Quais são as perguntas que não lhe podemos fazer?

Tenho o dever de reserva, no estatuto da Magistratura, em relação a casos concretos. De resto, podem perguntar-me tudo.

Não é muito comum os juízes consentirem ser entrevistados. Porque é que aceitou o nosso convite?

A população deve conhecer os seus juízes. Um juiz ou uma juíza, num Tribunal superior, não tem contacto com a população, mas também não deve estar numa torre de marfim. Necessita de conhecer a realidade e de conviver com as pessoas ao seu redor. O nosso trabalho não é apenas técnico-jurídico. Dirige-se a pessoas e pressupõe conhecimento da realidade social e económica em que vivem os cidadãos. Além disso, fui professora universitária muitos anos e vocês fazem parte da comunidade educativa à qual pertenci. Tenho muita esperança nos jovens.

Quem é Clara Sottomayor para lá da figura pública?

É uma pergunta muito difícil. Em primeiro lugar, acho que não sou uma figura pública. Tenho participado, no espaço público, em lutas cívicas pelos direitos humanos das mulheres e das crianças, mas julgo que tal não faz de mim uma figura pública. Por outro lado, como estou habituada a lidar com pessoas que me conhecem, não sei o que é que as pessoas que não me conhecem gostariam de saber sobre mim, além daquilo que já foi divulgado.

Lecionou na Universidade Católica durante 23 anos e é, atualmente, a mais nova juíza na história do Supremo Tribunal de Justiça (STJ). Para alcançar o patamar profissional em que se encontra, foi necessário abdicar de alguma coisa?

Não, não tive que abdicar de nada. Apenas tenho que dedicar muito tempo ao trabalho, como sempre fiz.

Integra uma instituição com sessenta juízes, dos quais só sete são mulheres. Estes números agradam-lhe?

Antes do 25 de Abril de 1974, as mulheres não podiam entrar para a Magistratura. Pensava-se que eram demasiado emotivas e que isso seria prejudicial à administração da justiça. Há, portanto, uma explicação histórica para haver tão poucas mulheres no Supremo Tribunal de Justiça. Claro que eu gostaria de ver um número semelhante de homens e mulheres, no mais alto tribunal da hierarquia dos tribunais judiciais. A democracia é paritária por definição e deve permitir a participação de ambos os géneros. É a forma mais equilibrada de administrar a justiça.

Ainda assim, vê sintomas de mudança no sentido do aumento da representação feminina no STJ?

A mudança é muito lenta. Há mais de trinta anos que há mulheres na Magistratura, portanto, penso que já podiam estar a entrar mais mulheres no STJ neste momento. No entanto, continuam a entrar poucas, em termos de proporção em relação ao número de homens.

Recentemente, publicou um texto acerca do assédio sexual de rua em que relata alguns episódios que viveu, sobretudo entre os 14 e os 16 anos. Foram estas circunstâncias que a incentivaram a tornar-se feminista?

Há casos muito mais graves, passados com outras crianças e mulheres. Nesta medida, acho que foi o que ocorreu com outras pessoas que me fez ser feminista e não propriamente o que me aconteceu a mim. Claro que também me influenciou, mas foi muito menos relevante. Fez-me perceber o que é o assédio sexual, a forma como perturba e fez-me querer lutar pela sua punição. Acabar com o silêncio. Porém, outras formas de violência, como a violência doméstica, a violação e o abuso sexual de crianças, são muito mais graves. Essas são a principal razão de eu ser feminista e defender a igualdade de género em todas as áreas: na família, na política, no trabalho.

Acha que a sociedade continua a pensar que um piropo é um elogio?

Acho que sim. A sociedade continua a entender que os homens desconhecidos têm o poder de dirigir a palavra às mulheres para comentarem o corpo delas ou para fazerem observações de carácter humilhante ou intimidatório. Penso que as pessoas sempre souberam que estes ditos “piropos de rua” são violentos e agressivos, mas, como acontecem, sobretudo, a adolescentes e se educa as crianças na base da crença na bondade do mundo, tentam “dourar a pílula”, como se costuma dizer, e designar por piropos e elogios realidades que, de facto, são violentas e intrusivas. Pensam que nós – as meninas e as mulheres – vamos esquecer, que não vamos dar importância e que o silêncio é a solução para este problema; não ter ouvidos e não falar. Na verdade, a sociedade tenta referir-se aos assédios de rua de forma eufemística para suavizar uma coisa que é grave. Se não dissermos às meninas que isto lhes vai acontecer e se estas não se queixarem a ninguém, fazemos de conta que o problema não existe.

Considera que há diferenças entre o entendimento daquilo que é o piropo para homens e mulheres?

É entre as mulheres que encontramos pessoas que nos ajudam nesta luta, mas também é neste mesmo grupo que encontramos quem reproduza o discurso machista contra a criminalização do assédio de rua. Em relação aos homens, encontro, também, dois tipos de posições: num dos grupos, temos os homens que têm medo que as mulheres possam fazer queixas contra eles ou que interpretem mal a sua aproximação; no outro, temos homens informados e sensíveis que muito nos podem ajudar nesta luta.

É a favor da abolição da prostituição. Não encontra espaço para os indivíduos decidirem livremente?

Segundo alguns estudos, a prostituição atinge, sobretudo, pessoas que foram vítimas de abuso sexual, maus tratos na infância e que são muito pobres, sendo maioritariamente mulheres, mas existindo, também, homens. A prostituição mudou muito nas últimas décadas com o tráfico de pessoas. Há estudos que demonstram que a maioria das pessoas prostituídas não está em condições de prestar um consentimento livre. Deste modo, entendo que a prostituição, na maior parte dos casos, é violência contra a pessoa prostituída. Por outro lado, o fenómeno do tráfico de pessoas para finalidades de exploração sexual seria encoberto, no caso de legalização da prostituição como contrato de trabalho, desprotegendo as vítimas e despojando-as da sua dignidade humana e liberdade. São situações de escravatura, em que a moeda de troca é apenas um teto e uma refeição. Por isso, vão buscar as mulheres aos países subdesenvolvidos e prostituem-nas nos países desenvolvidos. É uma nova forma de colonização.

O ano de 2014 ficou marcado pela morte de 42 mulheres, vítimas dos seus maridos, namorados ou ex-companheiros. O que é preciso fazer para combater esta dura realidade?

Há muito a fazer, na verdade. Quando as mulheres decidem sair de casa, deve ser-lhes dada proteção e segurança de imediato, porque é neste preciso momento que aumenta a intensidade da violência. As medidas que existem atualmente são ineficazes e insuficientes.

A medida de coação utilizada – afastamento da vítima – não é cumprida pelo agressor e aplica-se numa fase mais tardia do processo penal. Contudo, estas mulheres são assassinadas logo no início, assim que apresentam queixa-crime. Quanto aos profissionais que acompanham estas questões, deviam ter uma formação especializada para saberem avaliar o risco. Há mulheres vítimas de violência que não estão em perigo de vida e outras que estão. É preciso saber distinguir as situações. Porém, o sistema não sabe discernir.

As pessoas tendem a desvalorizar, quando a mulher diz que o companheiro a ameaçou de morte, pensando tratar-se apenas de uma discussão e que este não irá concretizar a ameaça, porque ninguém de bom-senso o faria. A verdade é que quem não tem formação pensa de acordo com as suas crenças, o que é contraproducente para lidar com estas matérias.

E no caso de existirem filhos?

Um aspeto muito relevante é o medo que estas mulheres têm de perder a guarda dos filhos. Ao saírem de casa, ficam sem habitação, muitas vezes perdem o emprego e acabam por não ter condições para sustentar os filhos. É preciso assegurar, através de medidas económicas e sociais, que a vítima terá uma casa, alimentação, manutenção do emprego, de modo a que sinta confiança de que os filhos não ficarão entregues ao agressor ou que não irão para uma instituição. A regulação das responsabilidades parentais tem que ser feita no imediato e com proteção da criança contra o agressor.

Nos Tribunais de Família, está na moda aplicar a guarda partilhada, incluir o pai na educação dos filhos, assegurar a relação da criança com o pai após o divórcio… Estas medidas estão corretas para as famílias em que não há violência doméstica, não para as restantes, uma vez que é altamente perturbador, quer para as mulheres, quer para as crianças, manter contactos com o agressor. As crianças não desejam conviver com o pai e os tribunais obrigam-nas.

Às vezes, até entregam a guarda ao progenitor que foi condenado por violência doméstica ou ofensa à integridade física da mulher. A investigação científica tem demonstrado que as crianças sofrem problemas psicológicos, mentais e psicossomáticos por assistirem à violência. Portanto, é necessário, nesta fase, suspender as visitas e entregar a casa de morada da família à mãe e aos filhos. Não é justo que as mulheres tenham que ir para centros de abrigo, localizados noutras cidades, o que obriga, designadamente, à mudança de escola das crianças; os agressores é que deveriam ser deslocados para outras habitações, caso não se aplique a prisão preventiva. Ao fim e ao cabo, as vítimas é que ficam «presas» nos centros de abrigo.

Não é frequente aplicar-se a prisão preventiva ao agressor neste tipo de casos…

Não, ainda que a lei o permita. Afinal, a violência doméstica é um caso de criminalidade violenta e o Código do Processo Penal, permite a aplicação da prisão preventiva nestas situações, havendo fortes indícios da prática de crime violento e perigo de continuação da atividade criminosa. A prisão preventiva tem pressupostos muito específicos no Código do Processo Penal e é a medida extrema, porque priva a pessoa da liberdade antes de esta ser condenada. Exige, assim, uma especial cautela na sua aplicação.

Contudo, não há nenhuma proibição legal de que se utilize nos casos de violência doméstica, como, às vezes, se pensa. Sendo a violência doméstica um fenómeno cíclico, que implica ritmos cada vez mais intensos de violência, existe, por definição, perigo de continuação da atividade criminosa. Os agressores perseguem as mulheres e ameaçam-nas, mesmo depois do divórcio. Outro aspecto desadequado é que, em cerca de 90% das condenações, o agressor permanece em liberdade, com pena suspensa. As finalidades de prevenção geral e especial ligadas à aplicação da pena não são cumpridas.

Concorda que, hoje em dia, enquanto às mulheres é exigido que sejam bonitas, boas mães, governantes económicas e que saibam cozinhar, aos homens quase que só se exige que não bebam, que não tenham outras mulheres e que não batam?

Concordo plenamente. O critério que se exige aos homens é minimalista: que não pratiquem crimes. E, mesmo aí, sabemos que há muita tolerância, designadamente nos crimes sexuais e na violência doméstica. Por outro lado, às mulheres exige-se não só que sejam cidadãs honestas e que não cometam crimes, como também que sejam mães impecáveis, trabalhadoras disponíveis, que tomem conta da casa, que sejam boas amigas, que estejam sempre bonitas – que é outra atividade que dá muito trabalho e com a qual se “perde” muito tempo –, que falem de uma forma muito suave, que agradem aos outros, que nunca levantem a voz… Há uma série de construções e de preconceitos sociais que limitam muito a liberdade e as opções das mulheres.

Compreende que a emancipação da mulher tenha sido tão tardia na história? O que falta conquistar?

As mulheres foram o último grupo, entre os discriminados, a iniciar a sua emancipação. Os negros, por exemplo, iniciaram primeiro o seu processo. A situação das mulheres está ligada ao facto de a sua subordinação ter sido a primeira forma de escravidão conhecida na história, assim que se deu a sedentarização e surgiu a propriedade privada. O processo de socialização para a legitimação desta escravatura é de tal forma antigo que foi muito difícil às mulheres ter consciência dele e fazer- -lhe frente. Em primeiro lugar, foi necessário reconhecê-lo como escravatura e, em segundo lugar, enfrentá-lo e lutar contra ele. Ainda assim, sempre houve, ao longo da história, mulheres excecionais que lutaram, que nos deixaram uma pista, um exemplo, um sinal de esperança. E hoje há cada vez mais mulheres a lutar contra o sistema patriarcal.

Tem consciência de constituir uma referência para várias mulheres? Em que medida isso influencia a sua conduta?

Ignoro ser uma referência para outras mulheres, mas gostava que isso fosse verdade. Tento não só ter um discurso que dê força às outras mulheres para lutarem contra a discriminação e contra a violência que sofrem, mas também ser coerente na minha vida e, através dela, dar o exemplo dos ideais que defendo.

As mulheres são cruéis entre si?

Eu acho que as mulheres podem ser muito solidárias umas com as outras – e conheço muitas que o são – ou podem ser muito críticas e reproduzirem os discursos machistas. Porém, julgo que não têm consciência disso. O seu processo de autoemancipação e de autoconsciencialização está mais atrasado. As mulheres que estão mais avançadas neste processo individual e psicológico são mais solidárias. Há, normalmente, uma grande competitividade entre as mulheres, o que as divide muito.

Os homens que querem dominar as mulheres dividem-nas para reinar e têm sucesso nesse tipo de estratégia. Algumas feministas dizem que há uma razão ancestral para o excesso de competitividade entre as mulheres: ao longo de todos estes séculos de patriarcado, para poderem sobreviver, as mulheres tinham que casar. Caso contrário, o destino era a miséria ou a prostituição. Ora, para casarem, tinham que desenvolver, em si, capacidades de atrair os homens. Não precisavam apenas de ser bonitas, mas também de agradar ao potencial marido.

Quanto melhor este fosse, mais protegidas elas estariam. Era uma questão de sobrevivência, que permanece no subconsciente. Neste âmbito, faz sentido analisar a forma de discriminação designada por «moral dupla»: a sociedade julga de forma diferente homens e mulheres, sendo estas muito mais criticadas e censuradas. E isto aplica-se, inclusive, ao julgamento que as mulheres fazem de outras mulheres. Porém, não se pode generalizar e dizer que as mulheres são cruéis umas com as outras. Há mulheres muito solidárias, que compreendem o sofrimento das outras, que ajudam e estendem a mão. Ou seja, as grandes solidariedades que existem também são entre mulheres.

Se o século XIX foi o século do poder legislativo e o século XX o do poder executivo, poderá o século XXI vir a ser o século do poder judicial?

Espero que sim. Desejo que tenhamos uma jurisprudência adaptada à realidade e aos direitos humanos. O Direito está ao serviço das pessoas. Estando no início do século XXI, ainda temos muitos anos para evoluir. É cada vez mais importante o processo de aplicação da lei, não sendo suficiente a proclamação dos direitos humanos pela lei. Têm que ser os tribunais a garanti-los e a fazê-los respeitar.

Acredita na Justiça portuguesa?

Acredito que a maior parte dos casos são bem decididos, mas que a Justiça é muito tardia, não sendo possível, muitas vezes, na prática, resolver os problemas de forma eficaz e com a celeridade que as partes precisam.

Como concilia o lado racional com o emocional na tomada de decisões a que está obrigada no exercício do seu papel profissional?

Há muitas emoções que são passíveis de serem traduzidas em razões e argumentos jurídicos. Portanto, não se pode afirmar que haja uma separação entre razão e emoção. As duas atividades mentais são necessárias nas decisões judiciais e em qualquer profissão, complementando-se.

Utilizadora ativa do Facebook, fez uma publicação no início do ano onde afirmava que “Não há uns mais iguais do que outros!”, relativamente às diferentes reações aos massacres na Nigéria e no jornal satírico “Charlie Hebdo”. Existem dois pesos e duas medidas?

Julgo que sim. Compreende-se, em parte, que, estando na Europa, os atos terroristas aqui praticados nos ofendam e amedrontem mais, pela proximidade. Esse é o motivo para nos manifestarmos e lutarmos contra eles, mas, realmente, para quem vê o mundo de uma forma global, não há vidas a valer mais do que outras, não há vidas a merecer mais a pena que se lute por elas do que outras e, consequentemente, há, sobretudo, da parte dos poderes públicos, uma necessidade de ter isso em consideração. Por exemplo, na Nigéria, nem os estados, nem as Nações Unidas fazem o suficiente para exigir a libertação das meninas raptadas. O que se tem feito são medidas soft, resultando em conformismo.

O que a move e comove?

Move-me eliminar o sofrimento humano e a desigualdade entre as pessoas. Não suporto que haja pessoas a sofrer devido à violência ou a outro tipo de injustiças. Move-me, igualmente, o objetivo último de construir um mundo mais justo. Estou consciente de que aquilo que está ao alcance de cada um de nós é uma gota no oceano e também sei que nunca ninguém consegue grandes mudanças no seu tempo de vida, mas o que me move é pensar que, mesmo que agora esteja a remar contra a corrente ou a lutar por coisas que nunca vão acontecer, deixo pistas para outros continuarem esse combate, porque se nós, que lutamos muitas vezes em vão, não lutarmos, as gerações seguintes também não o vão fazer.

No fundo, é importante passarmos o testemunho, como um estafeta a correr. Podemos perder a corrida, mas, entretanto, alguma pessoa mais nova, que nos viu correr, vai ser impelida a ir atrás. Seguidamente, essa pessoa fará o mesmo percurso e passará, novamente, o testemunho. Um dia, nesta cadeia, alguém vai conseguir um mundo melhor. Comovem-me, em geral, a fragilidade humana, a luta dos oprimidos pela sua emancipação, a música e a poesia.

O que vale realmente a pena na vida?

O que vale a pena na vida é o amor entre as pessoas.