Carina de Nunes Seabra
Também incluído no FEPIANO 49, publicado em Agosto de 2023
À data da celebração do Dia Internacional Pela Eliminação Da Violência Contra As Mulheres contavam-se já 28 mulheres assassinadas em contexto de violência doméstica, apenas em Portugal. Apela-se à prevenção de um fenómeno que resiste na sociedade contemporânea.
Os termos consagrados pela ONU na Declaração Universal dos Direitos Humanos são inerentes a todos os seres humanos, independentemente do género, etnia, idade ou estatuto socioeconómico. Apesar disso, são continuamente trespassados, colocando em causa a dignidade da vida humana. É neste cenário que emerge a violência doméstica, um fenómeno que, apesar de histórico, se encontra ainda bastante patente na sociedade portuguesa. Ainda que transversal a todos os seus grupos, afeta, particularmente, as mulheres, principais vítimas, tal como indica a Convenção de Istambul, e, ainda, as crianças, idosos, população LGBTQIA+ e pessoas portadoras de deficiência (PCD).
A violência doméstica descreve o comportamento abusivo e opressor entre indivíduos com um vínculo familiar, conjugal ou outro relacional, podendo ou não partilhar a mesma residência. A ação dá-se de forma direta ou indireta e pode ocorrer no âmbito físico, social, emocional, financeiro e patrimonial ou sexual, mediante o cerne do poder de controlo: ameaça direta ou a familiares, detenção de conteúdo íntimo, apropriação de rendimentos, manipulação psicológica, entre outros. Em todas as variantes a vítima é aprisionada, prevalecendo a iniciativa do agressor sobre a vontade e liberdade individual da primeira. Existe ainda uma sub-vertente associada ao fenómeno: a perseguição (ou stalking). Através desta, o agressor limita o bem-estar da vítima, interferindo diretamente na sua rotina ainda que esta se encontre consciente da situação ou mesmo após a queixa ter sido submetida.
Estudos científicos demonstram que o fenómeno tem carácter cíclico e crescente. Após um primeiro ato de agressão, ainda que inesperado, a situação é rapidamente deturpada no sentido da culpabilização da vítima ou levando-a a crer que se tratou de um um ato isolado, dando lugar a uma fase de “lua de mel” durante a qual o agressor procura, através de gestos ternurentos e presentes, anular o feito. Após um período de acalmia, a tensão volta a escalar, culminando, novamente, numa agressão. Com a repetição dos ciclos, a agressão tende a agravar-se e o período de acalmia a diminuir. Em último caso, o ciclo tem como resultado a morte da vítima.
No status quo, a resistência do fenómeno levanta questões sobre os fatores que levam a que perdure, sobretudo numa sociedade globalizada onde os direitos humanos estão na ordem das pautas internacionais. Explica-se a sua origem por via de fatores de ordem psicossocial e, principalmente, pelo seu carácter geracional, já que, através da naturalização destes comportamentos no seio familiar, vítimas de violência doméstica tendem a desenvolver posteriormente comportamentos abusivos. Comprova-se ainda que crises de diferentes ordens resultam num escalar do fenómeno, principalmente considerando os grupos que são mais comummente afetados e os instrumentos de controlo utilizados.
Crises financeiras e políticas têm um impacto direto no mesmo, bem como crises sanitárias; como a recente pandemia covid-19, explicado-se a redução de denúncias durante esta e o seu rápido aumento no período que a sucedeu. Além disso, o caráter das agressões também se intensificou, já que o confinamento levou a que a vítima permanecesse isolada com o agressor.
“Não houve propriamente uma diferença ao nível do tipo de violência praticado, mas sim da sua intensidade, da sua severidade, e da sua frequência porque o contacto entre as pessoas era contínuo“
(Violência doméstica em tempos de covid 19, p.20)
A violência de género, histórica e patriarcal, é indissociável da violência doméstica. A concetualização dos papéis sociais da mulher ao longo das gerações, transversal a diferentes países, confina-a à subversão, inferioriza-a, traça o seu caminho como aquela que responde à necessidade do homem, objetificando-a. Uma consequência deste passado, ainda bastante presente em Portugal, é a mutilação genital feminina e a reduzida atenção que lhe é dedicada. Perpetua-se a ideia do corpo feminino dominado pelo homem e, portanto, justifica-se socialmente a imposição da sua vontade sobre a liberdade da mulher, considerando-se a agressão sanção plausível dentro do seio familiar. Esta conceção errónea tem sido desconstruída principalmente através da educação, ações de solidariedade e ativismo que procuram informar e consciencializar a sociedade, levar o agressor à justiça e motivar os diferentes governos e órgãos políticos a implementar políticas públicas preventivas. Como se encontra exposto no Artigo 152º do Código Penal, um recente avanço na luta em causa, a violência doméstica é, atualmente, crime público, pelo que a denúncia do mesmo poderá partir de outro indivíduo que não a vítima; ponto que realça a responsabilidade social da comunidade neste contexto.
Existem linhas que permitem a denúncia acessível sem registo rastreável pelo agressor, bem como redes que se destinam ao abrigo de pessoas vítimas de violência doméstica, garantindo-lhes, ainda, apoio psicológico.
Apesar do exposto, a análise estatística do INE aponta para uma relativa inércia dos números, nomeadamente no que compete ao indicador dos lesados e ofendidos identificados em crimes de violência doméstica contra o cônjuge ou análogo registado pela PSP e GNR, o que revela que há um longo caminho a ser traçado, não só no sentido da atenuação, mas também da abolição do fenómeno.
Em Portugal, esta tendência tem sido acompanhada pelo significativo aumento do número de estruturas de apoio e redes de contacto. A atual Secretária de Estado da Igualdade e Migrações, Isabel Rodrigues, ressalvou, num comunicado oficial da celebração do Dia Internacional Pela Eliminação Da Violência Contra As Mulheres, a pertinência do trabalho simbiótico entre os diferentes sistemas da sociedade no alcance deste objetivo, designando a prevenção como cerne da questão.
“Não basta intervir após o ato de violência contra as mulheres. É também necessário agir a montante da violência, em particular, abordando e desafiando normas sociais e desequilíbrios de poder. É importante que todos os sistemas sociais concorram para um discurso de responsabilização dos agressores e ponham fim à impunidade (…) este trabalho, enquanto existirem vítimas de violência doméstica, estará sempre inacabado”
No mesmo dia, a União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR), numa cerimónia simbólica pelo total das já referidas 28 mulheres assassinadas neste contexto, condena uma sociedade incapaz perante o paradigma da tolerância e onde a ação não é compreendida com a seriedade necessária. “Enquanto sociedade, continuamos a falhar porque não enviamos uma mensagem clara aos agressores de censura, continuamos a ser tolerantes com os agressores”. Foram, ainda, relatados casos de sobreviventes, tendo-se refletido sobre as cerca de 24000 queixas realizadas nesse âmbito e apelado à ação preventiva da comunidade.
Nota técnica: Análise quantitativa fundamentada através de dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) e qualitativa com base exploratória no âmbito de literatura científica e jornalística.
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