Opinião de Miguel Coelho
Também incluído no FEPIANO 48, publicado em Fevereiro de 2023
Quem é que ainda anda com dinheiro no bolso? A forma do dinheiro muito mudou – e talvez tal aconteça mais uma vez num futuro próximo.
Nos dias que correm, é visível a crescente preferência por métodos de pagamento digitais, especialmente entre as camadas mais jovens. Exacerbada pelo receio da transmissão do vírus durante a recente pandemia, esta tendência levou muitos ao ponto de serem 100% cashless (e ainda maior seria este grupo se a máquina do café aceitasse contactless).
A conveniência é clara: mais fácil de transportar e transações mais rápidas. Dividir a conta do almoço com os amigos fica também consideravelmente mais simples (uma angustiante realidade para o caloteiro do grupo). Além de satisfazer as preferências dos consumidores no método de pagamento; a redução dos gastos e da dificuldade de obter, gerir e proteger dinheiro físico pode ser uma vantagem atrativa.
Mas na ótica do comum consumidor, a maior comodidade e proteção contra roubo traz consigo outras complicações, nomeadamente a maior dependência das instituições financeiras associadas, perigos de cibersegurança e falta de privacidade nas suas transações.
Esta propensão ao digital pressionou até os negócios de baixo montante por transação, onde o dinheiro costuma dominar, a oferecer a opção de pagamento digital. Porém, os custos de transação incorridos no uso de cartões de débito ou crédito podem canibalizar as margens de lucro, levando a casos em que é preferível recusar a venda a certos cartões. Ademais, a fuga aos impostos torna-se substancialmente mais complicada.
No entanto, o sucesso dos métodos de pagamento digitais clássicos, como os cartões de débito, certamente não será eterno. É bastante possível (e até provável, diria eu) que sejam destronados num futuro relativamente próximo por um sistema de pagamentos diferente.
Quais são então os métodos inovadores em desenvolvimento na atualidade?
Seria impossível não mencionar as criptomoedas (ou, talvez mais correto, os criptoativos) como uma potencial alternativa. O explosivo crescimento no interesse destes ativos nos últimos anos é notável, assim como o seu valor de mercado. Os exemplos mais famosos são a Bitcoin, a Ethereum e a Tether, mas é abundante a quantidade de opções.
O fundamento desta tecnologia é claro: total descentralização do sistema de pagamentos, ou seja, a ausência de intermediários, como os bancos comerciais e os bancos centrais.
Apoiantes das criptomoedas defendem que esta descentralização permitirá um sistema mais eficiente, com menores custos (já que o middleman é eliminado) e maior privacidade. Acreditam também numa eventual maior estabilidade destas moedas digitais, já que não poderiam sofrer de inflação da mesma maneira que a atual moeda fiduciária pode sob o jugo dos bancos centrais.
A verdade é que, pelo menos por agora, são raras as ocasiões em que de facto se podem usar estes ativos como forma de pagamento. A preocupante volatilidade do seu valor é um óbvio motivo de reticência perante a perspetiva do seu uso como moeda. Assim, as criptomoedas não conseguem atualmente cumprir o seu objeito, sendo o seu valor de mercado derivado da expetativa de que este, num futuro próximo, terá condições para se realizar.
Outra opção, a meu ver com maior capacidade de dominar o mercado de opções de pagamento, são as CBDC’s (Central Bank Digital Currency). Trata-se de moedas digitais criadas pelos bancos centrais, nos quais os cidadãos podem abrir uma conta.
Há apenas 2 anos, apenas 35 nações consideravam as CBDC’s. Porém, o interesse atual nesta tecnologia foi exponencial: 105 países, representando um total de 95% do PIB mundial, estão a explorar esta opção, sendo que 50 já estão numa fase avançada de desenvolvimento.
Este facto pode marcar o início de uma autêntica revolução na forma como as pessoas, empresas e países se relacionam e utilizam a moeda. Apesar de ainda não existir uma decisão concreta, um Euro Digital é uma possibilidade cuja avaliação dos possíveis impactes do projeto se encontra sob análise do BCE. O mesmo se aplica à grande potência do outro lado do charco, tendo os Estados Unidos anunciado interesse mas não certeza quanto à emissão duma CBDC.
O primeiro caso de sucesso é o Sand Dollar, implementado nas Bahamas, um arquipélago composto por 700 ilhas espalhadas por uma vasta área, numa tentativa de facilitar o acesso ao sistema financeiro à população mais isolada. A inclusividade é, de facto, uma das motivações frequentemente citadas para o desenvolvimento das CBDC’s.
Outro caso crucial a referir verificou-se na China. Desde a sua famosa utilização durante os Jogos Olímpicos em fevereiro, a utilização desta tecnologia cresceu de forma exponencial. Motivados pela comodidade, segurança e pelos incentivos financeiros oferecidos pelo governo, cerca de 750 milhões cidadãos já usam o Yuan Digital diariamente. É, portanto, o caso de maior magnitude no que toca a esta forma de moeda.
Mas, num panorama geral, quais são as possíveis vantagens das CBDC’s?
Apoiantes desta opção indicam geralmente os seguintes benefícios: redução dos custos de transação; maior inclusividade no sistema financeiro, auxiliando sobretudo zonas mais isoladas (há, inclusive, projetos de CBDC’s que funcionarão offline); maior eficácia da política monetária, já que pode ser implementada de forma direta, sem depender dos mecanismos de transmissão tradicionais desta (por exemplo, na China já foram utilizadas transferências diretas de Yuan Digital para estimular a economia pós-pandemia); e um combate à criminalidade mais eficaz, pois há um controlo sobre a informação muito maior face ao uso de numerário ou de criptomoedas.
Ora, como será evidente, existe um certo ceticismo (na minha opinião, justificado) quanto às CBDC’s e este manifesta-se tanto a um nível económico como filosófico.
A capacidade de oferta de crédito do setor financeiro privado seria provavelmente negativamente afetada, o que por norma tem, consequentemente, um efeito negativo na economia. É plausível que as CBDC’s facilitem corridas aos bancos, dado que haveria uma maior facilidade de transformar os depósitos bancários neste ativo do banco central de risco minimal, o que resultaria num sistema económico mais instável. Já numa ótica de ética, o poder adicional que o Estado (no seu sentido lato) obteria sobre cada cidadão é preocupante. O anonimato é prometido pelas CBDC’s, mas, de facto, será provavelmente horizontal (entre utilizadores) mas não vertical (entre o cidadão e o Banco Central) e, portanto, muitos temem pelos seus direitos e liberdades, principalmente na eventualidade de a sociedade se tornar totalmente cashless.
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