A mediatização das preocupações do setor da Cultura em Portugal não é apenas efeito da pandemia. Nos anos mais recentes, as reivindicações dos seus agentes profissionais vêm crescendo de intensidade, com sucessivas manifestações e petições. O objetivo é claro: a dignificação do setor.

A Cultura, nas suas múltiplas formas de expressão, assume um papel verdadeiramente estruturante na edificação de uma sociedade que se pretende desenvolvida, plural e democrática. Mais do que uma opinião generalizada das autoridades públicas ou dos cidadãos mais atentos, a relevância do setor é um imperativo civilizacional, como símbolo máximo de uma liberdade que todos os dias vai a jogo e de um progresso educacional que se pretende tão abrangente quanto possível.

A crise económica e financeira que o país viveu no início desta década evidenciou as fragilidades de um setor há muito já vulnerável. O subfinanciamento público, que motivou o conhecido movimento que reivindica 1% da despesa prevista no Orçamento do Estado (OE), acrescido da instabilidade dos vínculos entre trabalhadores e entidades culturais, sem esquecer a tão problemática precariedade, retratam uma realidade que, embora as consecutivas promessas eleitorais para a reversão da situação, permanece até aos dias de hoje. A atual circunstância que vivemos, de pandemia, trouxe de novo às manchetes dos jornais as dificuldades de um setor altamente sensível às oscilações económicas, seja porque a despesa em Cultura é vista como não essencial aos olhos dos orçamentos individuais e familiares ou porque, consequentemente, este é dos últimos setores a sentir os efeitos da retoma económica.

Poderíamos, contudo, levianamente pensar que o contributo do setor para a economia nacional não é significativo o suficiente que justifique a atenção das políticas públicas. Nada mais distante da realidade. Segundo as estatísticas do INE, para o ano de 2018, o setor cultural e criativo empregava 131,4 mil trabalhadores, o que equivale a 2,7% do emprego total em Portugal, abrangendo os domínios das artes performativas, património, livros, publicidade, audiovisual e multimédia, artesanato e bibliotecas e arquivos. Digno de nota é o facto de o emprego do setor ser essencialmente composto por trabalhadores com ensino superior (quase 60%) e com ensino secundário ou pós-secundário, reflexo do esforço de profissionalização dos trabalhadores do setor e da dedicação das estruturas do ensino artístico que deve ser apoiado, desde conservatórios, escolas profissionais ou superiores, academias, sem esquecer as universidades.

O dinamismo do setor ao longo dos últimos anos é positivamente assinalável. Os museus conseguiram alcançar, em 2018, o marco de 1,94 milhões de visitantes, comparativamente com os poucos mais de 1 milhão de visitantes contabilizados em 2012. Também as galerias de arte contaram com mais de 7 mil exposições organizadas no ano de 2018, nos cerca de mil espaços dedicados para este efeito, o que se traduz, aproximadamente, numa exposição a cada dois meses. O subsetor dos espetáculos ao vivo, provavelmente o rosto mais visível do setor da Cultura, atraiu, no mais recente ano para que dispomos dados, 16,9 milhões de portugueses nas mais de 36 mil sessões que proporcionou. Em muitos destes eventos, os espectadores beneficiaram de bilhetes gratuitos ou entradas livres. Todavia, deste total de espectadores, apenas 5,5 milhões usufruíram de um espetáculo em resultado da aquisição do seu bilhete, contribuindo para o importante crescimento das receitas de bilheteira registado em 2018, face ao ano anterior (31,5%). A produção cinematográfica nacional caracteriza-se por uma grande variabilidade, tanto nos filmes apoiados como nos produzidos. Os filmes de autoria nacional só em 2018 superaram as duas dezenas, transparecendo a dificuldade de financiamento do cinema português.

Centrando a análise numa perspetiva de criação de valor, constatamos que as mais de 60 mil empresas do setor, que representam 5% do tecido empresarial português, geraram um volume de negócios na ordem dos 6,3 mil milhões de euros (1,7% do total nacional), valor gerado esse que vem crescendo sustentadamente desde 2014. Estes valores, obviamente, não refletem ainda os efeitos que a pandemia provocou no setor e as repercussões a que pode dar origem. No entanto, se recorrermos aos dados para o ano de 2013, em plena crise económica, encontramos um volume de negócios substancialmente inferior, na ordem dos 4,3 mil milhões de euros, o que é, por um lado, claramente alarmante e, por outro, esclarecedor da variabilidade do desempenho das atividades culturais e criativas em função do desempenho da economia.

O persistente financiamento estatal ao setor a níveis abaixo do desejável, conforme o previsto no OE2021 – cerca de 0,39%, se incluirmos a verbas destinadas para a RTP, só vem reforçar o estatuto crescente das autarquias locais como agentes vitais para a promoção de atividades culturais e criativas. Os números são bem clarificadores desta realidade: as despesas dos municípios portugueses destinadas a este segmento ascenderam a 469,8 milhões de euros, confirmando a tendência de crescimento já registada em 2017. Se procurarmos medir o esforço camarário, isto é, o peso das despesas para Cultura no total das despesas do município, verificamos que este é superior nas regiões menos urbanas, como os Açores e o Alentejo (7,7% e 7,6%, respetivamente), embora, em valor absoluto, se destaquem as regiões Norte e Lisboa, com 2,5 e 2,2 milhões de euros investidos.

Este é o reflexo de um país fortemente desigual, até no que à Cultura diz respeito. Se por um lado assistimos, por parte dos municípios que sentem com intensidade os impactos da interioridade, a um esforço consistente na valorização do património e das tradições, estabelecendo pontes entre a história e a modernidade, por outro, é evidente a tendência marcadamente cosmopolita da oferta cultural de cidades como Lisboa e Porto, dado que é em torno delas que se concentram a maioria dos equipamentos culturais – museus, galerias e salas de espetáculo – e uma considerável parte dos trabalhadores do setor. O turismo é, também, cada vez mais, uma peça essencial no xadrez da definição dos planos estratégicos para o setor, ao contribuir para uma diversificação de públicos e ao exigir uma maior intensidade na oferta disponibilizada.

As dificuldades de mobilização de fundos para as atividades culturais e criativas, que perpetuam os problemas há muito diagnosticados, exigem uma resposta que reúna todos os parceiros envolvidos: Estado, Municípios, mecenas e agentes privados. Só dessa forma, será alcançada a ambicionada dignificação da criatividade, do talento e do trabalho dos nossos artistas.