Acreditamos cegamente que tanta genialidade só pode ter origem num rasgo de inspiração, numa vontade divina incidente sobre a caneta do autor, mas a verdade é que o processo de escrita é extremamente lúcido.

Há certas letras de canções que ficam para a eternidade. São aquelas que cantamos inconscientemente, as que nos despertam emoções, e que atravessam barreiras etárias sendo cantadas por “miúdos e graúdos”. Acreditamos cegamente que tanta genialidade só pode ter origem num rasgo de inspiração, numa vontade divina incidente sobre a caneta do autor, mas a verdade é que o processo de escrita é extremamente lúcido e os grandes letristas como o Carlos Tê ou o Miguel Araújo conhecem-lhe grande parte dos segredos.

Ora, uma das técnicas por eles utilizada consiste na (perdoem-me a falta de criatividade na designação) “especificação de locais”. A melhor forma de perceber esta técnica é recorrendo a exemplos de canções portuguesas imortalizadas no “cancioneiro” nacional.

Na canção “Paixão (segundo Nicolau da Viola)”, popularmente conhecida como “anel de rubi”, temos a referência “ao concerto que havia no Rivoli”. E o que torna este verso tão especial? É precisamente, o facto de o concerto ser no Rivoli e não num simples “teatro” ou “sala de espetáculos”. Outro caso onde observamos este conceito, é na música “Anda comigo ver os Aviões” dos Azeitonas. Facilmente reparamos que o Miguel Araújo não escolhe um “porto” qualquer para se ir ver os navios, mas sim o “Porto de Leixões”, que é uma referência não só dos Portuenses e Matosinhenses, mas como dos Portugueses em geral. Esta referência a um lugar específico, aproxima o ouvinte da letra, porque tais lugares lhe são familiares. Se pensarmos bem, o Rui Veloso tem uma conexão especial com os Portuenses, isto deriva sobretudo do facto de ele cantar “a Cidade do Porto”, da “Cantareira à Baixa” e “da Ribeira até à Foz”.

A especificação de locais, não está, contudo, refém de um estilo de música. Desde “os braços do Cristo Rei” que “estavam a abraçar Lisboa” como cantava o fadista José Viana, à canção do Zeca Afonso que lembra a “aldeia da Meia-Praia ali mesmo ao pé de Lagos”, a minúcia de aproximar as letras e as pessoas é uma das qualidades que fazem um grande letrista.

 Embora esteja bem presente na música nacional, esta técnica de escrita, não nasceu em Portugal, sendo que se encontra presente em grandes clássicos da música. “In Penny Lane, there is a barber showing photographs”, cantava aquela banda de Liverpool, cujas letras e melodias encantaram o mundo. Como este, o leque de exemplos é vasto, enumerá-los seria, por isso, tarefa difícil. Desafio, no entanto, os leitores a deslindar mais canções onde se observa este mecanismo.

A complexidade da escrita de canções, não se resume a um simples método. Como este, existem muitos outros por e para descobrir. Serve, por isso, este artigo para clarificar um pouco este universo da criação de letras que, embora pareça espontâneo e natural, resulta de processos profundamente racionais.