Num período conturbado para o setor da cultura, e no âmbito da reativação do Cineclube da faculdade que a FINK tem planeada para este ano letivo, entrevistamos Joana Canas Marques, atual Presidente do Cineclube do Porto. Formada em Arquitetura, Joana Canas Marques é apreciadora de cinema desde jovem e é precisamente na faculdade, onde integrou um núcleo de cinema, que desenvolve uma paixão mais profunda pela sétima arte. Desde 2017, preside ao Clube Português de Cinematografia – Cineclube do Porto, uma referência cultural da cidade invicta e com uma vasta história – é o Cineclube mais antigo do país e um dos mais antigos da Europa, tendo comemorado, em 2020, três quartos de século de história.

Em 2020, o Cineclube do Porto cumpriu o marco histórico de três quartos de século de existência. Como presidente, o que caracteriza para si a história desta instituição da cidade?

O que caracteriza mais, e eu penso que é algo contínuo ao longo da sua história, é uma vontade de resistência e de continuar a fazer coisas em conjunto. O Cineclube do Porto começa em 1945 como um cineclube amador no liceu Alexandre Herculano, ao qual, nos anos seguintes, se juntam algumas personalidades e outras pessoas que se interessavam por cinema no Porto e que lhe dão uma nova cara. Ao longo do seu percurso, o Cineclube do Porto foi sempre encontrando alguns impedimentos e percalços (como é habitual, porque a história é mesmo assim), mas também foi sempre encontrando pessoas que quiseram, em conjunto, transmitir a paixão que sentiam pelo cinema no geral e pelo cinema português em particular. Quiseram-no transmitir a outros e viver com outros a experiência mágica de ver um filme numa sala de cinema. Isso tem sido contínuo até aos dias de hoje e transversal a todas as fases por que o Cineclube foi passando – o seu auge, nos anos 50, os tempos da PIDE e da perseguição das associações (nomeadamente dos cineclubes), os anos 60 e o aparecimento do Cinema Novo, os anos 70 e o aparecimento dos apoios da Gulbenkian, o 25 de abril e a confusão que se gerou nessa altura (que, embora positiva, não deixou de ser uma confusão), os anos 90 e o aparecimento dos shoppings, o reaparecimento forte do Cineclube por volta de 2010, … Ao longo da sua história, tem sido sempre esta vontade de fazer coisas e de as partilhar com os outros que melhor caracterizam a atividade do Cineclube.

Mencionou a posição do Cineclube como uma estrutura de resistência, nomeadamente durante o Estado Novo. Em que consistiu essa resistência?

Essa ideia de resistência é presente ainda hoje – ela é contínua. Durante o período do Estado Novo (e não sou eu que o digo, mas Alexandre Alves Costa, filho de Henrique Alves Costa, um cineclubista muito importante), qualquer associação cultural era, por si só, uma ação de resistência e de luta contra o regime, porque havia uma total anulação do pensamento crítico e do interesse cultural e intelectual. Nesse sentido, uma associação como o Cineclube do Porto, independentemente de algumas questões políticas que possa ter havido em alguns anos, tinha sempre que estar nesta situação. Relativamente aos efeitos da censura, eles foram muito abrangentes. Havia filmes que eram cortados – passavam sem algumas cenas, nomeadamente as cenas mais explícitas –, havia também sessões que eram canceladas, mas houve muito mais efeitos. Por exemplo, as sessões do Cineclube eram sempre apresentadas, e nós tínhamos (como ainda temos, hoje em dia) uma folha de sala, um programa do Cineclube com vários textos. Esses textos, nomeadamente o texto que era originalmente escrito sobre o filme, tinham de ser previamente aprovados pela censura. Outro exemplo foram os encontros do Cineclube de 1958, uns encontros muito marcados, que também foram atormentados pela Polícia Pública. Mais tarde, houve ainda uma tentativa de passar um Decreto-Lei que condicionava os estatutos dos cineclubes, de certa maneira, para os domesticar, porque eles estavam a aparecer com bastante pujança [risos] e pensamento crítico. E depois, claro, havia uma vigilância feroz das pessoas que faziam parte do Cineclube, porque era um espaço de encontro, um espaço de reflexão e também um espaço muito suscetível a influências estrangeiras – sobretudo nessa época, não havia uma grande produção no cinema português, portanto, vivia-se muito de filmes europeus e de filmes que traziam outras perspetivas, que mostravam outros tipos de vida, etc. Por isso, sim: nesse período, o Cineclube foi uma associação de resistência cultural ao Estado Novo.

Qualquer associação cultural era, por si só, uma ação de resistência e de luta contra o regime

Na sua opinião, o que distingue o Cineclube do Porto de um qualquer cinema tipicamente comercial?

O que eu penso que o distingue melhor é mesmo este gosto em partilhar a ideia de cinema. Não só através de filmes, mas de um espaço onde as pessoas se encontram para pensar, aprender e viver o cinema. Pode alegar-se que as salas comerciais também o têm, mas não criam uma rede comunitária tão forte como o Cineclube. Vocês, provavelmente, daqui por uns tempos, quando reativarem a sério o cineclube da faculdade, também vão compreender isso. Digamos que há uma espécie de um acordo à entrada que dita que toda a gente que lá vai gosta muito do que vai fazer ou do que vai ver. Há esta espécie de elo de paixão partilhada, quase como uma evidência: se nós sabemos que o outro gosta, sabemos que o outro se entusiasma por aquilo, e por isso também acabamos por dar um bocadinho mais. E são essas as relações que se criam entre as várias pessoas que vão às sessões. Claro que elas não são todas iguais! Nós estamos, desde 2013, com sessões regulares na Casa das Artes e, portanto, já temos, de novo, uma comunidade feita. Nós não podemos dizer que os membros dessa comunidade se dão uns com os outros da mesma forma, mas a verdade é que a comunidade existe. Isso foi muito evidente agora, na altura da pandemia. Nós tivemos de cortar por completo com as sessões em março e, quando retomamos, em junho, as pessoas que vinham eram os nossos sócios habitués: os que iam sempre às sessões voltaram logo. Portanto, há uma ideia comunitária inerente à ideia de Cineclube que eu penso que é o que faz a diferença em relação a uma sala comercial.

Depois, há também uma diferença na programação. O Cineclube do Porto, pelo menos, tem também nos seus estatutos uma espécie de missão de dar a conhecer a história do cinema, uma missão que um exibidor comercial não tem. Um exibidor comercial não tem missão nenhuma – é uma empresa, portanto faz o que quer. Uns são melhores do que outros – aliás, isso é muito claro na exibição comercial, ao ponto em que eu até a dividiria em dois: a exibição comercial geral, das grandes salas (que, hoje em dia, basicamente se reduzem aos shoppings) e a exibição comercial das salas alternativas, que nós temos a sorte de poder ter no Porto, hoje em dia: não só temos o teatro do Campo Alegre, com os filmes da Medeia, mas também o Cinema Trindade, duas salas que nos dão filmes mais alternativos, mas que não deixam de ter um conceito diferente do do Cineclube. Portanto, uma coisa não substitui a outra – ou seja, o facto de haver um espaço onde tenhamos acesso ao cinema não quer dizer que o Cineclube não faça sentido na mesma.

O ano de 2020 foi particularmente significativo na história do Cineclube do Porto, que comemorou 75 anos de existência. Como foi possível celebrar este marco tendo em conta as contingências atuais? De que forma se procederam as sessões, após o fim do período de confinamento, considerando as limitações provocadas pela pandemia da COVID-19?

O nosso programa comemorativo dos 75 anos tinha sido previsto para abril, porque é o mês do aniversário do Cineclube do Porto, que se comemora a 13 de abril, e, coincidentemente, é também o mês onde ocorre o dia internacional de cineclubes, a 14 de abril. Nós tínhamos previsto um mês de programação, que acabamos por ter de reorganizar e apresentar em outubro. Tínhamos também previstas muitas conversas, nomeadamente em torno do que é o cineclubismo, qual a história do cineclubismo em Portugal e qual a importância dos acervos do Cineclube, porque uma das coisas com que nós marcamos 2020 foi com a abertura ao público do nosso acervo que está na Casa do Infante – Arquivo Municipal do Porto. Tivemos de reajustar, ou seja, tivemos de reduzir o número de conversas e, de certa forma, transformar o que seriam momentos de debate em espaços para exibição de filmes: filmes com apresentações, com um programa um bocadinho mais elaborado que conseguisse compensar a ausência deste espaço de debate. Esse espaço existiu na mesma, ou seja, houve algumas sessões em que tivemos a presença de mais do que uma pessoa em conversa connosco, mas não foi na dimensão que nós tínhamos planeado. Em 2020, fizemos também o lançamento de um livro comemorativo dos 75 anos do Cineclube do Porto e de um DVD com um filme da Secção de Cinema Experimental do Cineclube do Porto – O Auto da Floripes. Tudo isto foi adiado por causa da pandemia. Nós fizemos a exibição desse filme na Casa das Artes, ainda que não tendo o DVD connosco por causa destes atrasos, e fizemos uma reflexão sobre o filme e sobre a história da secção de cinema experimental.

Havia vigilância feroz das pessoas que faziam parte do Cineclube

A nível de público, surpreendentemente ou não, (e eu penso que os exibidores de cinema comercial e alternativo concordarão também), quando se regressou às salas de cinema, em junho, as pessoas regressaram com alguma força. Talvez não logo em junho ou julho, mas, por exemplo, em outubro, chegamos a ter sessões esgotadas, claro que com a sala a meio, mas com muita gente. Eu penso que as pessoas estão um pouco ávidas destes encontros e de poderem continuar a apoiar a cultura. Ficamos muito contentes e satisfeitos porque, em outubro, que foi o mês central das nossas comemorações, sentimo-nos muito rodeados. Foi muita gente às sessões e houve muita gente a falar connosco, apesar desta situação. Para ser sincera, nós só reparamos numa redução drástica de público no início de novembro, mas também pode ter a ver com o reajustamento do horário, porque as sessões, às quintas, passaram das 21h30min para as 19h, em que há gente que já não consegue ir, e aos sábados, para as 10h30.

Quais são as suas expectativas relativamente ao regresso do público, num cenário em que já avistamos potenciais vacinas capazes de repor alguma normalidade? Acredita que possa fazer regressar muitos espectadores às salas de cinema?

Sim, eu não tenho dúvidas disso! Para nós, não é um regresso, é uma continuidade – só paramos de facto em março, abril, maio e junho –, mas o que eu espero é que as pessoas se vão sentindo mais confiantes para voltarem às salas. Nós temos um público muito diferenciado, que vai desde jovens estudantes até pessoas de muita idade – o nosso público é composto por muitos reformados e por pessoas que já estão no Cineclube há uns quarenta ou cinquenta anos. Confesso que, durante a pandemia, uma das coisas que nos preocupava era, primeiro de tudo, o estado de saúde destas pessoas; depois, o próprio isolamento ao qual elas agora estavam sujeitas, porque sabíamos que muitas delas se encontravam, não digo que exclusivamente, mas regularmente às quintas e aos sábados nas nossas sessões e acredito (e penso que não será exagero nenhum) que o facto de terem ficado sem isto durante aqueles meses tenha feito a diferença. Portanto, eu espero que tanto a vacina como a redução do número de casos possam permitir que estas pessoas regressem à sala com mais confiança e, sobretudo (e isso é uma coisa que eu acho que já se nota neste regresso), que as pessoas deem mais valor a um determinado tipo de cinema. Quando eu dizia há pouco que o cinema comercial mais alternativo recuperou melhor do que o cinema das pipocas, ou o cinema comercial do shopping, é, de facto, verdade. No cinema mais alternativo, existe uma relação mais próxima com as pessoas e, de certa maneira, sem querer ser elitista ou snob, essas pessoas estão mais educadas para o cinema e, portanto, procuram mais, sentem mais falta do cinema para viver, para o seu dia-a-dia. Acho que já se nota que há uma redireção das pessoas para os espaços que, de certa forma, lhes dizem mais, ou seja, para os espaços com um espírito e ambiente especiais, em que elas sabem que quem encontram do outro lado escolhe e pensa os filmes de propósito para elas e não segue só as estreias. As estreias também são importantes, mas não as seguem só.

No entanto, isto não quer dizer que estes espaços e estes cineclubes não vão sofrer muito ao nível financeiro, ainda que nem sempre todos vivam exclusivamente da bilheteira (como é o nosso caso, que não vivemos da bilheteira). Não viver da bilheteira é uma sorte para nós, mas tememos muito que a crise venha fazer com que, a médio-prazo, os financiamentos sejam cortados, o que impedirá a nossa atividade. Relativamente aos cinemas ditos comerciais alternativos, a bilheteira pode nunca ser suficiente para colmatar algumas falhas, porque uma coisa é ter sala cheia com meia sala, outra é ter com sala completa; depois, estes cinemas também usufruem de apoios que se prevê que venham a ser mais curtos. (Esperemos que não.) Os apoios para a área da Cultura no geral já são extremamente reduzidos; se daí formos para a área do cinema em particular, ainda são mais reduzidos. Se acrescentarmos a isso uma crise e outra (porque ainda houve uma há uns aninhos) [risos] e todas as necessidades, as pessoas, setores e entidades que é preciso acolher, infelizmente parece-me que o futuro pode não ser muito positivo.

As pessoas estão um pouco ávidas destes encontros e de poderem continuar a apoiar a cultura

Bem, mas esperemos que este confronto com a morte que o coronavírus nos proporcionou [risos] nos faça a todos lembrar do que é importante para nos tornar mais humanos e vivermos melhor. Além da saúde, claro!

Durante este ano, o setor cultural foi dos que mais pediu auxílio para lidar com as consequências económicas da Pandemia. O Governo, para além dos programas que foi desenvolvendo ao longo do ano, respondeu aumentando a despesa prevista no OE para o setor em 7,73%, sendo que essa despesa apenas corresponde a 0,21% da despesa total se excluirmos a RTP. Estando à frente de uma associação cultural com história, e tendo alguma ligação ao setor cultural e artístico do Porto, qual é a sua perspetiva para a sobrevivência do setor e como viu a resposta do Governo para o apoiar?

Eu acho que há aqui dois problemas: um é face à situação extraordinária que nós estamos a viver e o outro é um problema que já existia e que é contínuo, e que tem a ver com os apoios reduzidos. Por exemplo, agora fala-se muito do apoio ao setor produtor de cinema e do audiovisual. Eu acho que isso é essencial, acho que isso sempre foi uma luta por parte do cinema. Primeiro, a luta era apenas para a produção de cinema – no período após o 25 de abril, nos anos 70 e 80, lutava-se para poder fazer cinema. Entretanto, apareceu a indústria (e bem) do audiovisual que também entra neste bolo de pedido para financiamento. Neste momento, temos uma produção de cinema portuguesa que é contínua, ou seja, saem filmes todos os anos, frequentemente, mas continuamos a não ter o sistema de exibição de cinema português a funcionar.

Isto também tem a ver com os cineclubes. Hoje em dia, em Portugal, a rede de cineclubes é a única forma de fazer chegar cinema a muitos sítios. Felizmente, no Porto, não temos esse problema. Não temos agora, mas tivemos até há pouco tempo, quando só havia o cinema do Campo Alegre. O Cinema Trindade só reabriu em 2017. São três anos – nem sequer foi assim há tanto tempo –, mas é uma coisa tão boa e que nos faz tanta falta que parece que já estava há mais tempo; parece que faz tanto sentido existir na cidade que é como se sempre tivesse lá estado. Mas, antes disso, não era assim: o Cineclube e outras associações passavam algum cinema – no Passos Manuel, por exemplo – e pontualmente noutros locais, como em Serralves. De qualquer forma, nas grandes cidades – em Lisboa, no Porto, … – sempre fomos privilegiados. Agora, se pensarmos, por exemplo, em Seia: há um cineclube; deve ser dos poucos sítios onde se pode ver cinema em Seia. E quem diz Seia diz um sítio como Faro. Em Faro, existe o Shopping e provavelmente não devem existir muitas salas com muitos filmes durante o ano, mas existe um cineclube que faz uma exibição contínua. Podemos pensar em mais sítios – Beja, Évora, Guarda, … – sítios nos quais o que chega são as estruturas de contacto, que são sempre estruturas que têm que ser definidas pelas pessoas, que têm de ser as pessoas a construir e a manter. E um cineclube é muito isso, é uma estrutura de contacto; portanto, tem bastante importância, não só por nos poder dar a ver outro tipo de cinema, mas, em muitos sítios, porque nos pode dar a ver cinema, ponto. Ou seja, há muitos sítios onde há pessoas que não sabem o que é ir a uma sala de cinema, não sabem todo o mundo que existe no cinema além daquele que veem na televisão. Hoje em dia, estas pessoas até têm mais sorte, porque, com a internet, conseguem abarcar muito mais cultura cinematográfica, mas, ainda assim, falta sempre a pessoa, a entidade que nos leva a ver uma coisa – não nos aparece tudo à frente e vemos tudo ao mesmo tempo. Por isso, nesse sentido, acho que faltam e já faltavam mais apoios.

Hoje em dia, em Portugal, a rede de cineclubes é a única forma de fazer chegar cinema a muitos sítios

Depois, há aqui um fator que acho muito mais importante relativamente a esta exceção que houve: é que, provavelmente, os produtores do audiovisual e do cinema sofreram ainda mais de forma imediata do que os exibidores, no sentido que nós (os exibidores, os cineclubes) trabalhamos a mais longo prazo. O cinema comercial sofreu igualmente, mas as outras estruturas, sim, sofreram bastante. O que achei mais grave nesta crise foi, de facto, todo o mundo de pessoas que está por trás da produção cinematográfica – os técnicos de som, os maquilhadores, o pessoal da fotografia, … profissões das quais nem nos lembramos –, que fazem parte e que ficaram literalmente impedidos de trabalhar. Os projetos que já lhes estavam atribuídos, tiveram de os adiar, e agora vivem muito de um projeto que venha a seguir. Ou seja, esta precariedade que já existia no setor agravou-se. Isto é natural e não aconteceu só no setor da cultura – a questão é que, no setor da cultura, felizmente (penso eu), as pessoas são mais críticas e mais ativas a manifestar o seu criticismo e por isso é que nós ouvimos tanto falar dele. Mas também não gostaria de estar na posição de quem lidou com isto quando a pandemia apareceu, porque este é um tema muito complicado de tratar. Quer ir ao cinema, quer produzir cinema, são atividades extremamente colaborativas. Se calhar não temos muito essa perceção, mas, num set de filmagens, as pessoas estão muitas vezes umas em cima das outras; portanto, havia, de facto, um problema grave de saúde pública.

No fundo, o que eu espero é que a cultura não seja, uma vez mais, o setor ao qual se dão algumas migalhas com alguns concursos que funcionam só para algumas pessoas e que funcionam sempre com o que sobra dos recursos, um pouco para calar quem está a fazer barulho.

Espero é que a cultura não seja, uma vez mais, o setor ao qual se dão algumas migalhas

No início da entrevista, assinalou o aparecimento dos apoios ao cinema da Fundação Calouste Gulbenkian, nos anos 70, como um marco para o cinema português e até para a história do Cineclube. Que importância tiveram estes apoios para o desenvolvimento do setor?

Em 1967, já depois do arranque do Cinema Novo, havia a questão do financiamento do cinema em Portugal e é o Cineclube do Porto que promove uma reunião no Cinema Batalha, enquadrada na “Semana do Novo Cinema Português”, na qual se convidam vários agentes culturais, não só do Norte, mas também muitos de Lisboa, incluindo o promotor da Gulbenkian. É neste encontro, no qual se faz uma discussão e se faz uma proposta para o apoio ao cinema em Portugal, que fica definido o lançamento dos apoios da Fundação Calouste Gulbenkian. Estes apoios permitiram, por exemplo, que Manoel de Oliveira voltasse a filmar, e ajudaram alguns cineastas em início de carreira, como João César Monteiro. Esses apoios foram, penso que até há cerca de 15 anos, bastante relevantes para o cinema em Portugal. Isto é algo que acontece no Porto e acontece por ação do Cineclube, nomeadamente pela figura do Henrique Alves Costa. É muito interessante e até gostaríamos de ter mais estudos sobre isso, porque é um momento marcante e que faz, de facto, a viragem do cinema português. Não é o nascimento do Cinema Português, porque nasce antes, mas é uma espécie de renascimento, porque é a partir daí que ele ganha força para ser aquilo que é hoje em dia.

A FINK está a preparar a reativação do Cineclube de Economia, uma das associações estudantis com mais história na faculdade, apesar da histórica irregularidade do projeto. Qual é para si o papel deste tipo de associações focadas no cinema dentro das suas comunidades, sejam elas a comunidade académica ou a cidade do Porto como um todo?

Acho que é muito importante. A minha ligação ao cinema é anterior à minha entrada na faculdade, mas esta visão mais aprofundada que eu tenho do cinema tem a ver com ela. Eu fiz parte do núcleo de cinema da minha faculdade e, nesse núcleo, fizemos muitos encontros com alguns realizadores, debates e conversas. E foi como se todo um novo mundo se mostrasse à minha frente, um mundo que depois fui perseguindo e que me foi dando cada vez mais prazer acompanhar. Eu acho que um cineclube universitário tem sempre esse papel. Quando se está numa universidade, uma pessoa está sempre a fazer uma formação pessoal – quer seja em Economia, quer seja em Arquitetura, quer seja em Medicina, … – e essa formação pessoal e humana é extremamente importante. Por isso, eu acho que todas as instituições universitárias que promovam outras atividades que não sejam as curriculares são essenciais – quer seja um cineclube, quer seja uma companhia de teatro, etc. É isso que nos faz mais humanos, é isso que nos faz ter uma maior empatia pelos outros e, penso eu, quando vocês terminarem o vosso curso e começarem a trabalhar, vai fazer-vos melhores pessoas além de serem só melhores trabalhadores. Acho que é muito importante, também, para aprenderem a fazer coisas em conjunto, provavelmente com pessoas que nem sempre concordam convosco.

A faculdade, provavelmente, é o último sítio onde nós podemos questionar até ao limite extremo

Essa tal irregularidade – às vezes, as coisas florescem muito, depois murcham um bocadinho e depois voltam a florescer – faz sentido em todas as associações que são rotativas a nível de direção e é positivo: obriga quem está a trabalhar a pensar a curto prazo, para conseguir fazer as coisas que quer fazer e que quer partilhar com os outros, mas também a médio-prazo, para passar o legado a outro. Esta questão da passagem do legado também é muito importante, porque é assim que nós funcionamos em sociedade – nós nascemos, crescemos e depois, um dia, morremos e passamos os nossos projetos para outros. Por isso, acho que é uma aprendizagem que também é importante. Depois, até a nível de comunicação com as próprias cadeiras curriculares, no sentido de as complementar ou até de as questionar, porque a faculdade, provavelmente, é o último sítio onde nós podemos questionar até ao limite extremo uma coisa que nos dizem, e isso é um exercício que é muito importante de se fazer. Isso, no cinema, é muito fácil, porque o cinema nos transporta muito rapidamente para uma outra situação que não aquela na qual estamos atualmente, o que faz com que nós possamos fazer um exercício de imaginação que eu acho que é muito rico.

Para terminar, espero que, de facto, consigam montar esse espaço de encontro de novo e que, da próxima vez que nós falemos, seja para me convidarem para uma sessão! [risos]