Diariamente, somos bombardeados com grandes quantidades de informação, ficando à mercê de opiniões alheias. No entanto, para votar de forma fundamentada, temos de questionar as nossas próprias ideias.
A questão das privatizações é uma delas – já protagonizou diversas controvérsias no nosso país e na Europa, dividindo (em regra geral) o espectro de opiniões a seu respeito num clássico eixo ideológico “esquerda-direita”: o reconhecimento da importância do direito à propriedade privada tende a abonar a seu favor, enquanto o lado oposto do espectro, mais centrado no papel do Estado, tende a defender as nacionalizações. Contudo, assumir que a análise normativa das privatizações e dos seus resultados poderá garantir um resultado sólido e consensual é um raciocínio extremamente imprudente e ígneo – a discussão ideológica, pelas suas profundas raízes, tenderá a incorporar motivações de outra natureza que não a económica (na sua forma mais crua). Levanta-se a necessidade premente de olhar de forma distanciada para exemplos de sucesso ou de insucesso.
Em 1987, a JR East, linha ferroviária japonesa, passou por um processo de privatização. Passados 7 anos, em 1994, a West Midlands, linha inglesa, seguiu um percurso semelhante. Atualmente, temos dois sistemas díspares. O japonês possui preços acessíveis (que se mantiveram constantes durante 31 anos), bem como um serviço fiável e eficiente. No caso inglês, temos tarifas que registam constantes aumentos, perfazendo um sistema que consome subsídios públicos e, segundo uma sondagem da YouGov, faz com que 56% dos Ingleses queira que sistema volte a ser público. A falha colossal do sistema ferroviário britânico é usada como argumento de Jeremy Corbin, líder do partido trabalhista, que associa o sucedido à falha ideológica do “neoliberalismo”. Que conclusões retirar, então, do presente caso de estudo? Será possível generalizar uma opinião relativamente ao processo de privatização de empresas públicas? Olhemos para os dados.
Em Inglaterra, os caminhos de ferro foram separados, economicamente, do material circulante (locomotivas, carruagens, vagões, etc). A infraestrutura (i.e, o caminho), permaneceu sob a alçada do Estado Britânico, enquanto o segundo foi privatizado num sistema de franchise, que leva as empresas a competir por licenças de 10 anos para operar nos caminhos de ferro.
O que correu mal? A perda de controlo sobre vários aspetos da estação, por parte da operadora privada, torna a gestão de operações um trabalho complexo e excessivamente burocrático. É necessário que haja interligação constante entre a entidade privada e a pública, dificultando a administração da ferrovia. Para além disto, a Network Rail, empresa pública, não ganha mais se existir mais receita proveniente dos passageiros, visto que a receita para o Estado provém do contrato franchisado existente. Existe, claramente, uma falta de incentivo real para tornar o serviço mais eficiente. Por fim, o prazo do contrato é um grave entrave à saúde da ferrovia, pois, à medida que a licença de utilização chega ao fim, as empresas privadas têm cada vez menos incentivos para investirem e serem eficientes. Resta um sistema deficitário, com preços excessivamente altos.
Em contraste, no país nipónico, o processo de privatização foi muito mais abrangente – todo o sistema ferroviário foi privatizado e vendido. Hoje em dia, a JR (Japan Railways) é um grupo de 8 empresas privadas que, em contacto direto com o Estado Japonês, controla todo o transporte ferroviário do país.
O que correu bem? O facto de a entidade privada ter controlo total sobre aquilo que é a sua área de atuação permite-lhe ter mais facilidade no processo administrativo. Para além disso, há um incentivo real para oferecer um serviço eficiente e acessível. Nas linhas que não são lucrativas, devido a uma reduzida taxa de utilização (como é o caso da JR Hokkaido), os Japoneses decidiram entregar essa mesma linha ao Estado, que a controla e gere. Noutro caso particular, a rede de comboios Shinkansen (de alta velocidade) funciona, tal como a West Midlands, com períodos franchisados. O prazo instaurado é de 30 anos, dando tempo suficiente às empresas para investirem e terem retorno sobre o seu investimento.
A regulação, no caso Japonês, desempenha um papel muito importante – o Estado define um limiar máximo aos preços que podem ser praticados, colocando as empresas a operarem num ambiente de concorrência pelo controlo de custos. Para isso, o ministério do transporte tem um cuidado exacerbado em calcular margens razoáveis para as empresas, tendo em conta uma estrutura de custos apropriada para o serviço de transporte ferroviário.
Por fim, há dois outros fatores vitais para o bom funcionamento da via japonesa: o desenvolvimento imobiliário e o princípio de cooperação.
O desenvolvimento imobiliário diz respeito ao facto de a receita oriunda da ferrovia corresponder apenas a um terço da receita da JR, enquanto que o resto é obtido através de serviços para os passageiros e de investimento imobiliário. Quando um cidadão sai do comboio, depois de ter feito uma longa viagem para outra cidade, poderá querer fazer compras, almoçar num restaurante ou descansar. A JR tem isso em conta, pelo que investe imenso em hotéis e centros comerciais.
O princípio da cooperação, por sua vez, prende-se com o facto de um comboio poder passar por ferrovias de diferentes empresas. Este princípio retrata o ambiente saudável, porém competitivo, criado no Japão. Tal acontece devido a uma pressão acentuada do ministério dos transportes para acrescentar valor à ferrovia e dar poder de decisão ao cliente, reforçando, uma vez mais, a necessidade de ter um serviço eficiente, agradável e com preços competitivos.
Estes dois exemplos ilustram o quão difícil e precipitado é generalizar uma opinião sobre as privatizações – estamos a observar dois processos semelhantes (na sua base) com resultados opostos. A execução e planeamento têm, aparentemente, tanta importância (se não mais) como a discussão sobre a virtude da entrega do público ao privado. Mas é benéfico que este caso não induza conclusões imediatas.
Assim, formarmos uma opinião própria, em vez de nos deixarmos levar por ideias pré-concebidas, é de extrema relevância. Com o avanço tecnológico e o crescente nível de educação da população, estarmos atualizados trará consigo, no longo prazo, cada vez menos valor acrescentado. Qualquer motor de busca nos consegue pôr em contacto imediato com quantidades imensuráveis de informação. Esta realidade, naturalmente, traz consigo um presente envenenado – exatamente por ser fácil aceder à informação, interessamo-nos cada vez menos por ela. Cria-se a necessidade de ler artigos com títulos mais apelativos, de preferência com um vídeo pelo meio e com o mínimo de texto possível. Queremos, logo à partida, ficar a saber do que se trata o artigo, que informação temos de reter e que opinião devemos nutrir. Ficamos aborrecidos com a ideia de encontrar um problema a que não sabemos dar resposta num intervalo de tempo reduzido. É fácil, assim, sermos coordenados pela ideologia, sem questionarmos a razão de ser das coisas.
Como disse uma vez um grande professor da FEP, durante uma aula, “um verdadeiro economista, quando confrontado com uma pergunta complexa que exija uma resposta de sim ou não, responde sempre… depende”. A ideologia traz consigo limitações que dificilmente são ultrapassadas sem recorrer a dados ou estatísticas. Utilizemos análises mais fundadas para justificar as nossas preferências – com as eleições europeias à porta, temos uma excelente oportunidade para pôr em prática esta linha de raciocínio.
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