Opinião de Ricardo Carvalho
Também incluído no FEPIANO 47, publicado em Maio de 2022
No metro, vidas paralelas cruzam-se.
A estação está à pinha. Os pinheiros movem-se à minha frente e ofuscam a luz. No meio daquele movimento todo, encostado à parede, espero pela minha vez.
Inclino o corpo para espreitar a chegada do meu metro. A impaciência resolve-se com uma troca de olhares. Muitas vezes, pela pressa de fazer a hora, apenas olhamos para o chão.
Um estrépito único ecoa nos carris da minha falange, absorvendo-me das ordens, essas agora tão leves como a água. Entro numa viagem que não é a minha. Para isso, solto a mochila, os meus pertences e embarco sem rumo. Faço os malabarismos habituais na hora de ponta, pedindo licença e licença. Assento os meus gémeos no piso e fixo-me como um parafuso, mas um solavanco tenta desequilibrar-me. Uma pessoa vai ganhando uma estabilidade nata, para nenhum apoio ser preciso, gabo-me de ir em pé, de braços cruzados ou a ler.
Neste meu metro quadrado de espaço disponível, sinto-me uma sardinha de lata, mas não estou preso como uma. Tenho orgulho de ter a “lata” de me soltar.
Ouço as muitas conversas que por aqui se passam. Fala-se da guerra, da pandemia, enquanto outros seguem agarrados nos bancos. Ainda outros conversam ao telemóvel, segredos em voz alta. Incomodam quem prefere o silêncio ou quem prefere mais que uma resposta. Ainda há outros que se abraçam, e vão assim, sem nada verem, de olhos fechados, sem medo. Nesses abraços, podemos deixar-nos ficar a olhar para lado nenhum, uma testa talvez.
O meu medo de sentar-me é o medo de deixar mais um lugar ocupado, uma responsabilidade extrema. Quando estou sentado, rodopio a atenção para os que vão em pé, tentando mirar uma senhora idosa, uma grávida, alguém que se vá sentar. Por isso, muitas viagens não me sento e vou de pé, deixando os restos para os outros.
Como podem perceber, são as pessoas. As viagens tornam-se boas por isso. Podem falar sobre as paisagens que caracterizam o metropolitano da cidade, mais uma vez digo, são as pessoas. Mesmo nos túneis, mesmo quando passamos a ponte e vemos o rio à nossa frente, até porque os vidros tapam a brisa, a experiência. Contudo, há algo de acolhedor ao ver todos a virarem-se para a Ribeira, mesmo quando estão de costas, aquela paisagem torna-se maior do que é. Ninguém tira fotografias, só apreciam.
A viagem é transcendente a si mesma. Não estamos a ir de A para B, estamos em C. Na minha opinião, não há nada mais inspirador que experiências, que escolhas. Somos todos tão diferentes e partilhamos um mundo, por vezes, tão igual. Não sei de outro sítio onde tenha uma desculpa para observar tão afincadamente toda a gente, tentando imaginar as suas vidas e o que as levou ali. Não digam que julgo, não acho este um julgamento mau, tento só ver mais camadas da cebola.
A vida é algo tão frágil e ao mesmo tempo tão saboroso, dá vontade de devorar cada pedaço dela, sou um bucólico quando tento viver. Desde pequeno que não durmo em viagens. Vou sempre de olhos arregalados, a sentir a presença das coisas e do cenário à minha volta.
Um dia, a minha mãe não podia levar o carro para irmos a uma consulta, por isso, fomos de metro. Há quase dez anos, dez anos. Por curiosidade, passei pela paragem onde tinha saído e as escadas pareciam-me muito mais pequenas. Na altura, o que me ficou no pensamento foi o bilhete da viagem (questionava-me como é que aquela máquina funcionava), era só encostar e já estava.
Hoje em dia, é algo que faz parte do meu quotidiano, como lavar os dentes ou como comer e beber. É uma obrigação e também é uma necessidade. Preciso disto para pensar, para escrever. A escrita só serve como um cimento para a minha presença sem corpo.
De volta ao abrigo, digo “Olá” e “Adeus” aos que entram e aos que saem. Vejo a criança que se imagina numa nave espacial, para mim é uma (faço hipérboles a elogiar, é incontrolável). Entro numa conversa e já não me sinto invisível. A senhora pergunta-me qual o livro que lia e pelo efeito surpresa, respondo-lhe que um dia gostava que fosse o meu. Recomenda-me um alfarrabista e solta: “Para ser escritor só tem de escrever, escrever, escrever e sempre que o fizer, põe o seu coraçãozinho”.
Numa certa ocasião, fui com um senhor idoso a falar de amor e ele de forma muito curiosa, revelou o seu interesse numa mulher, também idosa. A vontade de beijar não acaba com a rapariga de olhos azuis à minha frente, continua no arrastar da bengala. Surge-me também no pensamento a memória de quando acompanhei uma mulher que era claustrofóbica, ajudei-a a “enlatar-se” sem medo. Não acabam aqui estes momentos, o tempo não é vasto e se calhar, o melhor sítio para guardar as pessoas é no coraçãozinho.
Posso dizer que a memória da nostalgia é maior que a nostalgia em si. Vou correndo, simultaneamente, entre o que vejo e o que vi. Não sei se é só a mim, mas os cheiros e, por vezes, os tempos, despertam todos os dias uma memória qualquer.
Normalmente, quando não tenho fones ou um livro, a viagem torna-se acintosa. Esqueço-me do que vos conto aqui. Fico a segurar um ecrã, a deslizá-lo. Deslizo também da beleza deste quadro que tento pintar e enaltecer, considero esses dias, os dias em que estou a misturar as cores das tintas.
A viagem já está perto do fim. Atravessamos a fronteira da cidade, quase todos me abandonam, restando ainda uns poucos que dormem com a cabeça encostada à janela. Posso então ocupar um dos assentos sem que me pese na consciência. Agora os campos verdejantes fazem com que sinta ainda mais aquele cavalgar mecânico. Como posso correr sem andar? Como posso eu parar, se o corpo quer correr?
A próxima estação é a seguinte. Todos abandonam o metro num espreguiçar. Já eu não abandono, não consigo. O metro fecha as portas e continua, continua sem carris, sem o enferrujar agudo. Só se ouve silêncio e aí, volto à estação onde comecei esta viagem. Guardo o lápis e pouso-o no banco da estação. A folha também fica para alguém que ali passar. Anunciam a chegada. É o meu metro, vou para casa e por falta de tinta, estou com pressa para lá chegar.
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