deve ser flexível em função das condicionantes socioeconómicas?

Eu acho que o Tribunal Constitucional português ao longo da sua existência deu suficientes provas de que fazia uma leitura viva da Constituição. Uma leitura da Constituição adaptada à evolução da sociedade e da economia. Não creio que seja justo dizer que o Tribunal Constitucional, desde que foi criado em 1982, não teve essa sensibilidade. O que se passou nos últimos anos é algo ligeiramente diferente: eu acho que o governo tinha uma agenda para testar os limites desta Constituição, e, portanto, o grau de preocupação com que um legislador atendeu ou não atendeu à jurisprudência do tribunal acabou por provocar a colisão com o Tribunal Constitucional. Mas a verdade é que este não disse que nada era possível fazer, o que disse é que havia limites para o que era possível fazer. E, portanto, de alguma forma, cabe ao legislador entrar nessa dialética. Compreender que as soluções que propõe não podem ser as soluções que pretende, mas sim aquelas que incorporam os limites que o tribunal definiu. E isso faz parte do princípio da separação e interdependência de poderes. Essa é a essência da democracia, e não vejo nisso mal nenhum. (risos)

Tanto em 1974, no advento da Revolução dos Cravos, como em 1986, com a entrada para a CEE, em Portugal viveram-se períodos de grandes expectativas. Quais eram as suas, e verificaram-se?

Felizmente não se verificaram todas, não sei se todas as minhas expectativas eram as mais justas e adequadas. De todo o modo, acho que o essencial se verificou, isto é, a construção de uma democracia pluralista, com liberdade de expressão e manifestação, a tolerância pelas diferenças. Todas as diferenças. E depois a possibilidade de participar no projeto europeu, que constitui o espaço natural de inserção do nosso país, a par da reconstituição de laços com os países que partilham connosco a língua e um percurso histórico durante cinco séculos.

Considera que as ameaças anti-europeístas que se fazem sentir atualmente são uma questão estrutural ou uma questão cíclica: numa fase de contratempos estas surgem e voltam a amainar quando voltamos a entrar numa fase ‘boa’?

A história da construção europeia é uma história de crises cíclicas. Até à data, a cada crise tem correspondido uma superação que mantém intacto o essencial do projeto, e a grande questão que se coloca hoje é saber se esta é mais uma dessas crises ou se, pelo contrário, há um sério risco de fragmentação do projeto europeu. Por um lado, por quebra da legitimidade, na medida em que os cidadãos hoje acreditam menos, ou têm menos confiança, de que o projeto europeu produz os resultados que produziu no passado, em termos de desenvolvimento económico e de bem-estar. Por outro lado, porque, perante a globalização e os impactos da globalização, muitos tendem a fechar-se sobre si próprios e procuram encontrar respostas no protecionismo nacionalista e mesmo rejeitar o próprio processo de integração europeia. Nesse sentido esta crise é diferente das anteriores, é mais profunda, não é apenas económica mas também política, logo mais exigente para com os decisores políticos para encontrarem as soluções de superação. Agora, continuo a acreditar que existem todas as razões para encontrar as respostas.

Ainda em relação à integração europeia, como é que acha que esta deve ser feita? A base é o mercado único, mas ao fim e ao cabo, quando se criam as instâncias europeias, acaba por se partir para um certo grau de centralização. Pensa que a integração se pode processar dessa maneira ou que a União Europeia se deve limitar a ser um espaço de comércio livre sem grandes interferências?

Se o projeto europeu fosse um espaço de comércio livre, não era preciso ter criado as comunidades europeias, por contraponto à EFTA, que já existia. E se o Reino Unido deixou a EFTA para entrar nas comunidades europeias é porque reconheceu que correspondia ao seu interesse estar numa comunidade de integração económica e não apenas de comércio livre. Dito isto, a natureza das comunidades europeias não é de se quedar apenas por uma zona de concorrência livre. É ter políticas comuns e pressupor um determinado nível de integração económica entre os estados membros. O grande centralismo nos processos das decisões é sempre equacionado de maneira diferente, isto é, nem todos os processos de integração exigem em todas as áreas o mesmo nível de centralização. E, portanto, o que é possível discutir com o RU é o que é absolutamente imprescindível centralizar. A questão é menos da devolução de competências do centro de novo para o nível nacional, a questão é mais saber qual é o equilíbrio em cada área política entre a intervenção do centro e a intervenção dos estados membros, segundo o princípio da subsidiariedade.

Será que faz sentido falar em ideologias ainda hoje ou simplesmente em boas e más decisões, ou seja, no pragmatismo?

Essa pergunta é tricky (risos). Faz todo o sentido, desde logo pela perspetiva histórica, cada um tem o seu próprio percurso da história. E a sua identificação com esse percurso histórico, mesmo que não o tenha vivido pessoalmente. A natureza estanque das ideologias é que hoje é, como eu disse há pouco, muito menos visível do que era. Passamos dos modelos de quadros ideológicos completos e integrais, até um pouco claustrofóbicos, que tinham uma explicação integral, para trade-offs. Isto é, assim como os liberais tiveram que reconhecer – não os da FEP (risos) – mas os liberais tiveram que reconhecer que tinha que haver um papel para o Estado na regulação dos mercados e no equilíbrio da sociedade, também os socialistas reconheceram que a questão essencial não era a propriedade dos meios de produção. Sob esse ponto de vista houve uma transumância de ideias de um lado para o outro. Hoje em dia o referencial ideológico é saber como é que elas se equilibram. Onde é que você mete o cursor? Mais de um lado ou mais do outro? Mais no sentido da economia liberal e, portanto, estará mais no centro-direita ou à direita, ou mais no sentido da solidariedade social e aqui estará mais à esquerda ou no centro-esquerda?

Quais as suas grandes referências? Lembro-me de o ouvir falar de Woody Allen e Philip Roth…

Roth tem uma intensidade da decadência física a que ninguém pode escapar e que de alguma forma é a felicidade de não morrer novo (risos). É uma troca. O Woody Allen tem para mim sempre como ponto de ancoragem a necessidade de encarar com ironia as situações da vida, mesmo as mais adversas, sem perder um olho crítico e irónico sobre essas situações. E isso também é um bom ensinamento sobre aprender a envelhecer. Coisa que não vos preocupa a vocês, manifestamente, mas que a mim já me vai preocupando bastante (risos).

Na sua perspetiva quais são as questões a que a Economia deve dar resposta?

Eu acho que o que hoje em dia é mais útil para um economista é ter conhecimentos de antropologia, da natureza humana e das diferenças entre os povos, as comunidades. A tendência de reduzir tudo a modelos abstratos e quantificados é empobrecedora da realidade. A economia não é uma ciência exata. É talvez uma das mais nobres ciências humanas, e a compreensão da humanidade é o maior desafio para os economistas. Sorry! Os vossos professores de matemática vão dizer: “este gajo não sabe o que diz”.