Opinião de Maciel Sacramento
Também incluído no FEPIANO 53, publicado em Dezembro de 2024
O desporto é elevado à excelência por unir, de forma única, as pessoas pelos quatro cantos do mundo, no entanto consegue tornar-se, muitas vezes, desprezível por tudo que o rodeia, como a desigualdade de oportunidades, o nepotismo e a corrupção.
O desporto na sua definição geral e objetiva é a prática regular de uma atividade que requer exercício corporal e que obedece a determinadas regras. Numa definição mais emocional e subjetiva, o desporto é a incorporação da felicidade, do companheirismo, da paixão, mas também da superação, do rigor e da perfeição no detalhe milimétrico.
Desde que me conheço, sou um entusiasta do desporto e lembro-me de ver grandes referências em muitas modalidades e tentar ser inspirado por eles. Tentava correr 100m como o Bolt fazia em 9,58s, nadar mais rápido que o Phelps, saltar mais que o Lebron James, tentar fintar todos os jogadores da equipa adversária como o C.Ronaldo ou fazer uma “trivela” mais bonita que a do Quaresma. A verdade é que falhava miseravelmente em todas as ocasiões. Mas no dia a seguir lá estava eu a tentar novamente. Afinal, era um miúdo pequeno, sobretudo feliz, que acreditava que qualquer um podia ser como eles, desde que não faltasse esforço e dedicação. Não podia estar mais iludido, mas não me condeno – afinal, não é uma criança que tem experiência e conhecimento aprofundado sobre o desporto e tudo o que está à volta dele.
Foi só com o passar dos anos que comecei a perceber que o desporto não é para quem quer, mas para quem pode, por diferentes motivos. Em primeiro lugar, a razão mais óbvia – a genética e o dom – são características inatas, que não dependem das nossas ações. Nem sempre o esforço vence ao talento ou à genética e é possível prová-lo pelas características físicas. É impossível uma pessoa com menos de 1,60m querer chegar à NBA ou alguém com uma estrutura óssea e muscular pouco flexível tentar almejar o ouro na ginástica.
“É impossível uma pessoa com menos de 1,60m querer chegar à NBA”
Logicamente que as características físicas não são as únicas competências num atleta, mas é claro que é uma das principais (se não é a principal) para alguém conseguir entrar no mundo do desporto. Mas também é verdade, que nem sempre o mais alto é o que salta mais ou o que é mais esforçado é o melhor atleta, porque muitas vezes um atleta relaxado e preguiçoso tem mais rendimento que os outros todos porque nasceu com o dom.
Em segundo lugar e tentando seguir com uma sequência cronológica, é a questão da igualdade de oportunidades. Uma criança que nasce numa família de baixos rendimentos não tem a mesma oportunidade de uma criança que cresceu numa família de classe média/alta, mesmo que seja alguém com mais vontade e dom. A probabilidade, por exemplo, de o Usain Bolt não ter sido o homem mais rápido na face da Terra é considerável, uma vez que muito provavelmente já existiu (ou existe) alguém que conseguiria bater o seu recorde (embora extremamente difícil), mas nunca teve a oportunidade de ser reconhecido numa fase inicial e nos anos seguintes ter tido acompanhamento próximo.
E é, nesta fase, que tem de entrar o Estado Social, não numa tentativa de desfavorecer uns para favorecer outros, mas para dar, no mínimo, uma oportunidade decente a cada pessoa desde os seus primeiros anos de vida. Por este motivo é importante, numa fase inicial, aumentar a participação no desporto escolar, reduzir a carga horária letiva e descentralizar as infraestruturas desportivas.
Além disso, é fulcral aumentar a oferta de modalidades em cada concelho, que no caso português, é exageradamente predominado pelo futebol, assim como a valorização dos estudantes de alta competição. Não é ao acaso que nos Jogos Olímpicos nunca fiquemos surpreendidos pelas poucas medalhas, enquanto que outros países, com igual ou menor população que a de Portugal, tenham conseguido arrecadar muitas mais. Portugal desde 2000 conquistou um total de 17 medalhas, isso significa que tem 1,6 medalhas por milhão de habitantes, o que coloca o país nos últimos lugares da lista, muito longe da Eslovénia (12,7) ou até da Hungria (11,9) que são países com menos população.
Em terceiro lugar, o custo da alta competição. Um atleta de alta competição é alguém que compromete o seu tempo livre na expectativa de num futuro, longínquo e obscuro, ser bem sucedido. É alguém que tem de lidar com eventuais lesões, com comparações diárias e com críticas sociais, muitas delas infundadas.
Um atleta de alta competição que queira atingir o topo e manter-se relevante tem de ser um atleta estável em vários domínios. Desde a saúde física e mental, às posses financeiras, bem como no apoio estrutural de agentes, treinadores e nutricionistas ou até no apoio emocional de família e amigos. Conseguir conciliar isto tudo, neste caso, até é para quem quer e faz acontecer, mas também é, no começo, só para quem pode.
Em último lugar, o nepotismo, a corrupção e a centralização. Para quem já praticou alguma modalidade e esteve inserido numa equipa sabe que, muitas vezes, há influências diretas ou indiretas injustas nas decisões tomadas. O clube X ou Y, com posses financeiras é apanhado em escândalos de corrupção e consegue, por manobras jurídicas, continuar a competir. O familiar do diretor/treinador, muitas vezes sem mérito, joga todos os minutos e provas. Todas estas ações só comprovam como o desporto não é para quem quer, mas para quem pode, já para não discutir a gigantesca desigualdade e queda de competitividade na centralização dos melhores jogadores em dois ou três clubes, em cada modalidade.
“A gigantesca desigualdade e queda de competitividade na centralização dos melhores jogadores“
Por fim, vejo-me obrigado a deixar um repúdio total à forma como o sistema à volta do desporto se tem desenvolvido que, numa perspetiva de egoísmo e ganância, olham para o desporto como um mero negócio. E exemplos que comprovam o que foi dito não faltam. Assistimos a exploração laboral, mortes e a lavagem de regimes autoritários como foi o caso do Mundial do Qatar de seleções de futebol em 2022, assistimos a monopólios de grandes ligas, a poderio financeiro desmedido de certos clubes, a manipulação de resultados e fraudes médicas. Assim como assistimos nos Jogos Olímpicos de 2016 no Rio e 2020 em Tóquio, a escândalos de corrupção, desvios de fundos, infraestruturas abandonadas e subornos. Como também assistimos regularmente, em locais e divisões menos elevadas, a tráfico humano, geralmente de atletas de países menos favorecidos, vindos numa ilusão de “vir para viver o sonho”.
Em suma, o desporto é uma poderosa ferramenta de união, saúde e desenvolvimento pessoal, mas que por inúmeros fatores, como as desigualdades de oportunidades, o nepotismo e a corrupção fazem com que tire o brilho a qualquer criança que um dia se inspirava nas grandes lendas e lhe dê mais razões para afirmar que: o desporto não é para quem quer, mas para quem pode.

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