Como foi o processo de reactivação do Cineclube em 2010?

O cineclube é essencialmente uma associação de espetadores, o centro essencial é a ideia de que há filmes que não estão disponíveis e que gostávamos de ver em condições de cinema. O que aconteceu em 2010 assentou essencialmente nessa sensação, enquanto espetador, de que a oferta na cidade era pequena e havia uma instituição à qual, uns mais outros menos, estávamos ligados. Tinha falado do estabelecimento do cineclube numa altura em que a oferta de cinema no Porto era muito reduzida, mas para quem está de fora, ao longo dos últimos anos, tem sido notória a oferta cada vez maior.

Desde 2010 nota-se o aparecimento de mais pessoas a programar. É uma coisa extraordinária, nós como associação de espectadores queremos ver cinema, não temos capacidade de mostrar os filmes todos, é bom que haja mais pessoas a mostrar filmes. Hoje basta ver a agenda do cinema independente da CM Porto, há uma quantidade e uma diversidade de oferta de cinema que não existia, e isto levanta duas questões: o mercado de distribuição português, (os filmes disponíveis para programar) é relativamente bom no que diz respeito ao cinema contemporâneo, mas é muito frágil no que diz respeito ao cinema clássico e ao cinema até aos anos 90. Isto cria a questão de andar a tentar não escolher filmes já programados.

Há dois fatores que determinam as alterações na programação. Primeiro, a aprendizagem que vamos fazendo. Entre conhecer cinema e programar cinema vai uma grande margem. Isto por um lado. Por outro, à medida que vão aparecendo entidades a programar nós sentimos a necessidade de nos definir com mais especificidade.

A nível do cinema português, que continua a ser um marco central na programção, por onde é que o vê a ir num futuro próximo?

Agora temos, tanto quanto consigo perceber, duas coisas muito boas: bons filmes, que já existiam antes, sempre existiram bons filmes portugueses, e temos bons filmes de várias gerações acumulados uns sobre os outros, desde o João Botelho à Leonor Teles. Temos um outro fator fundamental que é a capacidade de algumas distribuidoras e produtoras colocarem o cinema português no mercado internacional, ou seja, hoje já não é uma coisa estranha para um realizador com uma primeira obra pensar que o filme vai passar em Cannes ou Berlim.

Isto não resulta necessariamente da qualidade dos filmes, sempre houve primeiras obras muito boas, mas as distribuidoras e produtoras sabem fazer este trabalho de uma forma diferente. Hoje já há mais gente a fazer esse trabalho. Isto consegue conciliar dois aspetos, a capacidade de fazer bons filmes com a capacidade de os distribuir e de o tornar visível.

Qual é o grande papel do cinema, qual é o objectivo de fazer e de fazer ver? Quem diz cinema diz qualquer tipo de arte.

Eu acho que a questão do cinema não se distingue em nenhum momento de qualquer outra forma de expressão artística. Eventualmente pode ser que de alguma forma o espetador se sinta mais familiarizado com o mecanismo do cinema do que com a arte contemporânea.

Mas em geral é difícil definir estas coisas, pelo menos em pouco tempo, mas o cinema, apesar de ser um trabalho coletivo, é, em última instância, sempre uma expressão do indivíduo na sua relação consigo próprio. Seja essa uma relação íntima ou social, o que quer dizer que é um olhar sobre o mundo naquele momento.

Ou sobre um mundo naquele momento. E o que acontece é que nós sentimos por alguma razão, uma estranha familiaridade com o olhar do outro quando ele é verdadeiramente honesto e sincero, ou seja quando o outro se exprime honestamente está-me a exprimir a mim também. Está a articular cinematograficamente coisas que eu às vezes não consigo articular ou exteriorizar, e às vezes também não consigo pensar ou sentir até de uma forma muito articulada.

E francamente às vezes o sentimento é mais complexo do que o próprio pensamento. Acho que isto é extensível a todas as expressões artísticas. E na verdade até diria mais, aquela sensação de identificação e transcendência perante a obra de arte é a mesma que às vezes temos perante a Natureza. Claro que depois podemos falar num cinema mais funcional, de intervenção social, no espaço público, mas mesmo esse é enraizado nisto, no reconhecimento nesse cinema de alguns ideais ou algumas ideias sociais nas quais eu me revejo. Permite-me esta identificação com o outro.

Essa era a questão seguinte, se a arte deve ser útil.

Acho que pode ser instrumentalizável, não sei se ela pode ser útil. Não sei se os sentimentos são muito úteis, o espetador tem uma relação emocional com o cinema antes de ter uma relação intelectual, e não sei se se pode falar muito da utilidade das sensações.

Agora elas têm uma função, uma consequência, pelo menos no indivíduo, e nessa medida não sei se os poderes públicos podem entender esta relação emocional do indivíduo com o objeto cinematográfico. Podem criar condições para que seja produzido, se multiplique, e aí sim deixar que o espetador se deixe conectar ou não, se não temos o risco de haver um dirigismo sobre o que é válido e não é válido. Por vezes têm essa consequência de definir o que é e não é arte, o que é e não é cinema.

Falou nessa identificação imediata não racional mas mais instintiva, mais emocional primeiro. Para nós é curiosa esta questão, por estarmos numa área tão destacada dessa realidade, tão alheia a essa identificação emocional e que prima só pela razão. Como é que pode haver esta interdependência entre a economia e a arte quando estão nos dois extremos?

A produção de um filme é uma máquina complexa. Uma das razões pelas quais gosto de ser espetador é não ter que os produzir ou realizar. O processo é muito condicionado por questões financeiras, técnicas, físicas. E de trabalho de grupo e tudo o mais. Há uma racionalização no processo de produção do cinema.

O espetador não tem de montar a máquina, só tem que se relacionar com ela. Não tenho a certeza se a economia, as finanças, essas áreas ditas mais racionais são de facto tão racionais quanto isso, ou seja, deveríamos estranhar o facto de haver tantos licenciados em direito a escrever literatura, tantos físicos e matemáticos com ligações tão fortes com a arte. Devíamos olhar para a física, especialmente para a matemática, e pensar se aquilo é de facto tão diferente da escrita de poesia.

De facto há uma representação simbólica da realidade numa inequação, ou numa equação complexa, há uma representação tão simbólica como na poesia, tão encriptada. O que é mais estranho para um indivíduo, ver uma peça do Silvestre Pestana ou ver as leis da estática? De facto não deixam de estar ambos com esta ligação forte à realidade, é uma questão de linguagem às vezes, embora de facto possa reconhecer que a física é enquanto ciência mais útil…não sei se é mais útil, a física provavelmente resulta bem na sequência de um bom poema. De um bom sonho.

E é nesses sonhos que às vezes se encontra a necessidade urgente de organizar o sonho e depois o transformar naquelas situações complexas e nas teorias. O Nuit et Brouillard e uma lei da física, não sei o que é mais racional. Nunca conseguiremos responder. Não, a verdade é que há coisas que não precisamos de entender.

Porquê?

Porque nos relacionamos com o mundo…não sei se o indivíduo é um ser tão racional quanto isso, nem sei se a racionalidade (aí precisava de me apetrechar de um conhecimento histórico mais consistente), não sei se a racionalidade não é uma coisa tão perene na história humana como nós sugerimos. Não sei se não é uma questão mais circunstancial das últimas centenas de anos. Às vezes dou por mim a pensar que a base da nossa relação com o mundo é muito mais emocional que racional.

Como é que conseguimos distinguir isso?

Não sei se precisamos, exceto quando precisamos de operacionalizar alguma coisa. Acho que no que diz respeito às relações sociais tem a ver também com o contexto social geral em que cresci, alguns princípios base de justiça, igualdade, respeito, podem ser alcançados de formas muito distintas. Não acho que uma pessoa mais emocional seja menos respeitosa do que o outro, ou vice-versa.