Já toda a gente fingiu estar cega. Tenha sido em criança, numa brincadeira, ou mais tarde, por curiosidade, já todos experimentamos fechar os olhos para ver se nos aguentaríamos na crueldade da falta de um sentido. Saramago levou esse jogo a sério com o seu Ensaio Sobre a Cegueira, em que apresenta ao leitor um mundo em que as pessoas cegam do nada, como se alguém, com um cérebro demasiado perigoso, tivesse polido uma lâmpada de génio.

O Ensaio Sobre a Cegueira apresenta, nas suas primeiras páginas, um taxista cujos olhos são imersos numa branquidão interminável, impedindo-o de ver. À medida que a história progride, ficam cegos a sua mulher, o médico, a rapariga dos óculos escuros, o ladrão, o rapazinho estrábico, o velho da venda preta, o resto da cidade, os jornalistas, o governo, os militares, e, por fim, o mundo inteiro. Enquanto os primeiros infortunados estão presos em quarentena, veem-se obrigados a criar uma pequena sociedade, e a lidar com rebeldes e malfeitores. Por outro lado, os restantes, que cegaram mais tarde, ficaram no mundo real, forçados a sobreviver, sem ajuda,  aos perigos de um mundo feito para aqueles que viam.

A expressão “em terra de cegos, quem tem um olho é rei” revela-se literal com a personagem da mulher do médico, que, por razões misteriosas, não cegou. Esta mulher torna-se, então, os olhos do leitor, e descobre-se condenada a ver os resultados diretos e indiretos da brancura, passando o seu tempo a desejar o destino dos restantes. Tendo assistido a atos terríveis e completamente desumanos, como roubos, mortes, e violações, a mulher do médico fica também cega, porque “cegueira também é isto, viver num mundo onde se tenha acabado a esperança” (Ensaio Sobre a Cegueira).

O medo foi o elemento que prevaleceu quando o mundo destas personagens desapareceu, e, impulsionado pela necessidade e pela insegurança, tornou-as pior  que os animais. A metáfora dos verdadeiros cegos é o que se mantém entre toda a confusão da situação – o medo é a brancura. Com este livro, Saramago pretendeu criticar aqueles que fecham os olhos com medo, os ditos “ratos” de Alexandre O’Neill. Pelas palavras da rapariga dos óculos escuros, “O medo cega, São palavras certas, já éramos cegos no momento em que cegámos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos.”

“O medo vai ter tudo/ quase tudo/ e cada um por seu caminho/ havemos de chegar/ quase todos/ a ratos.” –

Alexandre O’Neill em “Um Poema Pouco Original do Medo”

Apesar de completamente fictício, o Ensaio foi capaz de caracterizar o ser humano de uma forma perfeitamente realista. Os instintos animalescos, o egoísmo, o recurso à violência e ao mal, o abandono da civilização, e o esquecimento de qualquer ideia de direitos humanos que ocorrem sempre que o medo bate à porta são verdadeiros e comuns.

Ainda assim, entre todo o branco, há momentos em que o próprio escritor nos mostra que podemos encontrar cor e vida. Seja através da bondade da mulher do médico, ou da juventude do velho da venda preta, ficamos a saber que a humanidade não está perdida, e que pode melhorar.