Inês Santos
Também incluído no FEPIANO Especial 25 de abril, publicado em Abril de 2024
Refletindo na função social da arte, teremos em mente o escritor Mário Dionísio que disse “sem a cultura não pode haver liberdade, mas só um perigoso simulacro”. Desta forma, dá que pensar o papel da arte no dia que veio mudar o regime político do nosso país.
O dia 25 de abril de 1974 marca a data que revolucionou um país, indivíduos, mentalidades e, consequentemente, veio dar um novo significado àquela que era a conhecida arte nacional. São sabidas as consequências positivas que a Revolução teve na cultura e no mundo da arte portuguesa, no entanto, é de refletir o papel que estas tiveram como impulsionadoras da mudança.
A instabilidade política, a prisão que o povo sentia e a constante guerra colonial foram os principais catalisadores para que o Movimento das Forças Armadas (MFA) completasse o objetivo de uma nação: acabar com a Ditadura em Portugal e, consequentemente, restituir a liberdade. O MFA contou com muito planeamento e até algumas tentativas que não foram bem sucedidas, sendo de notar a tentativa falhada de golpe militar de 16 de março de 1974 – esta apenas deu mais força a António de Spínola, ajudandoo a perceber o que realmente tinha de ser feito para que fosse vitorioso.
Spínola tomou a decisão de utilizar a rádio, o maior meio de propagação de informação, para começar o movimento. Diz-nos a história que foi ao som da música “E depois do Adeus” do brilhante Paulo de Carvalho, às 22h45 de 24 de abril, que se deu início à Revolução, propriamente dita. Foi também ao ser transmitida, na ilustre Rádio Renascença, às 00h25 de 25 de abril, a música de Zeca Afonso, “Grândola, Vila Morena” que os, à época, rebeldes souberam que era tempo de tomar os pontos estratégicos. Nas horas seguintes, viu-se a Ditadura a ruir, instituindo-se a democracia que conhecemos até hoje. Ora, vemos então que a arte é um ingrediente fundamental na fórmula para angariar a coragem necessária que leva à mudança.
O tema de Afonso passou impune à censura do Estado Novo, uma vez que, acima de tudo, não se tratava de um hino a invocar a guerra, não proclamava o terror nem a destruição da Ditadura e de todos aqueles que a ela eram fiéis. Gritava, porém, por um futuro justo para a classe operária, em específico para aquela da pequena região de Setúbal, que serviu de inspiração para a sonância que deu início à Revolução. Onde o “Lápis Azul” nada viu, os portugueses encontraram refúgio, encontraram esperança.
“A “Grândola” era um grande fator estimulante de congregação das pessoas, congregação emocional.”
Em entrevista, pós-25 de abril, o próprio artista confessa ter ficado surpreso pela escolha do MFA da sua música: “Isto foi um facto acidental, mas que a mim enche-me de contentamento; a utilização que foi feita pelas pessoas”. Remata, ainda, afirmando que a canção nada mais servia do que para impulsionar a irmandade do povo português, para que este quisesse mais da sua vida do que aquela que era vivida até então: “A “Grândola” era um grande fator estimulante de congregação das pessoas, congregação emocional”.
A música de Zeca Afonso não é apenas um icónico símbolo cultural, mas também um símbolo político a nível internacional. Em 2012, nos protestos contra o plano de austeridade desenvolvido pelo Governo de Pedro Passos Coelho, os manifestantes entoaram “Grândola, Vila Morena” como hino da justiça, da revolta e da insatisfação. Também em 2018, quando o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa fez um discurso diante dos deputados do Partido Democrata Europeu Catalão e da Esquerda Republicana da Catalunha, a música de Afonso fez-se ouvir, como forma de despedida ao presidente português, soando como um grito da necessidade de mudança.
Por outro lado, não necessitamos de olhar exclusivamente para o espectro político para vermos o poder da música na mudança: a cultura moderna é uma constante lembrança de que aquilo que melhor nos define é a nossa voz e o que queremos dizer com ela. Por exemplo, na conhecida série da Netflix, “La Casa de Papel”, o tema surge de mãos dadas com “Bella Ciao”, composta como canto de trabalho das Mondine. As duas músicas são símbolos-chave na série, mostrando a milhares de pessoas o seu impacto, o protesto contra o fascismo e contra a antiliberdade, fazendo-nos, a nós espectadores, simpatizar e adotar ambos os hinos com carinho. Mais do que isso, são uma lembrança dos esforços que foram feitos para que possamos viver na Democracia em que vivemos atualmente.
Assim sendo, dá que pensar: mas, afinal, qual o papel do 25 de abril na indústria artística musical? Para além do evidente, ou seja, a censura deixar de fazer parte do processo de criação da arte, temos de ter em mente o conceito de música de intervenção. Esta estava escondida nos anos de Ditadura e teve a oportunidade de explodir com toda a força no pós-Revolução, com artistas como Sérgio Godinho, Carlos do Carmo, ou o próprio Zeca Afonso. Temos, desta forma, essa herança, a ligação entre a emoção e a mensagem, a afirmação e sentido de união. Quando olhamos para a música de intervenção que se faz, hoje em dia, em Portugal, ela é, claro, fruto dessa história, dessa luta que houve, mas também reflexo de causas sociais que se dispersam um pouco por todo o lado (sendo os artistas influenciados pelo processo constante da globalização artística, política e social). Dino D’Santiago é, talvez, um dos melhores atuais exemplos da forma como a música e, mais concretamente, a composição desta, serve para chamar atenção a questões importantes, temas que merecem ser escutados e discutidos.
Com versos fortes e direcionados “Dizem preto vai para a tua terra/ Sai daqui que não és ninguém” (Flan Pamodi do álbum Kriola, 2020), o artista, que desde novo sente a raiva e ódio direcionado às pessoas negras, tenta sensibilizar e, de alguma forma chocar, os ouvintes para que as injustiças vividas por ele não sejam passadas para as próximas gerações. No atual panorama em que Portugal se encontra, precisamente após as passadas eleições legislativas, temos de estar cada vez mais alerta acerca destes perigosos temas e respetiva proliferação.
Desta maneira, celebrar este espírito de mudança é uma das formas mais nobres de respeitar o 25 de abril e a luta de todos aqueles que vieram antes de nós. É com isto presente que, em 2024, a Casa da Música, uma das mais emblemáticas salas de espetáculos a nível nacional, como forma de celebração dos 50 anos da Revolução dos Cravos, adotou “Portugal” como inspiração das sinfonias interpretadas. O diretor artístico, António Jorge Pacheco, assinala que esta data é relembro do acontecimento mais importante na história portuguesa, pelo menos do século XX. Por essa exata razão, o mês de abril é dedicado apenas ao festival “Música e Revolução”, este que, pelas palavras de António Pacheco, vai “muito além de interpretar e focar nos compositores da Resistência que viveram os períodos difíceis da Ditadura”, foca-se, sim, em “perceber, passados 50 anos do 25 de abril quais foram as portas que se abriram para uma nova geração e celebrar desta forma positiva aquilo que trouxe”.
Em boa verdade, a música como veículo de expressão, como símbolo de um movimento ou como estímulo de uma mudança foi, é e sempre será uma forma de luta.
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