“Metamorfose” trata a estranha transformação que, certa manhã, se dá no corpo de Gregor Samsa. Quando este acorda e se apercebe que se transformou numa barata gigante, a sua vida muda radicalmente. Assim, o checo Kafka acorda no leitor um profundo processo de reflexão sobre aquilo que significa, na verdade, o Ser e o Estar.
Foi no decorrer da crise financeira dos subprime que a política monetária na Zona Euro, como era antes conhecida, deixou de existir (especialmente depois de 2015). A sua metamorfose, embora menos espetacular do que aquela que Kakfa inventara em 1912, foi também inesperada, violenta e, acima de tudo, impossível de ignorar. Com a fragilidade política pela qual o projeto europeu tem passado recentemente, torna-se essencial assegurar medidas que fortaleçam as economias europeias. Mas para isso acontecer, é vital que o BCE defina um rumo que funcione no futuro. Isto implica, para além de outras coisas, analisar com cuidado o mutante que foi criado – o que podemos esperar deste regime de taxas diretoras negativas a que nos fomos habituando nos últimos 5 anos? Na era do data-driven everything, com todas as implicações preditivas que isso implica, o melhor que podemos dizer é que ninguém, na verdade, sabe. Estamos a viver em condições absolutamente únicas, no que diz respeito a política monetária. Respostas taxativas não são de grande utilidade numa altura onde as decisões são revestidas, muitas vezes, de uma natureza experimental sem paralelo.
A severa crise financeira que rebentou em 2008, originada por uma teia com epicentro nas MBB (Mortgage Backed Securities), arrastou-se rapidamente para a Europa e asfixiou várias economias que, já de si, sofriam de falta de ar. Portugal foi um dos protagonistas dessa história. Foi com a crise das dívidas soberanas que Mario Draghi decidiu pisar o acelerador e levar a cabo uma política monetária do BCE de pendor extremamente expansionista. E desde então, através de mecanismos de cedência de liquidez, como o Quantitative Easing, o balanço do BCE disparou.
Com taxas de juro em recordes mínimos, esperava-se uma recuperação sólida da Zona Euro. O incentivo óbvio ao endividamento deveria, em condições normais, levar a um aumento do investimento e do consumo. No entanto, não foi isso que aconteceu. O monstro da armadilha de liquidez assim se assume como um dos principais oponentes ao crescimento Europeu. Por cá, o endividamento tem sido, na verdade, muito fraco. Segundo o Bank of International Settlements, a dívida combinada das empresas não financeiras da Zona Euro passou de 14,2 biliões (USD) em 2008 para 14,1 biliões (USD) em 2018, e no mesmo período a dívida das famílias passou de 78,2 biliões (USD) para 76,8 biliões (USD); a dívida pública (a única que registou um aumento) cresceu de 10,1 biliões (USD) para 12,9 biliões (USD). Estamos claramente numa situação não convencional, e há indícios fortes de que a tática do BCE possa estar esgotada. Ainda que o crescimento económico não seja um objetivo final do BCE (ao contrário do que acontece no FED), não podemos ignorar esta falta de eficácia das políticas monetárias. A tão desejada inflação de médio prazo abaixo, mas próxima, dos 2%, está também longe do horizonte.
Para além de ser importante relançar o investimento e consumo por razões óbvias de sustentabilidade económica, é também importante fazê-lo para conseguirmos continuar a sermos competitivos. Seria impensável (ou, no mínimo, pouco provável) que, face ao quadro do tímido endividamento exposto acima, a dívida total mundial, na última década, tivesse registado aumentos muito significativos. Não obstante, registou. Cresceu cerca de 50% nos últimos 10 anos, responsabilidade principal da China, onde a dívida das empresas não financeiras cresceu de 4 biliões (USD) para cerca de 20 biliões (USD). Sim, leu bem – um aumento de 400% para o tecido empresarial chinês. Como Cristina Casalinho, CEO da Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública (IGCP), expôs num recente seminário da FEP, são as economias emergentes asiáticas que, neste momento, detêm os maiores rácios de Dívida/EBITDA. A economia chinesa tem sentido um abrandamento do seu crescimento anual, mas ainda assim, todos os anos adiciona o equivalente económico à Austrália ao seu produto (fonte: McKinsey, Maio de 2019). O banco de investimento Goldman Sachs prevê que, em 2050, a China seja a maior economia do mundo, com um PIB cerca de 75% superior ao dos Estados Unidos. O outlook chinês é positivo, mas, no entanto, não é perfeito. Há quem seja da opinião que a economia chinesa está overleveraged, e no futuro possa passar por defaults em escala maciça. Por enquanto, a nação vermelha não parece querer abrandar.

O plano macro está a passar por grandes mudanças, e por cá continuamos agarrados a uma política monetária que não parece ser a resposta. Christine Lagarde, num recente comunicado, avisou que precisará da ajuda da política fiscal expansionista para que o BCE consiga alcançar o seu objetivo final (ver Financial Times, “Lagarde calls on European governments to launch fiscal stimulus”). Parece que no horizonte pode começar a surgir alguma mudança. No meio da busca pelo melhor mix de políticas, os bancos comerciais vão vendo a sua rentabilidade ser pressionada contra a parede, obrigando-os a aumentar comissões e a orientarem-se para serviços que gerem mais comissões. A taxa de facilidade permanente de depósito está fixada pelo BCE, à data da elaboração deste texto, nos -0,5%. Combinando-a com a taxa das principais operações de refinanciamento, que está nos 0%, sobra-nos um quadro contra intuitivamente pouco favorável para a concessão de crédito: bancos financiam-se com custos mínimos, porém a liquidez estacionada no BCE é lhes prejudicial, e tanto as empresas como as famílias não parecem querer recorrer ao crédito, por mais barato que ele neste momento seja. E se é verdade que nem só de pão vive o Homem, é também verdade que nem só de comissões vive um banco. É por isso que, como resposta à baixa rentabilidade do crédito, iremos ver um perfil com menos aversão ao risco, por parte destas instituições. É inevitável. A questão é perceber até que ponto esta mudança vai afetar estas decisões de investimento, e em que medida elas vão afetar a Economia como um todo. Nunca é de mais relembrar que foi na concessão de crédito hipotecário que nasceram as raízes da última grande crise. E embora os bancos comerciais não tivessem sido os grandes arquitetos por detrás do colapso, foram uma peça importante no desenrolar do processo. Foi, por exemplo, com as CDO (Collaterized Debt Obligations), que se resguardaram do risco na concessão de crédito hipotecário. Este fenómeno aconteceu de forma tão veemente que o risco moral daí decorrente corrompeu, entre outras coisas, a verificação de condições da própria concessão em causa. E há um sinal, vindo do Norte, que os vários riscos que enfrentamos devem ser levados a sério – recentemente, o Banco Central Sueco decidiu, seguindo uma lógica de mitigação de risco, abandonar o regime de taxas negativas, passando a sua repo rate (taxa da operação de acordos de recompra) de terrenos negativos para os 0% (ver Bloomberg, “Riksbank Hike Ends Subzero Experiment in Global Test Case”). No reporte mensal de Dezembro do Sveriges Riksbank, pode ler-se: “(…) But if negative rates are perceived as a more permanent state, there is a risk of various agents changing their behaviour in a way that is negative for economic development”, a propósito de vários problemas que podem ocorrer no futuro, como um aumento acentuado de preferência por circulação por parte das famílias, ao invés de depósitos.
O primeiro medo de Gregor Samsa, quando percebeu que tinha acordado no corpo de uma barata gigante, foi o de perder o emprego por chegar atrasado ao seu local de trabalho. O tema é bastante recorrente – ao longo da obra somos conduzidos por esta febre surrealista, onde as prioridades, os medos e os desejos se organizam num caos absurdo (à falta de melhor pleonasmo). Gregor preocupa-se sistematicamente com as coisas erradas. Embora ninguém saiba dizer se o estado da política monetária da Zona Euro é uma barata horrível ou um outro bicho qualquer, porventura muito mais agradável, temos de nos relembrar que o foco tem de estar nas “coisas” certas. Para isso, é essencial discutir que “coisas” são essas. O projeto europeu depende disso. E, portanto, nós dependemos disso.
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