Isabel Soares é professora na FEP há mais de 40 anos e especialista na área da Economia da Energia. Ao longo da sua carreira, lecionou em diversas universidades, como Coimbra, Vigo, Coruña, Strasbourg, Virginia (EUA), Turim, Bergen, S. Paulo, e Rio de Janeiro. Trabalhou ainda como consultora para diversas instituições, como o Governo português, o Banco Mundial, a ERSE, a ANEEL, a DECO, a Associação Nacional das Indústrias de Cerâmica e do Vidro, A Associação Empresarial de Portugal e a Comissão Europeia, e é atualmente vice-presidente da Associação Portuguesa de Economia da Energia. Vai agora reformar-se. Nesta entrevista, discute os contributos mais importantes da área da Economia da Energia, abordando assuntos como as alterações climáticas, a posição energética da União Europeia, o caso energético português e os mais recentes avanços na produção de energia por fusão nuclear.

A professora Isabel Soares ensina na Faculdade de Economia da Universidade do Porto há mais de 43 anos, tem mais de uma centena de publicações e vai agora terminar a sua carreira. Durante estes anos trouxe muito à nossa casa. Que recordações da faculdade leva com mais carinho?

Levo comigo, sobretudo, uma excelente relação com os alunos. Tenho a felicidade de poder dizer que, periodicamente, tenho almoços, jantares e pequenos-almoços com alunos e alunas que estão a fazer variadíssimas coisas um pouco por todo o mundo. Por exemplo, tenho um ex-aluno de doutoramento que está nos Emirados Árabes Unidos, outro que está na Universidade de Santa Catarina, no Brasil, outro que está no Banco Mundial, … Tenho vários e fico muito grata por manter essa relação. Estes casos são de ex-alunos de doutoramento, mas também construí diversas amizades com alunos da licenciatura e do mestrado. Portanto, o que talvez me dê mais conforto é essa relação e, para além disso, saber que os meus alunos ou antigos alunos não têm qualquer problema de me pedir ajuda. Sabem que, quando não posso ou não sei, os coloco sempre em contacto com quem possa ajudar. Por exemplo, ontem, estive a tomar pequeno-almoço com um ex-aluno meu que está a trabalhar no mercado ibérico de eletricidade (OMIP), e conversámos sobre questões ligadas a opções profissionais dentro da própria organização. Por falar nisto, deixem-me dizer-vos que, se há algo que eu gosto de ver na FEP, é que a maioria dos alunos são muito realistas. Ou seja, às vezes aceitam um determinado emprego sabendo que é apenas transitório, e aproveitam as oportunidades – isso, para mim, é algo excecional.

Outra das coisas que me alegra ver é que a FEP tem evoluído muito, quer em termos de qualidade científica quer em relação à abertura internacional. Atualmente, em comparação com o ano em que eu entrei (1978), a FEP está muito melhor intelectual e cientificamente, mas também do ponto de vista humano. Quando entrei, vivia-se uma espécie de “luta campal” em que cada pessoa que viesse de fora era atacada. E usava-se tudo – política, jornalistas, … – para denegrir a imagem. Tudo, tudo! Eu resisti, porque me foquei na carreira científica e sempre estive muito ligada a grandes centros de investigação internacionais, mas não foi nada fácil. Nesse aspeto, apesar de a FEP e de a Universidade serem um reflexo da sociedade, acabam por ser muito especiais, porque é gente, normalmente, com um nível de inteligência superior – ou seja, mais sofisticada no bem e no mal! [risos] Mas, sem dúvida nenhuma, a própria evolução da FEP, para mim, é algo que me dá muito gosto! Em vez de ver o ambiente a tornar-se cada vez pior, cada vez mais execrável – como acontece em algumas instituições e que não é bom para ninguém –, na FEP, apesar de haver alguma luta interna e problemas a resolver, genericamente estamos muito melhor e isso traz-me muita alegria!

A professora Isabel é especialista na área da Economia da Energia. O que acha mais interessante neste subdomínio da economia?

A Economia da Energia é, sem dúvida alguma, uma área em que é possível agregar e, ao mesmo tempo, utilizar várias ferramentas da Ciência Económica. Simultaneamente, não nos deixa escapar às questões geoestratégicas, de lobbies económicos, políticos, …, ou seja, ao próprio comportamento das pessoas. Estamos ligados, cada vez mais, à Economia Comportamental, por exemplo. Portanto, é uma área em que é possível utilizar várias ferramentas, muitas vezes em conjunto, e que é basilar à evolução das economias e dos mercados. Sem energia, não há nada, a começar pela comida que nós ingerimos, que é energia. Se nós percorrermos a História, vemos que a energia está na base de muitos eventos decisivos.

As empresas conseguem sempre antecipar-se

Vejam a Ucrânia, por exemplo: entre os vários problemas, há um problema de energia e de matérias-primas. Daí a Economia da Energia ser uma área que sempre me atraiu muito. Sobretudo, pela relação entre energia, recursos naturais e ambiente, pura e simplesmente porque o setor da produção de energia é o principal responsável pelas emissões atmosféricas. Ele e o dos transportes. Mas, olhando para os transportes, acabamos sempre por cair em energia, porque os transportes utilizam formas de energia e é por isso que poluem.

Quando despertou para estes problemas?

Quando acabei a licenciatura. Estávamos no segundo choque petrolífero, a energia era um tópico muito falado, que colocava inúmeros desafios, e isso chamou-me à atenção. Depois, como me interessava, concorri a uma bolsa para um curso intensivo na área da energia e do ambiente organizado pela Universidade de Harvard e por um centro científico, o Ettore Majorana Foundation and Centre for Scientific Culture. Estes cursos eram organizados de dois em dois anos, já na altura, e eles dispunham de um número muito pequeno de bolsas, duas ou três, para jovens investigadores promissores. Eu concorri, sinceramente sem esperança nenhuma, mas, como se costuma dizer, ninguém ganha a lotaria se não apostar. Foi o que me aconteceu – consegui bolsa e lá fui para Itália, sacrificando umas férias! Nunca ouvi falar tanto de energia nuclear como ali – tinha-se dado o desastre da central de Three Mile Island –, e fiquei a perceber muito mais sobre o tema. A partir daí, defini que queria trabalhar na área. Esta área apaixonou-me verdadeiramente. Mesmo sabendo, a priori, que tinha de passar por uma fase de estudo mais ligado à engenharia. Porquê? Para não cometer erros. Um economista da energia tem de saber o básico, como as leis da termodinâmica, para não cometer erros grosseiros.

Já na altura havia vários economistas da energia, principalmente nos Estados Unidos e na Alemanha. Aqui na FEP, o que me disseram foi que Economia da Energia nem sequer existia, não era uma ciência. Eu doutorei-me em 1986 na Universidade Louis Pasteur de Strasbourg e a minha especialidade era Economia da Energia! Pois aqui, nesta faculdade, entendiam que isso não existia, que não era Economia! Mesmo que o Journal of Economic Literature já a considerasse! Então, deram equivalência ao meu doutoramento em Mesoeconomia, que ainda hoje eu estou a pensar o que será ao certo – nunca descobri o que era! Aquelas cabeças iluminadas…

Voltando ao período entre o curso de Harvard e o deadline que tinha imposto a mim mesma para iniciar um doutoramento, comecei a trabalhar, a publicar, e concorri a uma bolsa que acabou por lançar a minha carreira. Eu queria ir para os Estados Unidos, mas, na altura, tinha uma filha pequena e era muito complicado – não podia vir cá todos os meses visitar a minha filha, era impossível. Então, concorri a uma bolsa do governo francês, do ministério dos negócios estrangeiros. Havia duas bolsas a atribuir a nível nacional e eu ganhei uma delas. Além disso, perante a minha estupefação, deram-me logo a bolsa para um período de cinco anos. Eu própria não achava que fosse precisar de tanto tempo, mas quem analisou a minha proposta calculou que eu precisava dos cinco anos para a área e, pronto, foi assim que me lancei!

Não há solução para o aquecimento global

De tudo o que aprendeu, quais foram as conclusões mais interessantes e/ou controversas que tirou? Se destacasse um contributo da Economia da Energia para a ciência em geral, qual seria?

Várias, mas talvez a mais surpreendente se ligue à relação entre empresas de energia e regulação de mercado e as especificidades da indústria energética, nos segmentos competitivos, que tornam estes mercados tão complexos. Também que, por mais avançada e sofisticada que seja a regulação económica, as empresas conseguem quase sempre antecipar-se. Isto, para mim, é claro. Donde é absolutamente urgente a exigência, mesmo nos setores regulados, que o regulador, não só seja independente, mas também tenha uma capacidade de análise com um staff muito qualificado e em permanente ligação com instituições de investigação e congéneres internacionais. Eu, por exemplo, tenho experiência nisso com a ERSE [Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos] e com a ANEEL [Agência Nacional de Energia Elétrica], no Brasil. As empresas, mesmo nos segmentos regulados, arranjam forma de esconder proveitos, de manipular a eficiência. Por exemplo, uma das formas mais fáceis de o fazer é através da subcontratação. Acaba-se com o departamento de contabilidade, de gestão financeira, de manutenção, etc., e subcontrata-se um terceiro que os substitua. Hoje, por exemplo, a previsão de preços muitas vezes já não se faz dentro das empresas de energia, como se fazia anteriormente. Ora, estes são normalmente grandes contratos, a que vale a pena estas instituições e empresas concorrerem, porque têm ali um contrato fabuloso, além de interessante do ponto de vista científico, em alguns casos. Como são vários a concorrer, a empresa consegue preços melhores e, além disso, poupa numa série de encargos com o pessoal. Daí tornar-se mais eficiente: a empresa passa a ter menos encargos, por exemplo, por cada cliente ou por quilómetro de rede. Mas é porque ela fez alguma inovação? Não totalmente ou maioritariamente. Para o regulador, isto é muito complicado. Portanto, se há problemas superinteressantes, este é um deles: a ligação entre a regulação e o mundo empresarial da energia. Não se esqueça também o problema da assimetria de informação que continua a ser um desafio sério. 

Outro dos elementos importantes é a influência da geoestratégia. Aliás, há estudos muito recentes, em que alguns autores (embora poucos) estão a chegar à conclusão de que os fatores que influenciam mais os preços da energia são fatores ligados à incerteza. Incerteza na sua plena aceção – aquilo que pode acontecer, mas que nós não sabemos bem como é que pode acontecer. Uma guerra, por exemplo… ou a entrada de muitos fundos financeiros nos investimentos em empresas de energia. Esta questão dos fundos é bastante importante porque um fundo financeiro tem uma lógica muito particular. Tem sobretudo uma lógica de ganho; no entanto, pode ter interesse em mandar uma empresa abaixo para um outro fundo vir resgatar barato. Esses jogos são extremamente complexos, mas extremamente atraentes do ponto de vista de análise.

Qualquer entendimento internacional a que se chegue é bem-vindo, mesmo que seja pequeno

Na sua opinião, qual é a solução para acabar com o aquecimento global? 

Não há solução, não é possível. Já mitigá-lo, que é o que estamos a tentar fazer, é difícil – tem de haver um envolvimento global, principalmente dos principais poluidores, ou seja, os Estados Unidos e a China. Contudo, isto traz à tona desafios enormíssimos relativamente a duas coisas: problemas de crescimento económico (sendo que, ligados a este, estão os problemas da dimensão e das aspirações da população) e de reorganização industrial. E isto não é fácil. De onde é que pode partir essa tentativa de mitigar o aquecimento global? Normalmente, passa por uma abordagem top-down. Pessoalmente, eu sou uma grande defensora do bottom-up, até em política. A democracia começa pelo meu bairro, vai à cidade e depois vai ao resto – as práticas democráticas devem ser assim, pois só assim é que são enraizadas – ou seja, bottom-up. Contudo, normalmente, estas práticas vêm por medidas políticas e entendimentos internacionais – portanto, top-down. Mesmo nesse prisma, até podemos implementar uma política, na perspetiva europeia. A questão é que outras regiões do mundo têm outras realidades. Vejam o caso da China e da Índia, que têm um dilema de crescimento. Embora diversos, ambos os países, para além do dilema de crescimento, têm uma população que, nos últimos anos, criou muitas expectativas e que teve um avanço extraordinário de nível de vida, embora com muitas assimetrias. Ora fazer a reconversão industrial, em pouco tempo, de maneira a combater o aquecimento global, afeta sem dúvida os rendimentos, o PIB. Não criemos ilusões. Isso pode dar instabilidade política e nenhum governo quer instabilidade política. O caso dos EUA também é muito interessante, porque há todo um regime de lobbies.

Ou seja, o combate ao aquecimento global tem variadíssimas nuances, e vai levar tempo. Por isso, qualquer entendimento internacional a que se chegue é bem-vindo, mesmo que seja pequeno. O importante é que se avance em qualquer coisa.

Este problema do aquecimento global também coloca outra questão muito importante: faz voltar à cena a velha questão do nuclear. Fala-se muito dos novos reatores, que estão a ser trabalhados com força, com muita esperança de que vão ser o futuro. Há muita divulgação desta mensagem, até mesmo por centros científicos. Mas a verdade é que ainda não vimos nenhum a funcionar em pleno. Primeiro, é preciso vermos o ensaio e, depois, que seja em quantidade que torne as centrais nucleares dessa nova geração rentáveis. Uma central pode não ser rentável, porque obriga a uma série de despesas que não são fáceis de comportar. Portanto, é necessário que países, por exemplo, como a Índia e a China coloquem como prioridade terem as suas centrais nucleares a funcionar em pleno. Porquê? Porque reparem, as novas renováveis – a biomassa (embora haja um desacordo muito grande em considerá-la como renovável), as marés, as ondas, a geotermia, mas principalmente a solar fotovoltaica e a eólica, que são as mais comuns – têm um grande problema de intermitência. Se não há vento, se não há sol, não há energia. E depois, ficamos às escuras? Portanto, é preciso termos centrais de backup, que funcionem quando não há vento ou sol suficiente. Para isso, tem-se apostado nas centrais a gás, porque o gás natural tem um impacto muito pequeno nas emissões atmosféricas (principalmente de dióxido de carbono), logo é altamente recomendável – é como uma espécie de combustível de transição.

Não sou simpatizante da energia nuclear

Ora, o nuclear praticamente não emite CO2, mas o problema do nuclear não são as emissões – é, sim, o facto de que um pequeno erro humano pode ser catastrófico, para além da produção de resíduos nucleares. Eu acredito que a questão nuclear volte em força. No entanto, em termos pessoais, eu não sou simpatizante da energia nuclear, essencialmente pela questão dos resíduos. Mas acredito que vai haver um investimento muito grande na nova geração das centrais nucleares, e que o nuclear vai fazer parte do futuro. Claro que há problemas: por exemplo, ter uma central nuclear no Japão, que é uma região com muita atividade sísmica, é muito complicado. É como ter uma central nuclear na falha de San Andreas, na Califórnia. Aquilo está sempre a “mexer”, logo qualquer desequilíbrio é um problema. Outra questão que nós economistas precisamos de trabalhar, e não deixar só aos engenheiros, é a articulação entre o armazenamento e a energia verde. Se tivermos dias consecutivos de vento e sol e não utilizarmos a energia adicional que geramos por causa disso mas tivermos capacidade de armazenagem, podemos aproveitar essa energia e produzir menos nos dias seguintes. É bastante importante, principalmente para nós economistas, ver a ligação que isto tem, por exemplo, com o planeamento estratégico das empresas de produção de energia elétrica. Porquê? Porque mexe com o planeamento dos investimentos – para eu prever se vale a pena investir numa central com determinadas características, eu já não preciso só de pensar na evolução da procura, na evolução dos preços, no valor do investimento, mas tenho que pensar também, em termos globais, em que estado estará a nossa capacidade de armazenamento. O que é que se prevê nos próximos dez anos? Tenho que tomar isso em consideração. Não adianta fazer uma central nuclear ou termoelétrica de grande capacidade se viermos a ter muita armazenagem e uma grande produção de energia renovável. Outro ponto muito desafiante para nós economistas é a parte financeira. Vejamos o caso da energia nuclear: a seguir ao desmantelamento de uma central, o terreno não pode ser utilizado por vários anos (normalmente sessenta), porque está contaminado. Ora, isto deve ser levado em conta na análise de investimentos. Talvez a melhor forma de avaliar este tipo de investimentos seja à luz da teoria das opções, mas, mesmo por métodos tradicionais, eu não posso deixar de pensar que, durante sessenta anos, aquele terreno não serve para mais nada e, portanto, eu não posso comercializá-lo ou aproveitá-lo num prazo até superior a esse. Apesar de não ter nada a ver com a nuclear, vejam o caso da refinaria de Matosinhos. Este é outro caso muito complicado. Está previsto para lá a implementação de uma cidade da inovação e, para isso, é preciso descontaminar os solos. Isto vai levar vários anos e, para além disso, vai implicar um gasto de milhões de euros. Pensem bem no impacto que isto não terá nas contas da Galp, que, em simultâneo com este gasto enorme, também está a investir na transição para novas áreas de negócio. Pensem bem no esforço financeiro a que isto obriga! Portanto, apesar de a Galp estar em transição – estar no caminho certo, na minha perspetiva –, terá que conservar, pelo menos até certo ponto, a sua core area. Caso contrário, não terá fundos suficientes para investir nestas novas áreas de negócio. Ou seja, não restem quaisquer dúvidas de que a Economia e as Finanças estão intimamente relacionadas com quase tudo o que diz respeito à energia.

Com a invasão da Rússia à Ucrânia começou uma escalada dos preços do petróleo e do gás natural, matérias-primas importantíssimas para os países ocidentais no abastecimento energético. Considera que a solução para o problema na União Europeia passa pela adoção de fontes de energia alternativas (como energia eólica, solar, nuclear)? Se sim, quais?

Sem dúvida, mas não é suficiente. Para haver uma transição, nós temos o problema das centrais de backup e, portanto, precisamos de gás natural. A questão do petróleo é também muito importante, mas reparem: o gás natural russo, em particular, no caso do Nord Stream, que liga a Rússia à Alemanha através do mar Báltico, destina-se exclusivamente à Alemanha. Esta dependência está a criar problemas no curto prazo e vai continuar a causar problemas no médio prazo, porque não se reconverte um sistema e nem se fazem novos contratos de abastecimento rapidamente. Portanto, a solução passa sem dúvida alguma pelas energias renováveis – principalmente as novas energias: solar, eólica (onshore e offshore), marés, e outras formas de energia – mas também por um grande reforço da investigação e do desenvolvimento da armazenagem de energia, que é fundamental. De qualquer forma, temos que ter centrais de backup e, portanto, não querendo voltar ao carvão, temos duas alternativas: gás natural e nuclear. Ou as duas! Mas estão a ser assinados novos contratos e vai levar tempo, mas vamos diversificar. Claro que os Estados Unidos estão animadíssimos, porque os Estados Unidos produzem muito gás natural, tanto convencional como não convencional (de xisto) e estão interessadíssimos em exportar. Eles têm uma grande produção interna, mas uma capacidade de armazenamento limitada e, a certa altura, há tanta produção que o preço começa a baixar dentro da própria economia americana. Baixando demasiado, as explorações mais caras (que são as do gás de xisto) começam a não ser rentáveis, portanto eles têm que exportar. A melhor forma é liquefazer e exportar para a Europa (ao chegar à Europa, ele é novamente transformado em gás, ou regaseificado). Ou seja, nada disto é inocente. O facto de a Ucrânia se ligar mais ao ocidente também é muito interessante para os Estados Unidos, porque é uma forma de intensificar a exportação de gás natural. Só que isto vai levar tempo. Eu creio que esta crise intensificou a política renovável dentro da Europa, e vai também intensificar a questão do armazenamento. Isso é bom. É um lado bom para o ocidente, não para a Ucrânia. Mas, por outro lado, vai fazer diversificar as fontes de abastecimento. Mas nada disto também é inocente, porque, em 2014, houve também uma crise de abastecimento de gás na Europa, quando os russos também entraram na Ucrânia, e o que é que aconteceu?

Putin perdeu a noção da realidade

A Península Ibérica foi chamada a “piscina europeia de gás natural”. Nós estávamos cheios de gás natural, com os contratos de longo prazo da Nigéria, na altura ainda de Trinidad e Tobago, etc. Mas não podíamos fornecer o resto da Europa, porque a capacidade dos gasodutos através dos Pireneus era muito pequena. E porquê? Porque a França se opôs sempre a que esses gasodutos fossem de maior dimensão – obstou junto da Comissão Europeia que houvesse fundos financeiros e apoio para construir esses gasodutos. Simplesmente porque queria manter o seu abastecimento nuclear, queria rentabilizar as suas centrais nucleares e queria fazer mais centrais de regaseificação em solo francês, para que tanto Espanha como Portugal não tivessem qualquer parte ativa. Portanto, nenhum país europeu é inocente. Se as coisas estão como estão, e estão tão graves assim, a França tem uma grande parte da culpa. A Alemanha também, obviamente, porque conseguia contratos muito favoráveis. Aliás, no caso alemão, a questão é particularmente sensível, porque o gás natural é fundamental para a indústria. Quando pensamos no gás natural, tendencialmente pensamos em aquecimento ou produção de energia, mas essencialmente é para a indústria. Portanto, acho que ainda vai demorar tempo e, sinceramente, tenho muito receio do que esta contenda vai dar. Na base, como vêem, há muita energia.

Eu tenho muito receio, porque Putin perdeu a noção da realidade. Ele está sozinho a decidir, rodeado de um círculo de oligarcas corruptoslambe-botas que e que também estão desligados da realidade – os oligarcas que tinham mais noção da realidade, ele já os expulsou. Isto pode levar a uma escalada da guerra terrível. Entretanto, parece que a Europa finalmente está a ganhar noção da dependência energética em que vive. A Europa, sobretudo a Alemanha, colocou-se numa dependência quase absurda da Rússia e, ao mesmo tempo, a França faz este jogo geoestratégico de impedir que a Península Ibérica se ligue com o resto da Europa, podendo suprir qualquer eventual problema.

Retornando à sua pergunta, o efeito positivo desta crise vai ser a consolidação desta política de novas renováveis, principalmente eólica e solar-fotovoltaica. Principalmente estas, até porque a hidroelétrica tem muitos problemas: sendo uma velha renovável, tem o potencial já razoavelmente bem aproveitado e tem impactos ambientais. Portanto, acho que vão cair e já estão a cair muitas reticências em países europeus relativamente a uma política comum de novas renováveis e relativamente ao armazenamento de energia. Ao mesmo tempo vai fazer voltar à arena política o nuclear, sem dúvida nenhuma.

Portugal, em certa medida, tem uma posição privilegiada em relação aos seus vizinhos europeus para a produção das novas renováveis – é um dos países mais ventosos e solarengos do continente. Acha que o caminho português para a diminuição das emissões e produção de energia verde passa pelo aumento da dimensão das centrais eólicas e fotovoltaicas ou a única opção será com a criação de centrais nucleares?

Portugal tem um grande potencial para energia verde, portanto, não faz sentido, a meu ver, haver uma central nuclear, por diversas razões. Primeiro, por uma questão de rentabilização do sistema – não podemos olhar só para uma central, temos que ver o conjunto. O investimento que isso seria! A maioria dos inputs para esse investimento teriam que ser importados, e é complicado, porque a balança de pagamentos desequilibra. Portanto, eu não vejo razões lógicas, do ponto de vista económico, para que se insista na questão nuclear. Atenção: eu estou a analisar em termos científicos puros, como economista – não é por eu não ser apologista do nuclear que vos digo isto. Em vez disso, devemos apostar em otimizar os aproveitamentos hidroelétricos, insistir nas energias renováveis e insistir muito na armazenagem e na eficiência energética, isso sim. A partir daí, não vejo necessidade de centrais nucleares, até porque nós não temos problemas no abastecimento de gás natural. Claro que me podem perguntar: “então, se não temos problemas nem dependemos do gás russo, como explica a subida do preço do gás natural?”. É porque, normalmente, os nossos contratos são contratos a longo prazo de take-or-pay. Isto são contratos em que se convenciona, anualmente, durante 10, 15 ou 20 anos, que Portugal se vai abastecer de uma certa quantidade de metros cúbicos de gás natural por ano. Mesmo que não gastemos tudo, temos que pagar a quantidade estipulada. Ora, o que acontece é que, muitas vezes, não precisamos de tudo. Mas, como temos que pagar e temos, se tivermos capacidade de armazenagem (que também não é fácil – o armazenamento de gás natural não é nada fácil, e nós, ainda assim, temos boas condições), nós importamos e depois comercializamos no mercado spot. Pagar, temos que pagar; então, ou recebemo-lo, ou então damos ordem ao barco que o traz (liquefeito) para seguir para Roterdão ou para outro sítio qualquer onde o comercializamos. A maioria do comércio spot é feito assim: o gás natural liquefeito vem nos barcos, em petroleiros e nos cargueiros de gás, e dá-se ordens financeiras no mercado spot para irem para determinado porto; nem sequer chega a terra. Agora, porque é que o gás está a subir tanto (e, consequentemente, a eletricidade, porque temos produção de eletricidade em centrais de backup a gás natural). Uma parte, porque um pouco do gás que estávamos a consumir era russo e, depois, porque esses contratos são feitos com indexação. Não faz sentido estar a contratar por 10 ou 15 anos a um determinado preço; portanto, convenciona-se um preço indexado, por exemplo, ao preço do petróleo no mercado spot de Londres em determinado dia, a dada percentagem. Se o petróleo sobe (ou outro indexante, que pode ser até o gás natural russo, por exemplo), este preço sobe – a indexação faz subir o preço. Ou seja, esta subida a que estamos a assistir em Portugal deve-se à indexação.

Por fim, deixem-me dizer que há também boas perspetivas para a produção de hidrogénio, quer verde (a partir das renováveis) quer azul (a partir do gás). Contudo, em termos económicos, é preciso uma reflexão séria “sem modas”. O fato do hidrogénio ser uma fonte de energia incontestável, um país com uma economia tão vulnerável e tão aberto ao exterior como o nosso, não deve estar tão preocupado em estar “no pelotão da frente” quando a tecnologia ainda não está madura e é, portanto, uma opção cara. É imprescindível uma estratégia realista.

Portugal tem um grande potencial para energia verde

A energia de fusão nuclear é não poluente, não produtora de lixo nuclear e é praticamente ilimitada. É uma promessa que já tem muitas décadas, no entanto, este ano, foram reportados grandes avanços, com centrais a baterem recordes no total de energia produzida. Acha que é uma utopia?

Não é uma utopia, por uma razão muito simples: não há ocasião melhor para avançar com inovação do que situações de crise e de guerra; a História sempre o demonstrou. Além disso, já há muita investigação na área. Portanto, esta guerra, se se prolongar, também provocará isso. Não será para já, mas creio que também não levará muito tempo. E, para certas economias, a fusão nuclear é algo que se poderá justificar. Poderá não ser o caso da nossa, porque temos muitos recursos naturais, pouca população, uma costa marítima fabulosa e, portanto, não creio que seja esse o caminho – não há necessidade. No entanto, há economias que precisam, sobretudo porque uma central nuclear exige um grande investimento, mas, mais tarde, apresenta um custo marginal muito baixo. Ora, o preço nos mercados liberalizados faz-se, neste momento, ainda pelo custo marginal: o preço é marcado pela central que tem o custo marginal mais baixo. Se uma economia tem muitas energias renováveis, são elas a marcar o preço. Ora, há aqui um problema sério: este sistema de custo marginal não entra em linha de conta com o custo do investimento, apenas conta o custo marginal. E o dinheiro para compensar o investimento, onde está? Quando havia feed-in tariffs, isto não era um problema, porque estas garantiam o pagamento, durante 10 ou 15 anos, ao preço de mercado. Seria o mesmo que, na análise de investimentos, o cash flow estar garantido – o risco quase desaparece, pelo que podemos planear muito bem o investimento. Noutras ocasiões, no princípio do incentivo às energias renováveis, havia também o pagamento ao investimento – onde o investimento era praticamente a fundo perdido. Ora, tanto num caso como no outro, temos um caso típico de Economia Industrial e de Economia da Inovação. E este problema é o seguinte: sempre que um mercado é novo, tem incertezas; para fazer um investidor entrar nesse mercado, tenho que lhe retirar parte do risco, e a forma de lhe tirar parte do risco é fazer precisamente isto – garantir-lhe os cash flows ou então garantir parte do investimento. A Economia da Energia também nos dá muitos casos desses, e vai continuar a dar. Isto tem vindo a ser muito discutido, principalmente pelos académicos e investigadores, mas hoje está-se a colocar de forma muito mais forte, mesmo ao nível da Comissão Europeia, porque há muitas empresas de grande dimensão que estão a apostar maioritariamente nas energias renováveis e a ver o caso malparado. A certa altura, deixou de haver feed-in tariffs – já não há apoio ao investimento. Então como ficamos, qual é o payback do nosso investimento? Voltando ao início da questão e à energia de fusão nuclear, esta ainda está a nível de laboratório, mas não é uma utopia e eu estou convencida que agora vai acelerar.

Numa das suas publicações mais recentes, concluiu que a procura por gasóleo em Portugal é muito inelástica e que, logo, as subidas nos impostos sobre o gasóleo têm um efeito quase nulo sobre as nossas emissões de carbono, tendo, no entanto, efeitos muito negativos na nossa cadeia de produção. Na sua opinião, como será possível reduzir as emissões de carbono portuguesas no curto prazo?

Uma das opções é aumentar a eficiência energética de edifícios, de automóveis e das próprias centrais. Outra é bonificar a compra de veículos elétricos (agora, parte da bonificação até desapareceu). Por outro lado, obrigar o transporte pesado a revisões muito mais assertivas e duras. Infelizmente, grande parte do transporte de mercadorias efetuado em Portugal é feito por camiões TIR, e também temos uma frota automóvel um bocadinho antiquada. Eu acho que é possível impor regras de emissões a esses transportes pesados, mas julgo que o principal mesmo deverá ser a melhoria da eficiência energética em tudo, a começar pelos edifícios do Estado. Por exemplo, instalando bombas de calor. As bombas de calor são uma tecnologia muito interessante e que permite ganhos de eficiência enormes. Pensem num frigorífico; o que é que um frigorifico faz? Tira o calor do interior – deita-o fora – para ficar frio lá dentro. Ora, este calor que sai é energia que fica perdida. Se nós tivermos, fora, um recuperador de energia, ela pode ser novamente injetada para o aquecimento, por exemplo, ou para outras aplicações. Assim, eu acho que se devia obrigar a que todos os novos edifícios possuam recuperadores de calor e, já agora, painéis fotovoltaicos. Já há alguma legislação neste sentido, mas não tão dura: obriga à instalação de painéis solares, mas não especifica que sejam fotovoltaicos – podem ser painéis solares passivos –, e não fala dos recuperadores de calor. Portanto, obrigar com a legislação, e também haver uma fiscalização fortíssima. Aumentar o imposto sobre o gasóleo, como falou na pergunta, tem um efeito tremendo, porque afeta o transporte de mercadorias. Se eu aumento o imposto, o preço final do gasóleo ainda vai aumentar mais. É certo que o gasóleo polui muito, mas vai aumentar o preço das mercadorias, vai aumentar a inflação. Portanto, eu diria que há aí um jogo, em termos políticos, de muito difícil gestão, em termos dos transportes. Há uma fiscalização muito grande, mas não é levada muito a sério e há muita corrupção a esse nível. Devemos manter, de certa forma, o preço do gasóleo alto, embora não aumentando mais, senão afeta a economia toda num efeito dominó. E incentivar também o transporte elétrico – a eletrificação e a expansão da rede ferroviária são importantíssimas. Isto porque nós produzimos eletricidade a gás natural e a renováveis; se nós produzíssemos a carvão, em termos ambientais, a situação ficava na mesma – não era a eletrificação que ia melhorar. Mas nós estamos bem encaminhados, estamos no bom sentido.