Opinião de Bernardo Marta e Sara Ârede
Também incluído no FEPIANO 47, publicado em Maio de 2022
O meio ambiente envolve toda e qualquer manifestação de vida, é o ventre que cria cada uma delas e, por isso, tudo o que é vivo é Natureza. Tão antiga é esta relação que, mesmo sem ciência ou preces, não seria difícil crer que seria irmã do próprio tempo. Tudo acaba por ser Natureza e sem esta nada restaria.
Se tudo dela faz parte, devemos lembrarmo-nos do ínfimo lugar que ocupamos no seu seio, apesar de comumente separarmos o conceito humano do natural.
As épocas sucedem-se, perspetivas alteram-se, valores são trocados tal como a moeda, sociedades erguem-se e caem por terra e, no entanto, a peça central que os olhos procuram não parece ter mudado de posição: o ser humano.
Independentemente da cultura, meio, sociedade ou época, o registo da realidade foi, desde os primórdios, realizado segundo a relação que os eventos estabelecem com os deuses ou connosco. Esta visão antropocentrista que nos parece ser intrínseca molda a nossa perceção do mundo e filtra de forma inegável o que é aceite e reconhecido, fazendo-nos questionar acerca do que estará a ser desconsiderado ou o que meramente optamos por não ver.
Há muito que o ser humano se esgota tentando perseguir o paradigma de poder controlar e possuir o que o rodeia, como se de um elemento extrínseco ao resto se tratasse, como se fosse o pico da evolução biológica, o apogeu da natureza ao qual tudo é subalterno.
Pode-se gozar de comunicação instantânea ou correr o mundo através de um simples “clique”, é possível levar pessoas à lua e desviar trajectórias de corpos celestiais, mas apesar disso parecemos simplesmente incapazes de ser bem-sucedidos em algo tão trivial como assegurar a própria sobrevivência, colocando-a continuamente em causa de espírito leviano. Arrogantes e incautos, levamos à extinção inúmeras espécies, bem como à destruição de habitats como se tentássemos derrotar exatamente aquilo que nos dá vida. Quanto tempo aguentaremos nesta mortal trajetória?
No entanto, parece que as turbas vão adquirindo alguma lucidez.
Num antro de futuros gestores e economistas, terá com certeza cruzado a mente de algum uma ponderação de custo-benefício entre os valores dos marcos tecnológicos e conquistas a nível da qualidade de vida e do que se abdicou para alcançar tal, mesmo integrando um ensino que menospreza as questões ecológicas de tal forma que as remete para nota de rodapé ou demérito de conhecimento menor. Mas porque retiramos tantas vezes dos nossos cálculos as inúmeras evidências de que políticas ecologistas podem ter, de facto, um impacto positivo nas questões sociais, sobretudo no que toca a temas relacionados com coesão e inclusão? Uma aposta na economia circular e nas energias renováveis, por exemplo, não só apresentaria grandes benefícios ambientais, mas também sociais, através da criação de empregos, acesso a melhores condições de trabalho e aumento do nível de satisfação dos trabalhadores.
A resposta poderá parecer estar além das nossas capacidades, pois, se por um lado reconhecemos a gravidade da situação ambiental que enfrentamos, por outro, é-nos insuportável pensar sequer em negar certas comodidades ou direitos em prol de uma comunhão com a Natureza, mesmo que tal signifique uma maior comunhão com o nosso próprio ser. A chave da questão não passa por assumir que a qualidade de vida e bem-estar devem diminuir em detrimento da preservação do ambiente. É precisamente o contrário! Temos de abandonar o nosso vício em sucumbir a dicotomias e exigir justiça ambiental para que de facto possa haver justiça social, pois estas são indissociáveis.
O agravar das alterações climáticas prejudicará com maior veemência as comunidades mais pobres; populações onde se verifica uma maior preponderância a sujeitar-se a trabalhos precários, sem condições de segurança e a viver em áreas cujo bem-estar é negligenciado. Deixar que estas se agravem significaria sentenciar milhares de pessoas a ver reduzida a já escassa listagem dos seus direitos fundamentais cumpridos, tomados como garantidos por uma maioria privilegiada.
Em adição, os custos da transição climática não podem ser repartidos de forma arbitrária. Devem ser imputados segundo o dano ambiental previamente causado e a capacidade de contribuição financeira para esta missão que é de todos. É profundamente imoral pedir a quem já se vê desamparado e oprimido que suporte de igual forma o custo dos desvarios de quem os condenou a tal situação.
As formas de dominação que persistem em trespassar vidas humanas não podem continuar a escapar de soslaio entre as lacunas do modelo atualmente implementado de combate às alterações climáticas. É possível, imperativo e condição necessária que a melhoria das condições de vida das classes baixas e médias seja feita a par da transição ecológica.
Mas não podemos deixar de referir que a solução deste dilema já foi, em tempos, clara e era em torno da qual que giravam os comportamentos, crenças e valores. Sociedades e tribos esquecidas ou forçadamente votadas ao esquecimento tinham e têm em comum não só a consciência, mas a capacidade de encarnar e rever-se como um órgão da Natureza e não o inverso, respeitando e preservando-a, reconhecendo a força e vitalidade que lhe são inerentes através de homenagens, ritos e práticas efetivas e palpáveis.
Ironicamente, apesar da atual sensibilidade no que versa a tradições e aspectos culturais e à possível alteração ou abdicação de alguns destes, acabou-se por permitir que se perdessem princípios que frequentemente tendem a ser vistos pejorativamente como “primitivos”, enquanto deveriam ser encarados como sabedoria ancestral. De facto, não é preciso descobrir uma realidade paralela e utópica onde tanto a Natureza e o Homem possam subsistir, vingar e florescer; pois somos nela enquadrados e não dela suseranos. Apenas uma boa relação entre estes dois pilares poderá sustentar a vida na Terra e possibilitar uma melhor qualidade de vida para todos.
O atraso em sair do impasse em que nos encontramos reside na falta de capacidade para compreender a ligação entre estes dois pilares.
Cabe no domínio do sonho possível um futuro capaz de regenerar ecossistemas ao mesmo tempo que regeneramos as nossas sociedades, prevenindo e corrigindo crimes ambientais e sociais relacionados com uma mesma mentalidade e noção de poder que subsistem há demasiado tempo.
Largue-se este plural acerca da espécie humana de modo a travar o que aparenta ser uma pandemia de inação e inércia, pois há efetivamente focos de consciência ambiental, centelhas que se multiplicam quer devido à urgência da atual situação, quer por um maior enraizar na verdadeira dimensão do ser humano. Resta saber se conseguirão influenciar a sociedade a tempo de evitar um cataclismo.
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