Conduzida por José Mário Sousa
Também incluída no FEPIANO 29, publicado em Dezembro de 2017
Elmano Sancho é licenciado em Economia pela Faculdade de Economia da Universidade do Porto e em Tradução (Francês/Espanhol/Inglês) pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Frequentou a Escola Superior de Teatro e Cinema (ESTC) e após frequentar os dois primeiros anos, decidiu prosseguir os estudos na Real Escuela Superior de Arte Dramatico de Madrid, na Universidade de São Paulo, no Brasil, e, por último, ingressou no Conservatoire National Superieur d’Art Dramatique de Paris. Natural de Valpaços, Vila Real, foi um dos três portugueses selecionados para integrar a primeira Companhia Teatral Europeia e nomeado para a XVII Gala dos Globos de Ouro na categoria de Melhor Ator de Teatro pela sua interpretação em “Não se Brinca com o Amor”. Assina a sua primeira encenação, na qual também é ator, em Setembro de 2014 com o espetáculo “ Misterman” de Enda Walsh e é distinguido com o prémio de melhor ator de Teatro pela Sociedade Portuguesa de Autores. É um dos atores portugueses mais conhecidos fora do país.
Quem é o Elmano Sancho?
Eu sou de Valpaços, Trás-os-Montes. Muito cedo interessei-me por teatro mas entretanto vim para o Porto, no 11.º ano. Depois entrei na FEP e fiz a FEP durante 5 anos. E depois entrei no Conservatório. Tinha vários interesses. Não sou propriamente uma pessoa só com um interesse. Economia, no 11.º e 12.º ano, talvez fosse a disciplina que até nem tinha grande afinidade e acabei por lá parar. Mas isto para me caracterizar um bocado. Acho que sou uma pessoa curiosa que tenta ter várias experiências. No teatro, por exemplo, não só ao nível da representação mas também ao nível da encenação e ao nível da escrita também.
E continuar também a ter algum contacto com as línguas – tanto é que eu fiz depois uma licenciatura em tradução na Nova. Não gosto de me situar só numa coisa. Gosto de estar sempre à procura. Gosto de me provocar. Gosto do risco. Talvez seja a melhor forma de me caracterizar. Gosto sempre de situações um bocado desconfortáveis porque, embora sejam difíceis, acredito que me vão levar a algo melhor. Tudo o que seja muito cómodo aborrece-me.
Como diz, procura sair da sua zona de conforto. Isso é visível até porque já viveu em Paris, Valpaços, no Porto e atualmente vive em Lisboa. Já estudou também no Brasil e em Espanha. Como foi viver em Valpaços? Era lá que era a sua raiz?
Eu nasci em Paris e vivi lá até aos dez anos. Depois fui para Valpaços. Agora já é cidade, mas na altura era uma vila, um meio rural. Mas para mim foi ótimo. Não senti propriamente falta de oferta cultural. Embora já estivesse bem interessado no teatro ou no cinema, nessa altura era muito jovem, não tinha essa necessidade em ver determinadas coisas.
Depois aos 16 anos vim para o Porto e depois fui para Lisboa. Enfim, muito rapidamente também comecei a ver peças de teatro e a ir ao cinema. Mas foi ótimo mesmo. E regressar a Valpaços é ótimo porque me traz uma certa tranquilidade e permite fazer… não é balanço, mas acalmar-me um bocado, porque a cidade acaba por provocar um frenesim que dificilmente conseguimos acalmar.
Estudei em Nova Iorque também e viajei muito com o teatro. Espero viajar mais ainda. E esse lado nómada acho que também pode caracterizar o Elmano Sancho porque sempre viajei imenso e acho que é uma coisa que me define. Não me instalo, tanto é que a minha casa é uma coisa muito vazia. Não sou uma pessoa materialista, não acumulo coisas, porque se precisar de ir embora amanhã vou-me embora amanhã, para qualquer sítio.
Como é que um actor, que hoje em dia é um dos actores mais reputados em Portugal, aos 18 anos escolheu estudar Economia?
Eu acho que talvez pela ilusão das boas notas no secundário. Sentia também que ainda não estava pronto para estudar teatro. Às vezes penso que é uma profissão como as outras, mas não é. Exige às vezes uma maturidade emocional que aos 18 anos não se tem e aos 23 também não. Eu entrei aos 23 no Conservatório e acho que estava mais maduro para poder enfrentar o que é também uma formação em teatro – que é lidar com as emoções, com o corpo, com a voz, com a exposição face a professores e alunos e, depois mais tarde, ao público.
Por isso acho que a escolha da Economia foi uma escolha tão simplesmente porque estava no secundário em Economia, gostava imenso de matemática mas não queria fazer um curso de Matemática e então optei por Economia. A FEP na altura, não sei como é que é agora, era muito reputada. Eu tinha boas notas e entrei. Foi isso. Acho que foi uma casualidade.
Como é que foram aqueles 5 anos a estudar Economia quando, calculo, sabia que não era aquele o seu futuro?
Quando entrei no meu primeiro ano foi um choque. Porque nós tínhamos aulas da parte da tarde. Então, pronto … primeiro semestre, inverno, saia-se de lá muito tarde, estava frio e eu não estava propriamente seduzido por aquelas disciplinas.
Até porque no 1.º ano é a introdução a tudo e mais alguma coisa. Era muito genérico. E de tão genérico que era achava mais aborrecido. Foi difícil mas como consegui fazer tudo fui para o 2.º ano, depois para o 3.º e por aí fora. O que é que eu posso dizer? Eu não desgostava de Economia mas não adorava. Não estou a dizer que adoro teatro. Mas acho que todos acabamos por ter uma vocação para uma coisa mais do que para outras.
E, à medida que fui avançado no curso de economia, percebi que aquela não deveria ser a minha vocação. Não iria dedicar a minha vida toda, por mais que até gostasse do curso, à Economia. Porque havia algo que era mais forte que era o teatro. Por isso foram anos de momentos bons, outros maus. O 3.º ano foi um bocado complicado porque percebi que ainda me faltavam mais dois. Entrei no Teatro Universitário do Porto (TUP) também logo no primeiro ano.
Era guia turístico nas caves de vinho do Porto Sandeman. Tem a ver um bocado com aquela definição que eu tentava fazer de Elmano Sancho, sem querer fazer definição alguma. Tentava procurar outros pontos de interesse que não fosse só Economia porque tinha a certeza que se ficasse só na Economia talvez não conseguisse aguentar até ao fim, embora seja teimoso e tudo o que eu faço levo-o até ao fim.
Comecei a não ir às aulas muito rapidamente porque tinha ensaios à noite. Escolhia sempre o horário da manhã, mas como tinha ensaios até tarde, de manhã eu não conseguia ir e quando ia adormecia nas aulas, por isso percebi à medida que ia avançando que o melhor era não ir sequer às aulas e encontrei duas ou três pessoas perfeitas naquela faculdade que me obrigavam ao rigor.
Eu dormia de manhã, ia almoçar à FEP e estudávamos a tarde toda. Depois à noite ia para o TUP. Isto permitiu-me evoluir muito mais rapidamente e levar o curso menos a sério do que propriamente no primeiro ano em que eu fui a todas as aulas e era um pesadelo. A partir do momento em que percebi que não precisava de ir às aulas, mas que tinha que continuar a estudar para poder acompanhar e que tinha pessoas que me ajudavam a fazer isso, foi rápido. Consegui organizar- -me muito bem. E muito rapidamente consegui, a partir do 3.º ano, levar as coisas mais facilmente.
Depois acabei o 5.º ano em julho e em agosto decidi descansar um bocadinho. O pessoal estava a concorrer para empresas de auditoria e à procura de trabalho como é normal e eu decidi descansar e preparar-me para o Conservatório, para a época de Setembro. Pensei: se entrar no Conservatório, entro, se não entrar vou procurar trabalho na área de Economia. Acabei por entrar no Conservatório e basicamente é esta a história.
Vê esses cinco anos que passou na FEP como um período importante para ser o Elmano que é hoje?
Eu quando saí da FEP achei que tinha sido uma perda de tempo, porque estamos a falar de cinco anos, dos 18 aos 23, que são anos importantes. Agora já não acho tão importante, mas na altura pensei que tinha perdido aquela parte da juventude maravilhosa a estudar que nem um mouro para tentar fazer um curso ao qual depois não ia dar propriamente seguimento. Mas mais tarde, e à medida que fui envelhecendo e tendo outras experiências, percebi que não. Tinham sido cinco anos que, de alguma forma, contribuíram ao nível emocional para que eu fosse uma pessoa mais persistente e mais madura.
Por outro lado, a FEP permitiu-me uma certa objetividade. Eu já era, mas tornei-me muito mais objetivo, mais preciso, porque só se podia preencher uma página, e depois era a escolha múltipla que obrigava a um rigor e a pensar de uma determinada forma. E agora que sou encenador e que faço projetos também, vejo que obviamente são mais- -valias que eu tenho e que no teatro, que é uma área onde essa objetividade pode não ser tão evidente como é por exemplo em Economia, isso é uma mais-valia e vejo que foi ótimo.
Mais uma vez: teria sido necessário fazer isso? Não sei, mas fiz. E ainda bem que o fiz porque me trouxe realmente competências que aplico. Porque também no teatro se faz gestão. É uma gestão diferente, mas faz- -se gestão. É preciso planificar, é preciso organizar, é preciso fazer orçamentos também. E estou à vontade com isso, porque, por mais que não acompanhe a economia como acompanhava na altura, há coisas básicas que nunca saem. Cinco anos são cinco anos, não são cinco meses. Tanto é que eu mais tarde dei formação.
Nos três primeiros anos do Conservatório eu dava explicações de vez em quando, um bocado para validar o facto de ter passado ter cinco anos em Economia. Eu dava explicações de macro e micro em centros de estudos, principalmente. Depois dei uma formação numa empresa que era mais ou menos introdução à economia. E mesmo tendo estando afastado este tempo todo está lá. Basta ler e vem logo. Obviamente que as coisas mais específicas e mais aprofundadas talvez não. Mas tudo o que é introdutório mantém-se.
Porque são cinco anos. Não há outra explicação, cinco anos marcam e naquela faculdade havia rigor. Isso obrigou-me a uma disciplina! Eu acordava às oito da manhã, tomava o pequeno-almoço e começava a estudar, pausa para almoço e estudava a tarde toda, enfim, para poder realmente conseguir fazer as coisas. E esta persistência, esta tenacidade, ajuda-me no teatro porque não é uma área nada fácil e evidente. Ter estes pontos de referência é bom.
São duas áreas que se complementam?
Sim, complementam. Mesmo na interpretação, sendo uma coisa mais subjectiva, na verdade tem que haver um rigor, o foco, saber o que estamos a fazer. Há quase um estudo pormenorizado, cirúrgico do que é preciso fazer do início ao fim da peça e isso obriga-te a seres meticuloso e organizado. Se vem da Economia ou não? Eu acho que a Economia ajudou-me a isso. Obviamente que não penso muito nisso, mas acho que sim porque tinha que ter um rigor para poder fazer essas coisas todas: Economia, ser guia, estudar teatro, pensar em não sei o quê e não desistir [risos], ser persistente…
No fundo, a representação, a ideia de subir ao palco, já vinha desde muito novo…
Eu acho que sim. Lembro-me que na altura só tínhamos dois canais – sem cinema, sem nada. A única coisa que havia era a RTP2 que até tinha ciclos de cinema interessantes. Então eu passava as noites todas acordado porque gravava. Cortava os intervalos porque não queria que o vídeo VHS tivesse intervalo, pois não era tão bom. Enfim … essas paranóias que se tem quando se é adolescente. E então percebi que havia ali um fascínio, não sei se seria logo pela interpretação, mas adorava atores e ficava muito interessado por aquilo. Era um mundo que me fascinava, talvez porque também não tinha oferta nenhuma.
E então era algo que parecia inatingível. Lembro-me que fui uma vez a Lisboa visitar o meu padrinho e que lhe pedi para ir ao Conservatório para saber como eram as provas de entrada. Vi mas depois na altura nunca mais me interessou. E um dia mais tarde … são coisas que ficam. Por isso sim. Desde quando não sei, mas desde muito novo sim. E ainda bem que voltei lá. Ainda bem que não me deixei seduzir por outras coisas.
Porque acho que é mesmo o que eu sou. Porque o que uma pessoa faz também é o que uma pessoa é. Eu acho que sou mesmo ator e podia perfeitamente ter acabado o curso de Economia e logo a seguir começar a trabalhar e mais difícil seria. Mas ainda bem que tive esta coragem de seguir o que eu achava que era o meu percurso.
E foi durante aqueles 5 anos a estudar Economia no Porto que se iniciou à representação no Teatro Universitário do Porto.
Exato. Eu entrei em Setembro ou Outubro e logo no primeiro semestre havia umas provas para o Teatro Universitário do Porto que na altura era num pequeno edifício que havia perto dos jardins do Palácio de Cristal. Eu não me lembro como soube que o TUP existia, mas como sou muito ativo devo ter procurado o que havia de teatro aqui no Porto e encontrei-o.
Fiz uma pequena seleção, escolhi um texto – já não me lembro qual, e fiquei. Comecei um curso de formação com umas pessoas que eu na altura não sabia quem eram, mas eram encenadores com quem eu viria a trabalhar como o Rogério de Carvalho. E assim fiz o TUP durante três anos. No quarto ano fiz teatro mas já foi na FEP. Havia um grupo de teatro lá também, por isso tentei acompanhar sempre o curso de Economia com o teatro. Não eram obviamente formações profissionais ou superiores mas de alguma forma ajudaram a preparar para as provas do Conservatório. Não fui para as provas do Conservatório sem uma noção de palco, de contracena, de luz, de público, …
Foi esse o meu percurso antes do Conservatório: três anos no TUP e um ano em Economia. Eram pequenas experiências de três ou quatro meses, mas com profissionais do espetáculo, pessoas que de alguma forma já nos podiam dar alguns elementos porque um ator trabalha sobretudo com a sua sensibilidade, com o seu corpo, com a sua voz, com as suas emoções e, para isso, é preciso pesquisar, é preciso investigar.
Nós às vezes passámos uma vida inteira sem saber bem quem somos, como lidámos com as nossas emoções. É o problema do Homem, da humanidade. Nós, atores, temos que fazer isso até porque quanto mais experiente for este instrumento, mais facilmente poderemos dar uma resposta a uma proposta de um encenador que quer uma coisa e de outro encenador que quer outra.
Foi no TUP que pisou o palco pela primeira vez?
Sim. Eu já não sei se aquilo era propriamente um palco ou se era uma sala de ensaios. Mas sim, a primeira experiência em cena foi no TUP. Foi em 98, no ano em que entrei em Economia. Lembro-me que tremia muito. Tinha um problema com a exposição, com o olhar do outro. De facto, nós estamos aqui e as pessoas estão a olhar enquanto fazemos as coisas e as minhas pernas tremiam imenso. Ainda no primeiro ano do Conservatório tinha essa dificuldade em controlar o corpo. Era mais forte do que eu.
De repente o corpo começava a tremer e cheguei a pensar “se não conseguir dominar isto nunca vou ser ator”. Mas de um dia para o outro perdi, habituei-me ao olhar do outro, acho eu, a gostar até do olhar do outro, a gostar de ser observado, a ultrapassar esses momentos, a ultrapassar o medo.
Acha que qualquer pessoa mesmo sem qualquer afinidade com o mundo do teatro e a representação deve procurar alguma introdução a este mundo? Quais os benefícios de o fazer?
Sim, tira sempre benefício até não querendo ser ator. Há muitas pessoas do TUP do meu ano que não seguiram teatro. Uns seguiram, outros não, mas há sempre um trabalho sobre o “eu”. Diz-se muito que há aquela questão de vencer a timidez, talvez se consiga vencer a timidez. Mas vale sempre a pena até como se vê pelas imensas empresas que pedem pessoas do teatro para dar formações. Eu tenho imensos amigos que vão dar formação sobre como estar em público, como falar com as pessoas, como se direcionar ao outro ou como comunicar, porque o teatro também é comunicação.
E há pessoas que têm esse poder fantástico. Vamos chamar-lhe carisma, de captar a atenção do outro. Nós falamos muito de presença em teatro, de teres presença em cena através da voz, do corpo, do olhar, da escolha do que fazes em cena. Isto pode-se aprender também ao nível das outras áreas. E não é interpretar. Isso é outra coisa. Podemos improvisar, podemos adaptar-nos às situações, mas não é a mesma coisa.
Agora, o teatro pode ajudar até a ter mais foco, a ser mais preciso, a comunicar, a ouvir, porque o teatro é muito de escuta. Se me disser alguma coisa eu vou reagir em função do que me disser. É a contracena. Eu não posso fazer nada sozinho. Mesmo quando é um monólogo, é uma contracena com a luz, com o silêncio, com os objetos, com o público… Nunca estamos sós no teatro e para isso temos de ter uma escuta muito apurada. E nesta sociedade contemporânea um bocado veloz e individualista, acabamos por perder essa escuta, a atenção, a curiosidade no outro.
O teatro ajuda a isso, e para um ator de profissão nunca está ganho. São coisas que nós trabalhamos todos os dias, mas nunca está ganho porque isto perde-se. Perde-se a sensibilidade, perde-se essa capacidade de ouvir, de olhar, de sentir, de estar presente – estar aqui, não estar nem atrás no passado, nem estar à frente, estar no momento. O teatro é a arte do presente.
Depois da FEP deu-se finalmente a entrada no mundo da representação quando foi estudar para o Conservatório em Lisboa. Foi nesse momento que percebeu que era realmente aquilo que queria?
Sim, eu lembro-me que fiz as provas do Conservatório, depois entrei e vi aquelas disciplinas todas e fiquei numa excitação por ir aprender música, aprender a tocar um instrumento, aprender a fazer imensas coisas. Percebi que aquilo realmente me cativava.
Eu acho que já sabia mesmo antes de entrar para o Conservatório. Lembro-me que o TUP foi difícil na altura porque foi o confronto e eu não queria, tinha vergonha às vezes, mas havia algo mais forte. Nem vou falar em “bichinho” porque nós odiamos estas coisas do “bichinho do teatro”, mas é algo mais forte, é saber que é a minha vocação. Não quer dizer que uma pessoa só possa fazer aquilo. Eu acho que podemos fazer imensas coisas.
Quanto mais interesses melhor porque um acaba por esclarecer outros. Mas acho que há um maior, uma vocação maior e acho que em mim é esta. Agora vou começar a escrever – descobri que também gosto de escrever -, se há uma formação eu gosto de dar formações, gosto de estar com as pessoas, fiz tradução, ainda adoro orçamentos, adoro matemática, mas escolher uma coisa para a minha vida é esta que eu escolhi e eu acho que já sabia desde a infância.
Não tinha a consciência, mas já sabia que era isto. E depois, à medida que fui caminhando nesta trajetória, percebi que mesmo que consigas fazer várias coisas ao mesmo tempo, tens de te focar numa porque senão nunca vais fazer essa como deve de ser. Quase até ao ano passado ou há dois anos fiz sempre muita coisa.
Acho isso ótimo mas tenho de me focar numa coisa. Não sei se a FEP me ensinou isso. Nunca espero que as coisas aconteçam, estou sempre à procura, a criar as situações. Eu digo que é a Economia, mas já não me lembro também. Mas eu acho que é. Esta coisa de, já nem falo em inovação, mas esta coisa de criar projetos, de encontrar o meu lugar, como as empresas de alguma forma, de tentar instalar-me no mercado, de tentar ter uma marca porque o meu nome é uma marca, e ter consciência disso eu acho que é bom.
Eu lembro-me no Conservatório que a uma certa altura eu achava que o talento seria suficiente para vingar nesta profissão, mas na verdade não. É preciso muito mais do que isso. Mas isso também o é para o líder de uma empresa ou para uma empresa que se quer implementar no mercado, que até pode ser fácil mas continuar é que é difícil. Com os atores é a mesma coisa. Nós rapidamente podemos entrar no mundo do teatro, do cinema, da televisão. Continuar é que é difícil porque pede um estudo constante, uma inovação de alguma forma como as empresas,…
Presumo que essa procura constante de novas oportunidades também esteja na base de hoje em dia ser mais que ator, ser também encenador.
Sim, mas já como ator eu fazia isso. Eu fiz a minha formação não só em Lisboa. Fiz o primeiro ano em Lisboa, o segundo em Madrid, depois no terceiro voltei para Lisboa, no quarto fui para o Brasil, o quinto fiz em Paris, depois fui para Nova Iorque,… Estou sempre à procura de situações pouco confortáveis porque estar lá fora também não é fácil. É muito bonito estar lá fora, conhece-se outra cultura mas também se está muito mais sozinho do que se está aqui. Mas, de alguma forma, sinto que isto me ajuda a crescer como ator, como artista, como homem, também porque as coisas estão estritamente ligadas.
Eu tenho uma professora que diz que o crescimento como homem está estritamente ligado ao crescimento como artista, mais do que em qualquer outra profissão. Então uma coisa ajuda à outra, a outra ajuda a esta e sem viver, sem ter experiências também não temos bagagem para trazer mais coisas e novas coisas, porque rapidamente nos tornamos também obsoletos. Deixámos de nos surpreender como atores e como encenadores e para procurar novas soluções temos também que parar e viver essas experiências para depois poder dar outro impulso.
Não é só a questão de fazer a coisa, é uma questão de fazer novas coisas. É também uma questão de se surpreender para poder surpreender depois o outro. E isso leva tempo, como qualquer coisa. E é isso que é difícil às vezes porque hoje em dia é tudo tão veloz que parece que temos que sempre inovar, sempre trazer coisas novas. Mas precisamos de tempo também para pensar, precisamos de tempo para criar. Se não soubermos o que vamos fazer, o que é que vamos trazer? Vamos trazer uma novidade mas não vamos trazer nada de novo na verdade.
E esta novidade vem e vai. É um dilema grande, esse. Não tentar perceber que é preciso tempo para poder fazer alguma coisa realmente significativa. Porque uma pessoa vai ao Facebook e está sempre tudo a acontecer, estão sempre pessoas a fazer imensas coisas. E de repente sentimos que também temos que fazer imensa coisa. Mas se calhar não. Se calhar temos que parar e pensar como é que chegamos até aqui.
Como ator já trabalhou em teatro, em cinema e em televisão. Qual é a que prefere?
Eu tenho mais experiência em teatro. Quando era mais novo o que me fascinava era o cinema, mas fiz muito mais teatro. Gosto muito de cinema. Gosto muito de teatro. Tenho pouca experiência em televisão. Fiz quatro ou cinco projetos de televisão e vou filmar agora outro que é as “Três Mulheres” do Fernando Vendrell. Eu acho que há projetos bons nos três – no teatro, no cinema e na televisão. Gosto mais de teatro porque é uma coisa do instante. É efémero, o teatro.
A representação que viu pode ser diferente da representação do dia seguinte. Parece igual mas pode ser diferente. E essa possibilidade de renascer a cada dia, de fazer de novo, de falhar de novo, de surpreender de novo, só acontece no teatro. Isso é mágico. E depois não fica nada. Enquanto o cinema de alguma forma cristaliza. Cristaliza a juventude, o amor, a paixão, … Isso é muito bonito no cinema, na televisão também. Na televisão digamos que é mais difícil encontrar projectos interessantes. Mas agora há imensos. A RTP está a investir imenso e a apostar imenso em séries.
Fiz, aliás, a “Filha da Lei” que eu acho que é uma série fantástica que tinha uma equipa boa e foi um projecto muito interessante. Por isso depende. Acho que tenho maior experiência em teatro, mas gosto de fazer estas coisas. Desde que seja um bom projeto com uma boa equipa – uma equipa em que estejam todos a caminhar no mesmo sentido, quando o projeto é mais importante do que os pequenos interesses individuais de cada um dos elementos -, quando o projeto é bom não interessa se é teatro, cinema ou televisão. Estamos a fazer parte de alguma coisa, de uma experiência. E depois é muito volátil também. E isso é que é bonito nesta profissão porque são dois ou três meses e acabou. Depois vem outra coisa de dois ou três meses e acabou.
É por isso que a tua trajetória é uma trajetória também muito pessoal. Qual é o artista ou qual é o actor ou encenador que tu queres ser? Porque depois trabalhas em vários projectos. Agora que sou encenador, que faço os meus projectos, tenho uma linha, uma estética, que obviamente é mais “a minha” mas não deixo de trabalhar com outros encenadores que têm outra estética. E estou a contribuir com a minha interpretação para o universo de outra pessoa. Portanto não é a linha inversa, o que é óptimo. E depois quando faço um trabalho de encenação há outra coisa: é o meu ponto de vista sobre um texto. É diferente.
Está agora em cena com a peça “O Rei Lear”, uma adaptação de Shakespeare. Peça que representa a procura cega pelo poder. Vê essa cegueira no mundo?
Eu acho que sempre existiu e sempre vai existir. É inevitável. Acho que é evidente. Acho que o poder cega, o poder é aliciante, o poder é um chamariz. Depois o que se faz com ele, ou como se chega lá ou a forma como se utiliza esse poder é que é diferente.
Mas a peça fala também do amor do pai em relação às filhas. O pai quer comprar esse amor. Ele dá mais o dote à filha que o amar mais. Cria logo um dilema porque a filha mais nova diz que não precisa de dote nenhum, então ele acha que por ela não precisar, provavelmente por não declarar o amor que tem ao pai, é porque não gosta dele e acaba por não lhe dar dote nenhum e acaba por a excomungar. É incrível Shakespeare.
Em todos os textos, todos não, nos bons textos encontramos sempre várias leituras. Num do Shakespeare é uma coisa que nunca mais acaba. E depois não envelhece. Há esta questão dos textos … há textos que são datados, são de uma época, serviram uma época e às vezes o escritor percebe que este texto envelheceu. Envelheceu mal. Do Shakespeare é uma coisa … é um génio, para continuar a ter uma ressonância hoje em dia. Para um ator é incrível.
Nesta peça interpreta a personagem de Edmundo, o seu filho ilegítimo, que procura a todo o custo subir na vida. Acha que na sociedade em que vivemos o homem não está determinado onde nasce? Consegue subir na vida caso queira, com força, com trabalho, com dedicação?
Eu acho que isso é muito bonito e acho que sim. Quero acreditar que sim. Mas tenho consciência que também é mais difícil para essa pessoa. Porque essa questão da sorte … obviamente nesta profissão é uma coisa incrível. O talento sim muito, o trabalho também, mas se não tens a sorte … Mas a sorte também, eu prefiro acreditar, é trabalho. E depois, obviamente, se nasces com um determinado nível de influências quanto mais as tiveres melhor.
Mas eu prefiro acreditar que além do esforço e do trabalho te levarem a algum lugar, vão-te levar a um lugar que é teu e que é certamente mais interessante do que os outros te poderiam levar. Eu prefiro pensar assim e pelo menos é esse o meu percurso. É trabalho, esforço, dedicação e ser fiel a essa vocação, essa paixão, sem me deixar iludir por outras coisas. Mas há muito trabalho. É muito duro, muito duro mesmo.
Esta peça do Rei Lear esteve em cena no Teatro Nacional de São João, que coordena este espaço onde estamos [Mosteiro de São Bento da Vitória]. Considera que em Portugal se dá o devido valor às Artes?
Representa muito pouco ainda no Orçamento do Estado. Tanto é que há agora a luta do CENA [Sindicato dos Trabalhadores de Espectáculos, do Audiovisual e dos Músicos] para 1% do Orçamento que obviamente não foi aprovado. A Direção Geral das Artes, por exemplo, ainda recebeu menos do que nos outros anos.
É uma luta constante tentar fazer perceber que a cultura também pode ser benéfica, mesmo economicamente. Lá está, cultura e educação também andam juntas. Tem que ser uma aposta nas duas coisas. Mas é uma luta constante, sim. Ainda há um bocado daquela ideia de que quem corre por gosto não cansa, mas que ideia tonta é essa? Toda a gente cansa, com gosto ou sem gosto.
O gosto ajuda a cansar menos mas claro que cansa. As pessoas têm que ser remuneradas. As pessoas têm que ser pagas. Tem que haver investimento na cultura. Tem que haver aposta. Mas eu acho que é uma luta que, infelizmente, temos que continuar. Para termos melhores condições de trabalho, para termos mais dinheiro para poder fazer espectáculos, cinema, teatro, … Tem que haver uma aposta, tem que haver um compromisso realmente com a cultura. Esta profissão nunca é confortável, podia sê-lo um pouco mais confortável. É por isso que muitas pessoas às vezes não vão para teatro por causa da questão da instabilidade. Podíamos viver com mais conforto.
Podíamos viver com mais condições do trabalho, com mais dignidade também. Porque viver sempre nesta marginalidade não é bom. É duro, é muito duro. Por exemplo, com o estatuto de intermitência em França e na Bélgica, o que é que acontece? Se uma pessoa conseguir fazer 517 horas ou 520 horas de trabalho num ano, permite que no ano seguinte lhe seja atribuído um subsídio que permite, por exemplo, financiar projetos próprios. Aqui é impossível.
Não temos este estatuto de intermitência. Isso é o quê? É ter a consciência que isto é uma profissão intermitente, que não se trabalha de forma contínua e que o que nós ganhamos durante uns meses não dá para os outros meses. Porque são as contas que um artista faz. Tem que ter condições para poder pensar nos projetos. Por que é que os tempos passam e o teatro persiste?
O que é que faz com que as pessoas vão ao teatro ver uma peça de teatro? Menos, mas vão. Porque o teatro é mais forte do que isso tudo. O teatro não vai acabar. Mas os artistas acabam, alguns. Vamos ter que continuar a lutar para ter as condições mínimas, porque isto nem são condições mínimas de trabalho.
Acha que os portugueses veem o teatro como um produto para as elites?
Eu acho que sim, de certa forma. Se formos a tentar perceber quem é o espectador médio vemos que se calhar não é propriamente o que representa grande parte da população portuguesa. E se calhar é realmente uma pessoa que faz parte de uma certa elite. Mas nós se calhar também temos responsabilidade nisso como artistas. Mas, lá está, que responsabilidade? Também está vinculada à questão do governo e dos apoios. Como é que se aproxima o teatro das pessoas? Como é que se faz isso? Como é que não se afasta?
Por isso é que uma peça tem que ser pensada sempre no público. Não é fazer uma peça para agradar ao público mas fazer uma peça tendo a consciência de que vamos ter um espectador. Mas há todo um trabalho por fazer ainda em relação a isso. Acho que há pessoas que estão à frente de teatros que estão a fazer esse trabalho mas leva tempo. As coisas levam tempo, décadas, para conseguir mudar. Em Valpaços não tinha cinema, agora acho que já há. Não havia teatro nas escolas, acho que ainda não há. Só algumas escolas têm. Leva tempo a mudar as mentalidades, também.