Conduzida por Duarte Brito e Nuno Sousa
Realizada nas instalações do Parlamento Europeu, em Bruxelas
Também incluída no FEPIANO 40, publicado em Março de 2020
Lídia Pereira é, aos 28 anos, a mais jovem eurodeputada portuguesa. Nascida em Coimbra, licenciou-se em Economia pela Universidade dessa mesma cidade, onde se envolveu pela primeira vez na política, na JSD. É também mestre pelo College of Europe, tem experiência como consultora nas “Big Four” e é presidente da Juventude do Partido Popular Europeu (YEPP) desde 2018. Eleita pelo PSD nas últimas eleições europeias, a eurodeputada é membro da Comissão dos Assuntos Económicos e Monetários, na qual é também vice-coordenadora do Partido Popular Europeu (PPE).
O que a levou a entrar na política e, em particular, a interessar-se em assuntos europeus?
Eu sempre fui ativa politicamente. Inicialmente, não era tanto partidariamente, porque na altura ainda não tinha definido bem qual era a minha orientação, se esquerda ou direita (apesar de eu achar, já na altura, que esta divisão que se faz hoje em dia carece de alguma discussão). Mas eu fui, desde o ensino básico, muito participativa na minha turma. Aliás, a minha turma sempre foi muito participativa – os nossos professores sempre foram muito promotores de discussão, de tal forma que sempre tivemos o hábito de, por exemplo, ler uma notícia e prepará-la para a apresentar aos colegas na aula seguinte. O meu interesse começa a crescer pelo final do 8.º ou do 9.º ano. Eu já na altura escrevia algumas coisas – primeiro para mim, depois tive um blogue. No ensino secundário, começo a ter uma ideia mais clara mas, mesmo assim, eu ainda não me sentia convencida com um ou outro partido. Mais tarde, entrei na faculdade e comecei a frequentar várias vezes as reuniões da JSD de Coimbra. A partir daí, acho que a minha entrada na vida partidária acabou por ser muito natural – entretanto, fui convidada para ser vogal da comissão política da JSD, depois fui vice-presidente da distrital de Coimbra e também pertenci à CPN [Comissão Política Nacional] da JSD nacional, enquanto fui a diretora das relações internacionais.
Desde sempre me interessei muito pela construção europeia – eu lembro-me que, quando escolhi ir para Ciências Socioeconómicas, no ensino secundário, já fui motivada pelo que ia lendo sobre o Banco Central e sobre os desenvolvimentos que iam acontecendo na Europa, mas que, para nós, enquanto estávamos a estudar, acabavam por passar despercebidos. Há alguns dias, estávamos a conversar sobre a entrada do Euro no quotidiano – isto porque eu ainda faço a conversão para Escudos [risos] – e lembro-me muito bem da transição. Na escola, tínhamos máquinas de venda automática e, em janeiro, do dia para a noite, o preço das bebidas deixou de ser 100 Escudos para passar a ser 50 cêntimos. Aquele episódio acabou por marcar um bocadinho o meu interesse, não só por Economia, mas também pela União Europeia. Tanto é que eu participei, em 2010 ou 2011, no Model European Union (que decorre todos os anos em Estrasburgo, durante uma semana; no fundo, é uma simulação do funcionamento do Parlamento, do Conselho e da Comissão, para nós percebermos como é que funciona o processo colegislativo) e, já nessa altura, eu achava que queria conhecer mais acerca da Europa, porque nós, portugueses, acabamos por conhecer muito pouco. Aliás, foi isso que me levou, depois, a fazer Erasmus em Praga – eu não conhecia tanto a realidade dos países da Europa central e de leste e foi uma oportunidade que tive para os conhecer melhor. Depois desta experiência, quis continuar fora e também fiz o meu mestrado fora. Apesar de ter regressado a Portugal, a Coimbra, fiquei sempre com a curiosidade de explorar mais esse lado internacional que nós temos, sobretudo europeu. E foi assim que acabou por acontecer, tanto a minha participação política, como o meu interesse nos assuntos europeus. Mas eu penso que a minha participação política também teve outras influências: o facto de, por exemplo, eu ter sido escuteira até aos 22 anos incutiu em mim esse lado da discussão e da apreensão de valores, que se materializaram na minha participação política e no meu interesse pelos assuntos europeus.
Acho que a minha entrada na via partidária acabou por ser muito natural
A eurodeputada Lídia Pereira é a mais jovem eurodeputada portuguesa, com 28 anos. Sente que a sua juventude influencia o seu trabalho no Parlamento Europeu e a dinâmica com outros eurodeputados?
Eu acho que é um período interessante para se estar na política. Em geral e, em particular, aqui no Parlamento Europeu, porque há tantas coisas a acontecer que, muitas das vezes, acabamos por subestimar o impacto que elas têm. Por exemplo, a questão do Brexit – eu pude testemunhar e viver a dificuldade do processo. A dificuldade e, no fundo, até a tristeza, pela forma como termina (apesar de eu achar que não é um final definitivo).
Em relação à minha idade, a parte engraçada é que, como a grande maioria das pessoas que trabalham no Parlamento (o staff normal, não estou a falar dos assessores políticos) não está muito habituada a ver caras mais jovens enquanto deputados, acabo por ter uns episódios engraçados à custa disso. Por exemplo, ao entrar aqui no parlamento (há umas entradas para os deputados) acabo sempre por ter que mostrar identificação, porque ninguém acredita que eu sou deputada!
Em relação à integração com os meus colegas, este é um período interessante porque, para além de termos um parlamento bastante fragmentado comparativamente àquilo que se passava no passado, temos cerca de 60% de caras novas no parlamento. Para cerca de setecentos deputados, é uma dificuldade adicional: quando já conhecemos todos os colegas, sabemos facilmente quem é que normalmente fica com que assuntos, temas, … Agora, temos uma realidade diferente – mudou a Comissão, mudou a liderança do Banco Central, … A parte interessante é poder aprender com os colegas que já têm experiência de anos de política (europeia ou não) e dar a perspetiva, talvez mais isenta e independente, de alguém que, também por ser mais nova, tem uma perspetiva diferente das coisas, bem como uma forma de ver o mundo e preocupações diferentes. Eu não acho que nós tenhamos mais razão do que as pessoas mais velhas. Não adoto essa narrativa. Prefiro aprender com eles e tentar mostrar-lhes como é que nós vemos o mesmo problema.
Acredito que o Parlamento Europeu continuará a bater-se por uma proposta que não prejudique Portugal
Não considera, então, que haja uma relação de conflito entre gerações?
Não, de todo! E devo dizer que, internamente, no grupo do Partido Popular Europeu, eu tenho sido tratada com respeito e em pé de igualdade com colegas que já estão cá há mais anos! Prova disso foi o facto de eu ter sido tão considerada como outros colegas quando me decidi candidatar a vice-coordenadora da Comissão de Economia e Assuntos Monetários para o grupo do PPE. Portanto, há, no fundo, um reconhecimento de que não é por sermos jovens que não sabemos tanto das coisas. É claro que a nossa experiência é reduzida e é diferente da de uma pessoa que esteja cá há mais anos e que tenha até um percurso profissional mais longo do que o meu, mas é importante sublinhar (porque às vezes achamos que podemos ser desvalorizados) que tem havido uma forma de tratamento muito igual para com os outros pares.
O Conselho Europeu está reunido neste momento para decidir sobre o próximo Quadro Financeiro Plurianual. A proposta do Conselho Europeu, encabeçado por Charles Michel, é suficiente? O governo português e o Parlamento Europeu acham que não. Como é possível aumentar os recursos do Orçamento Europeu numa situação em que a UE perde um grande contribuinte, o Reino Unido, mas em que a UE tem cada vez mais desafios a responder?
Eu acho que qualquer proposta que sugira um corte relativamente ao quadro financeiro anterior é má. Infelizmente, Portugal continua a ser um país da coesão e, portanto, essa circunstância é penalizadora no caso de haver cortes nos fundos de coesão. Pelo que tem sido apresentado, a tónica tem sido num valor de orçamento mais baixo do que aquilo que o Parlamento defende – no caso, é 1,3% da riqueza gerada na União Europeia. Portanto, se houver cortes, nós vamos perder, como é evidente. Aquilo que tem que ser assegurado – e eu acho que é esse o grande trabalho dos governos nacionais, e que não tem sido feito da melhor maneira – é explicar às pessoas, à opinião pública, os benefícios que a União Europeia tem trazido, ao longo destes anos todos, a todos os países que dela fazem parte. Porque eu acho que a relutância em se aumentar um orçamento provém muito da opinião pública, que depois acolhe apoio na posição dos governos nacionais em não estarem disponíveis para aumentar as suas contribuições para o Orçamento da União. Continua a haver, também – e isso explica um pouco o posicionamento das várias geografias da Europa –, alguma desconfiança entre o norte e o sul relativamente ao cumprimento dos compromissos assumidos e à resposta que os países deviam dar com o dinheiro que vão recebendo. Isto também não é benéfico mas, mais uma vez, eu penso que tem que haver uma narrativa diferente da parte dos governos nacionais, porque nós podemos, num futuro próximo, e se de facto continuarmos esta trajetória de encolher cada vez mais um orçamento (principalmente com a saída do Reino Unido, porque deixamos de ter um contribuinte no Orçamento), precisar de uma grande onda de apoio público para o projeto da União Europeia. O Brexit já aconteceu – nós não sabemos se isso poderá ter mais repercussões noutros países. Estou em crer que não, mas pode acontecer. Portanto, temos de ser politicamente cuidadosos com isso. Se, de facto, se verificarem os cortes anunciados e Portugal sair a perder, não fará sentido! Em propostas feitas no passado, havia países como a Itália ou a Suécia que passavam a ganhar mais e nós, que estamos numa posição de desenvolvimento económico ainda diferente de outros países europeus, éramos penalizados.
Queria só deixar a mensagem de que é este tipo de situações de impasse que muitas vezes podem ser exploradas pelos populistas. “Em Bruxelas, estão há dias ou há semanas para decidir um orçamento! Nós temos é que avançar e ali eles só perdem tempo! São só burocratas, tecnocratas, …”. Temos de pensar racionalmente: sabemos que os recursos são escassos, que há vontades limitadas para se aumentar o orçamento da União, … Mas o ponto é: se nós, com tão pouco – porque o orçamento da União é francamente baixo se nós compararmos com a realidade norte-americana –, conseguimos fazer tanto, e tendo em conta o quanto o projeto europeu cresceu e as oportunidades que proporcionou até hoje para os vários países da União, imagine-se com mais verbas! Claro que sempre bem geridas e com obrigações de parte a parte: os estados-membros cumprirem com aquilo que lhes é devido, nomeadamente em matéria orçamental. Podíamos ter uma potência europeia muito mais pujante do que aquilo que nós temos visto até hoje. Portanto, eu acredito que o Parlamento Europeu continuará a bater-se por uma proposta que não prejudique Portugal e, nessa batalha, não nos vamos deixar render até ao último minuto.
A Europa ainda carece em competências na área da digitalização
Esta discussão já se estende há bastante tempo, podendo-se chegar a uma situação em que o orçamento só seja aprovado numa altura mais tardia do ano. Corre-se o risco de acontecer o mesmo para 2021?
Pode acontecer. Mas a forma como os quadros plurianuais são feitos permite sempre aquelas folgas do “n+2”, “n+3”, … Portanto, as verbas dos quadros anteriores continuam a ser canalizadas. De qualquer forma, é tempo que perdemos, principalmente tendo em conta que o mandato do Parlamento começou em julho. Portanto, estamos a perder tempo e dinheiro que podia começar a ser canalizado para os grandes projetos da União – por exemplo, a questão do combate ao cancro (uma proposta que estava no programa do PSD e do Partido Popular Europeu durante as eleições europeias), desafios como o Green Deal (na questão ambiental), … Enfim, temos aqui uma série de coisas que, quer queiramos quer não, continuam a ser adiadas, quando podiam já estar em marcha e ter, inclusivamente, uma série de outros processos legislativos a decorrer para dar resposta a essas políticas públicas.
Existem várias propostas de criação de recursos próprios da União Europeia. Gostaria de saber, na sua opinião, quais é que acha que devem ser implementadas ou que têm possibilidades reais de ser implementadas num futuro próximo.
Perante os factos, neste momento, não antevejo que uma situação de recursos próprios venha a ocorrer a breve trecho. O facto é que, hoje em dia, temos uma economia cada vez mais conectada, quer a nível europeu, quer a nível internacional. Temos uma realidade diferente, com regimes fiscais que precisam de ser adaptados ao século XXI – e, com isto, estou a referir-me à economia digital, que, neste momento, gera uma série de receitas consideráveis que são canalizadas de forma diferente por cada Estado Membro. Para além disso, também depende da jurisdição em que determinada empresa está sedeada. Aquilo que eu acho que podia ser um primeiro passo para um eventual Orçamento com recursos próprios seria mesmo a harmonização fiscal. Hoje em dia, parte da receita do Orçamento para a União provém do IVA, que é, no fundo, canalizado para as contribuições do Orçamento. Neste momento, existe grandes disparidades nessa matéria, o que propicia uma diferença na competitividade entre países. Portanto, devia haver alguns incentivos e penso que, por parte do Comissário com a pasta, há essa abertura (e até intenção) de darmos um passo para mais harmonização fiscal. Dando esse passo, estaremos em melhores condições para pensarmos num Orçamento com contribuições de outra natureza. No entanto, até lá e perante a circunstância atual, vejo com alguma dificuldade. Eu acho que é politicamente essencial, pelos motivos que enumerei há pouco, que se caminhe nesse sentido, mas, para já, não acho que estejam reunidas as condições necessárias para atingirmos esse objetivo.
Só vamos ser verdadeiramente competitivos se estivermos na vanguarda da tecnologia
Como pertence à Comissão dos Assuntos Económicos e Monetários, gostaria de saber quais considera serem as principais insuficiências da arquitetura da União Económica e Monetária e quais as medidas que devem ser tomadas para colmatar essas insuficiências.
Nós temos ainda algumas coisas por colmatar, que já vêm com um atraso imenso. Refiro-me ao Mecanismo Europeu para a Segurança dos Depósitos [em inglês, European Deposit Insurance Scheme (EDIS)], que é o terceiro pilar da União Bancária e que ainda está por completar. Eu acho que é fundamental avançar e, de acordo com as prioridades que foram definidas pela Comissão, creio que será um dos temas para concluir. Temos uma série de outros desafios, nomeadamente ao nível das cryptocurrencies. Eu penso de acordo com aquilo que a presidente do Banco Central Europeu, Christine Lagarde, tem vindo a dizer: nós devemos promover a inovação, mas devemos ser cautelosos na forma como o fazemos e temos que garantir que haja uma luta clara contra o branqueamento de capitais. Infelizmente, a União Europeia, apesar de ter sido pioneira em matéria de legislação na luta contra o branqueamento de capitais, continua a ser um local procurado para determinado tipo de atividades ilegais, nomeadamente lavagem de dinheiro. Eu diria que estes desafios são talvez os mais importantes, a par das consequências que o desenvolvimento das Fintech cria no setor bancário. Na verdade, refiro-me à forma como este tem que se adaptar a esta nova realidade. Não estou a falar apenas das novas startups, como é o caso da Revolut: há outras que podem vir a surgir se houver os desbloqueios necessários na União Bancária. A questão da digitalização e a partilha de informação entre os Estados Membros do ponto de vista fiscal e do combate à evasão fiscal tem sido uma prioridade – e digo isto porque, recentemente, em Dezembro, foram aprovados os meus relatórios que preveem exatamente a luta contra a invasão fiscal e fraude no comércio eletrónico – e isto deve-se ao facto de termos uma economia cada vez mais digitalizada e um crime cada vez mais sofisticado. Portanto, as instituições têm que responder a essa nova realidade – temos que nos preparar para isso – e acho que a Comissão dos Assuntos Económicos e Monetários tem dado importantes passos nessa direção. Mas diria que o mecanismo europeu para a segurança dos depósitos é fundamental. Infelizmente, no Eurogrupo, tem havido alguns avanços, mas sempre muito curtos. É um assunto que já se fala desde 2014 ou 2015; estamos em 2020 e ainda não se viu grandes avanços. Definiu-se um novo quadro para o EDIS, mas ainda estamos longe de o ver concretizado. Portanto, em súmula, eu diria que digitalização, Fintech, branqueamento de capitais e invasão fiscal são as prioridades para este mandato.
Relativamente à digitalização, qual deve ser o papel da UE no crescente processo de digitalização da Economia e no desenvolvimento da inteligência artificial?
Se a UE quer ser uma potência global na área da digitalização, vai ter que apostar e fazer investimentos claros nesta oportunidade – digo oportunidade, porque acho que a digitalização da economia é verdadeiramente uma oportunidade. A inteligência artificial é um tema que tem sido muito caro à China: dois terços do investimento global nesta matéria são realizados na China, daí a maioria da inteligência artificial ser proveniente de lá. Também aos Estados Unidos; aliás, quando Donald Trump percebeu que a China estava a liderar em matéria de inteligência artificial, não quis ficar para trás e anunciou um pacote de medidas de investimentos na inteligência artificial. Por outro lado, a Europa ainda carece em competências na área da digitalização. Isso leva-nos a uma discussão até mais ao nível da educação e sistemas educativos – se nós queremos estar na vanguarda da tecnologia, temos que equipar as pessoas com essas ferramentas para que possam desenvolver a tecnologia e produzir inovação nesse sentido (garantindo sempre, claro, os padrões éticos que a inteligência artificial requer – nomeadamente a proteção dos dados – porque, num mundo tão globalizado, é evidente que haverá cada vez mais ataques cibernéticos de origens diversas que podem comprometer o equilíbrio do mundo como o conhecemos). A UE tem dado sinais dessa preocupação em alavancar a sua competência na área da digitalização: estamos a falar de programas como o InvestEU ou como o Horizonte Europa, que estão muito focalizados nessa nova oportunidade. Se repararmos que a revolução industrial demorou imenso tempo a realizar-se e o Twitter demorou apenas vinte e nove dias a estar online, há aqui uma grande oportunidade que deve ser aproveitada e impulsionada. Temos de ter em conta que o esqueleto da economia europeia continua a ser as PME, pelo que devemos dar-lhes as oportunidades que precisam (nomeadamente às startups) para poderem crescer o suficiente. Eventualmente, pode pensar-se ainda num regime jurídico europeu que preveja esta possibilidade de as empresas conseguirem ganhar escala e, com isso, tentar-se atingir os objetivos a que nos propomos no contexto europeu. Há pouco, referia-me à questão da educação – nós temos regimes educativos muito diferentes e, se nós estamos a competir a nível global com a China, os Estados Unidos ou a Índia, estamos a ficar para trás. Não estou, com isto, a aludir à possibilidade de a educação deixar de ser uma competência nacional, mas considero ser necessário ajustar agulhas para garantir que estamos todos em pé de igualdade para competir com o mundo, que é global, conectado, mesmo apesar de alguma guerra económica que possa provir da China ou dos Estados Unidos. Portanto, a Europa tem aqui essa grande oportunidade – e desafio – que é adaptar-se aos concorrentes e liderar, também, em matéria de economia. Nós somos unidos na diversidade, mas também queremos ser líderes na competitividade, e só vamos ser verdadeiramente competitivos se estivermos na vanguarda da tecnologia, para podermos acomodar uma digitalização da economia que seja benéfica para todos e que, à semelhança do que tem sido a política ambiental da UE, não deixe ninguém para trás.
A UE deve alavancar as empresas europeias
Nessa estratégia, deve a UE incentivar a criação de gigantes europeus na indústria e na tecnologia?
Eu considero que a UE deve alavancar as empresas europeias que tem. Por exemplo, na tecnologia do 5G, a Nokia e a Ericsson são exemplos disso: têm tecnologia mais cara do que a Huawei. Mas são empresas europeias e, à semelhança das outras potências (no caso, os Estados Unidos e a China), que também privilegiam os seus “campeões”, eu não vejo razão para a Europa não fazer o mesmo. A tecnologia 5G, se não estou em erro, pode criar 2,5 milhões de empregos e gerar na economia um crescimento de 150 mil milhões. Estamos a falar de números bastante significativos, por isso, a estratégia tem de passar pelas empresas europeias, pela investigação e tecnologia europeias, para nós podermos estar na vanguarda de que falamos há pouco.
Como é que a estratégia digital e industrial da UE se encaixa na sua estratégia global como grande player internacional em outras áreas, como o clima, a proteção social e a geopolítica?
No ponto de vista ambiental, muita tecnologia utilizada, por exemplo, nas energias renováveis é europeia. Aliás, é aqui que eu acho que o Green Deal pode ter uma grande influência – garantir que mantenhamos essa tecnologia europeia em solo europeu e que exportemos essa tecnologia. No domínio da proteção social, o modelo social europeu (a garantia que nós temos do acesso à saúde, do acesso à educação, …) é incomparável ao de qualquer outra geografia no mundo. O ponto é: se queremos manter esse modelo social, temos que fazer algumas escolhas. Portanto, a Europa (neste caso, os Estados Membros no seu conjunto) tem que definir qual o caminho a seguir. Felizmente, hoje tem dia, temos uma qualidade nos serviços públicos e um acesso à saúde que não temos nos Estados Unidos. Portanto, se quisermos manter o modelo social europeu (que está cada vez mais a encarecer – não nos podemos esquecer que somos o continente mais envelhecido e que isso traz custos), é preciso, também, adaptarmo-nos a essa realidade. Por isso é que eu falava, há pouco, de ajustarmos os sistemas fiscais aos dias de hoje. Aliás, aproveito aqui para fazer um parêntesis: a nossa geração (a geração millenial) arrisca-se a ser a primeira geração a viver pior que as anteriores, e isto acontece precisamente por uma série de desafios como a digitalização, a preparação da educação para a digitalização da economia, o envelhecimento da população e os custos crescentes com a saúde por via desse mesmo envelhecimento. Fiz aqui este parêntesis, porque é preciso termos todos estes fatores em conta para conseguirmos, de uma forma sustentável e sustentada, mitigar os potenciais efeitos de uma geração vir a viver pior do que as anteriores. Do ponto de vista da geopolítica (nós temos uma Comissão bastante geopolítica, não só pelo background da própria presidente da Comissão, mas pela própria composição do colégio de comissários), eu acho que é aqui que teremos que definir quais as prioridades. Eu preferia uma Europa que, por um lado, privilegiasse as empresas europeias e, por outro, construísse acordos comerciais com outros países. Eu considero que a UE tem um papel a defender, por exemplo, nos direitos humanos, na política ambiental, no combate ao branqueamento de capitais, …, que são aspetos que podem ser firmados em acordos comerciais com outros países. Eu penso que é através deste mecanismo da política comercial que a Europa pode imprimir noutros países os valores e os princípios europeus e, assim, ter um papel de alguma influência no panorama geopolítico.
A nossa geração arrisca-se a ser a primeira geração a viver pior que as anteriores
Essa parte é muito interessante. Ao nível da teoria económica, quando falamos de acordos comerciais, focamo-nos mais nos efeitos gerais de bem-estar. Esta política comercial está a pensar noutros fatores, nomeadamente a segurança alimentar e os direitos humanos. Neste âmbito, qual é a relação da União Europeia com as outras potências do mundo, principalmente com os Estados Unidos? A política comercial acaba por ser um cavalo de batalha nessa rivalidade?
Talvez esta realidade aconteça, sobretudo, por culpa do contexto político nos dois lados do Atlântico. No entanto, acordos como o que há pouco tempo se celebrou entre a UE e o Vietname são, inegavelmente, importantes passos para termos esta capacidade de, como eu dizia, imprimir os valores europeus e promover as empresas europeias além-fronteiras. Quando me refiro a valores ou princípios europeus, refiro-me ao direito do trabalho, à proteção das crianças, à política ambiental, … Se a Europa quer continuar a ser líder nestes domínios (sobretudo no domínio ambiental), tem que haver um diálogo muito maior com os Estados Unidos (o acordo transatlântico TTIP – Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento – acabou por ficar em “banho Maria”), porque há algo que não podemos ignorar: se há muito que nos separa, também há muito que nos une – por exemplo, os dois lados do Atlântico defendem a liberdade, nomeadamente a liberdade de expressão, ao passo que há outras geografias que nem tanto. Portanto, eu acho que este tipo de definição por parte da UE é fundamental para orientar as suas políticas de uma forma que sejam favoráveis a si e aos parceiros com quem afirme esses acordos comerciais.
Passando para uma pergunta relacionada com a sua família política, como é que o partido de Órban, o Fidesz, ainda pertence ao Partido Popular Europeu (apesar de estar suspenso)?
Gostava de falar de uma coisa que não se costuma falar muito: quando o Fidesz entrou para o panorama europeu, à semelhança do PSD, fazia parte do ALDE, os Liberais. Mais tarde, o Fidesz e o PSD entraram mais ou menos ao mesmo tempo para o PPE. Estou só a contextualizar, não os estou a comparar. Mas não nos podemos esquecer do background dos países de Leste, que é completamente diferente dos países do Ocidente: estes países estiveram sujeitos a um regime comunista durante anos. A adesão dos partidos destes países de Leste permitiu ao PPE crescer e tornar-se um partido dominante no contexto europeu. Portanto, tendo em conta o contexto diferente, a política também se alterou. Nós passamos por muitas coisas, como a crise financeira, o facto de ter havido alguma alteração na política nos chamados países de Visegrado, … Portanto, esta alteração do contexto político propiciou algum desvio daquilo que é a matriz identitária do PPE, que é um partido pró-europeu, até de cariz federalista. Eu sou defensora do diálogo e considero que é preferível falar com os partidos que estão mais próximos do que com os que estão mais longe, mas o que é importante ver aqui é que os partidos têm de ser capazes de ser claros naquilo que, no fundo, os une – no caso, a defesa da liberdade de expressão, a independência dos tribunais e uma série de outras coisas. Se, eventualmente, há um partido ou outro que pondere sair de um grupo político (não só do PPE), não há problema. Aliás, isso já aconteceu – dou como exemplo a fragmentação do partido dos Republicanos, em França, em que uma onda de militantes se juntou ao partido de Macron e agora estão nos Liberais e continuam a estar muito próximos do PPE. Enfim, não podemos ver esses acontecimentos como o fim de alguma coisa – é fruto dos tempos, é inevitável que as coisas se alterem! É impensável pensar que tudo em política é imutável e, portanto, o partido [Fidesz] continua suspenso e continua a haver um conjunto de diálogos e de troca de impressões para se poder ver como podemos sair com sucesso deste imbróglio.
Estamos a viver o resultado de um leilão de ilusões que ocorreu durante anos
Queria dizer outra coisa: na Hungria, há um partido ainda mais radical do que o Fidesz e é muito perigoso se houver alguma tentativa de aproximação entre os dois. Eu penso que, enquanto houver diálogo entre o PPE e o Fidesz, é positivo. Eu não me revejo em muitas das posições do Fidesz, mas os mecanismos do PPE continuam a funcionar e o Fidesz continua suspenso e eu espero que o que vier a acontecer no futuro seja em benefício das pessoas dos partidos que pertencem ao PPE. Para finalizar, não nos podemos focar apenas na questão húngara. A questão polaca também é preocupante – o partido PiS (Lei e Justiça), de Jaroslaw Kaczinsky, é muito perigoso e nós temos, no PPE, colegas polacos do partido moderado (Plataforma Cívica), que também não se reveem em muitos momentos em atitudes do Fidesz. Em Malta, temos um governo socialista suspeito do homicídio de uma jornalista, e que consegue, mesmo assim, passar incólume no panorama mediático. É preciso ver muito bem o contexto na questão dos países de Leste, em particular o regime comunista em que viveram. A tentativa de “ocidentalização” desses países provavelmente saiu gorada e, portanto, há situações nacionalistas que emergem e temos de saber lidar com elas, com mestria, com inteligência e sendo sempre muito claros nos valores que defendemos.
Como é que os partidos do “establishment” se conseguem adaptar a esta fragmentação do sistema partidário e, em particular, qual é o seu impacto na formação de consensos no Parlamento Europeu?
Está muito difícil. Eu acho que, na questão do “establishment” dos partidos políticos em geral, nós estamos a viver o resultado de um leilão de ilusões que ocorreu durante anos. Essas ilusões eram melhores condições de vida para a população em geral, melhores salários, melhores serviços, mais emprego, … Por força da alteração do contexto económico, da digitalização, da globalização, estas ilusões estão a cair por terra. Os partidos têm que se adaptar à realidade, que não cumpre o que andaram a “vender” durante anos aos eleitores. Só assim é que é possível conseguir consolidar as forças moderadas neste momento volátil que tende a pender um pouco para o populismo. E o populismo surge exatamente por causa deste leilão de ilusões, que provoca uma série de dificuldades no panorama europeu – em particular, a dificuldade em formar consensos. Vemos que os extremos estão polarizados e que cresceram face às forças moderadas, o que nos coloca alguns desafios ao fazer escolhas, nomeadamente ao selecionar os nossos aliados. Tem sido claro que as forças pró-europeias têm sido privilegiadas em todos os consensos que têm sido feitos, mas é preciso que os partidos políticos tradicionais percebam que o panorama se alterou. Atualmente, as redes sociais dão uma visibilidade enorme a estes partidos “anti-establishment”, que podem, livremente, ter uma narrativa disruptiva face aos partidos tradicionais, porque nunca estiveram no governo – não têm amarras a nenhum tipo de acontecimento. Portanto, a dificuldade que temos aqui no Parlamento é um alerta: a possibilidade de crescerem forças extremistas à esquerda e à direita pode, para futuro, comprometer o processo de construção europeia. Mas o que está a acontecer no Parlamento Europeu é um reflexo daquilo que está a acontecer nos países, individualmente.
Eu sou defensora do diálogo
Para finalizar, como é possível aproximar os cidadãos da Europa e dos seus representantes nas instituições europeias?
Uma das formas de aproximar os cidadãos da Europa (e acabei de falar dela) é através das redes sociais. Não é a única maneira, mas acho que é uma boa forma, pelo menos para o público mais jovem, que está mais presente nas redes socias. Mas a forma de aproximar parte, também, dos governos a nível nacional, regional e local. Por exemplo, os políticos e os representantes dos cidadãos devem ter o cuidado, sempre que há uma inauguração de um projeto qualquer financiado pela União Europeia, de mencionarem o papel da UE na sua construção. Escolas, hospitais, laboratórios, unidades de investigação, … – estes projetos são muito importantes e chegam, muitas vezes, a ser financiados a 80% pelo Orçamento Europeu. É preciso ter cuidado e isso parte da responsabilidade da política local e da política nacional, dos deputados e até do governo. Aquilo que vemos é que os governos têm capacidade para criticar Bruxelas quando as coisas correm mal, mas é muito difícil congratularem Bruxelas quando as coisas correm bem. Foi por causa de anos e anos desta narrativa que tivemos fenómenos como o Brexit. David Cameron (isto não é novidade para ninguém) criticou a União Europeia durante anos e, duas semanas antes do referendo, tornou-se pró-europeu. É claro que isso tem consequências, e a consequência foi o Brexit. Aquilo que podemos fazer é estarmos o mais presentes possível, é trazer as pessoas cá, é interagirmos com as pessoas através dos canais que nós temos disponíveis (como as redes sociais), mas a responsabilidade não é apenas nossa: o apoio dos responsáveis políticos a nível nacional também é fundamental.