Vestindo a bata de cirurgião do metafísico e etéreo, é possível, de bisturi e agulha, retirar as mais superficiais camadas do ser humano e explorar onde nenhum Egas Moniz alguma vez chegou, o que faz de nós, humanos dotados de racionalidade e consciência, verdadeiramente nós. Com a incisão ao longo do peito começamos a verificar as vastas diferenças de uma mera análise anatómica para esta de que decorremos. Está, então, o ser humano cheio, não de órgãos, mas de histórias, de traços de personalidade que o deixam único, dos livros que leu, dos concertos que assistiu, dos artistas que o fascinaram e dos serões passados em conjunto a discutir um autor ou várias correntes filosóficas. Não apelo, de qualquer maneira, a que o leitor decida operar um colega de maneira a comprovar o que aqui foi dito, mas posso confirmar que a nossa aventura clínica culmina no facto de que somos feitos de arte em todas as suas formas e feitios.


A arte tem, no seu cerne, uma certa magia de nos fazer sentir algo, seja através das memórias que nos traz, seja pela sua subjetiva beleza ou até mesmo quando esta tem a maneira de nos deixar desconfortáveis com aquilo que acreditamos e pensamos, levando a uma mais extensa reflexão sobre valores e ideias que carregamos. Mas a verdadeira questão que se levanta é “o que é arte?”. Segundo o dicionário online Priberam, a arte é a “Produção de obras, formas ou peças orientada por um ideal estético ou com o objectivo de expressar subjectividade ou transmitir um conceito ou uma mensagem”, que embora seja um conceito abrangente concentra a arte em apenas e só aquela que é criada com tal intuito, perde-se a arte acidental das pequenas coisas. Quantos artistas criaram obras de forma a libertarem um sentimento enjaulado pelo próprio espírito sem alguma vez pensar que seria “arte”. Quantos sábios companheiros em autocarros nos dão conselhos de vida que soam a frases retiradas de autores como Pessoa que nunca, antes de falar, pensaram “direi isto porque será arte”. Então arriscamo-nos a concluir que tudo, de certa maneira, é arte, desde que nos faça sentir algo, que nos imponha no espírito um sentimento, uma ideia, um conflito. A arte é tudo aquilo que quisermos que seja e é ao mesmo tempo só arte.


Regressando à nossa aula de anatomia da alma com este nosso conceito cimentado de arte, começamos a compreender o porquê desta ser uma parte fundamental do ser humano, a arte permite-nos um nível de expressão que é crucial ao nosso ser. Permite-nos libertar certos sentimentos que de outras formas não seríamos capazes, deixa-nos chamar à atenção certos aspetos da vida em sociedade que nos transtornam, leva-nos à partilha de momentos que nos transformaram a nós ou à maneira como pensamos. A arte torna-se uma espécie de linguagem universal que nos permite exteriorizar até o mais profundo e inexplicável sentimento e que, mesmo que não tenha exatamente a mesma força ou interpretação, acaba por se expandir por várias mentes que o apropriaram como seu, irão moldá-lo ao seu ser e torná-lo parte de si. Mas esta nossa nova área clínica não foge aos seus “negacionistas”, aqueles que dizem que a arte não os fascina, não importa, é irrelevante no seu todo e é um método de loucos conversarem com outros loucos através de formas geométricas ou notas musicais. A estes escapa certamente a nossa análise ampla da arte, não ouviram lá ao pé do Velho do Restelo que também grande parte do que admiram é arte, mesmo que não desejam que seja. Impõe-se a questão de que se a arte, certamente como uma miragem, só se apresenta àquele que a quer ver. Para estes nossos inócuos negacionistas a arte limita-se ao seu sentido mais estrito, são quadros na parede e esculturas na praça, mas não inquietemos tais almas que decidiram esconder-se no conforto de não pensar.


Antes de arrumar o bisturi e suturar o paciente, deixo ao leitor o segredo alquímico da Pedra Filosofal e elixir da vida eterna, a própria arte que carrega no coração. O poder escondido deste foco do nosso caso de estudo é exatamente esse, permite a eternização de nós próprios não só pelas nossas histórias, mas também pela arte que nos marcou. A arte com a qual criamos uma quase intimidade. A arte discutida num grupo de amigos. A peça partilhada com um amor. Um livro apresentado por uma avó que adorava bibliotecas. Uma música que marcou viagens em família. Todos estes ingredientes levam a que o espírito humano sobreviva a esse fatídico destino, mantém-nos quase que a flutuar num limbo etéreo em que a nossa pessoa se esconde por detrás de todas estas pequenas marcas que deixou no mundo dos vivos, mesmo que não tenham todas sido sua criação. A sua paixão por esta nossa criatura, a arte, entreligou a sua própria alma com a dela, emaranhou os fios de uma existência, frágil e suscetível à idade, com a outra, que por ser muitas vezes incorpórea ou resistente à passagem dos tempos, perdura quase como memorial daquele que em corpo já não podemos ter.


Deixámos, então, as dúvidas para o final da sessão, grande parte dos alunos que ainda não saíram com os nossos negacionistas é natural que as tenham, porque nem eu tenho certezas do que vimos dentro do espírito humano. Mas não só de certezas se faz, certamente, o mundo, muito menos a arte e todos os seus aspetos delicados e controversos que dissecámos hoje. Mas espero que o leitor se sinta confortável com a dúvida, que a leve para casa e a analise cuidadosamente, talvez também encontre a beleza que é não saber o que é a arte, mas amá-la na mesma. Com esse carinho guarde sempre este nosso pilar do espírito humano, germine-o com os seus próprios versos, esculturas, momentos, danças, tudo aquilo que acreditar que a ele pertence.