Opinião de Ricardo Biscaia - Professor Associado da FEP
Também incluído no FEPIANO 52, publicado em Outubro de 2024
Frequentar o ensino superior é um privilégio. Tal como em qualquer outra experiência imersiva, ela muda-nos para sempre e passamos a ver o mundo de um modo diferente, ainda que muitas vezes subconscientemente. Tirar uma licenciatura é um exemplo muito concreto disso, e conseguimos às vezes atribuir uma característica de uma pessoa ao seu percurso académico. Talvez onde isso se veja melhor seja nas áreas do Desporto, das Artes, da Sociologia, do Direito ou da Física. A Economia não é exceção.
O caso da Economia é especialmente relevante. Temos um dom e escrevo-o do alto do meu viés de economista. Interessamo-nos em perceber como é que o mundo funciona. Moldamo-nos de uma forma que nos faz tomar decisões mais ponderadas, usando conceitos que adquirimos subconscientemente mas que estão sempre connosco e que nos dão uma vantagem. Falo de rendimentos marginais decrescentes, falo no custo de oportunidade, de pensar no marginal em vez do médio na tomada de decisão, do efeito do risco e na incerteza na mesma. E ainda só estou na microeconomia. Das muitas interações que já tive, fico fascinado por perceber o quanto as minhas conversas mudam só por ter presente estes conceitos quando se discutem opções de vida. E elas estão sempre aí, no consumo e poupança, nas relações, nas opções de carreira, nos hobbies. Estão em todo o lado.
“Apenas 55% dos Portugueses responderam corretamente à questão”
No estudo “Public Understanding of Economics and Economics Statistics”, do centro de investigação “Economic Statistics Centre of Excellence” (ESCoE) do Reino Unido, procurou-se perceber (de um ponto de vista mais macroeconómico, diria) como é que a população do Reino Unido compreende assuntos e indicadores económicos. O estudo revelou que a população tinha dificuldade em avaliar indicadores económicos, não conseguindo interpretar os valores diretamente. Tipicamente eram usados atalhos para perceber se o valor mostrado era “alto”, “normal”, ou “baixo”, normalmente por comparação temporal ou com outros países. A confusão mais visível era na diferença entre níveis, taxas e variações das taxas, sendo o caso mais paradigmático a diferença entre níveis de preços, taxas de inflação e variações na taxa de inflação. Um resultado semelhante fez notícia em Portugal, em Julho, no contexto do estudo da comissão europeia “Medição do nível de literacia financeira na UE”. Aí, apenas 55% dos Portugueses responderam corretamente à questão sobre se, no contexto da não-variação da taxa de inflação fixada em 2%, o poder de compra de 1000 euros hoje ou amanhã era maior, igual ou inferior. E como sabemos, este é um conceito relativamente simples.
Sem surpresas, o estudo do Reino Unido concluiu também que são os elementos do sexo masculino, com mais idade, de grupos socioeconómicos mais favorecidos e com níveis de ensino superior que apresentavam mais conhecimento, confiança, e interesse em variáveis de natureza económica. Se nos assustamos com diferenças populacionais nos salários e noutras variáveis associadas ao mercado de trabalho, temos também de nos assustar com diferenças de conhecimento e informação entre os diferentes agentes económicos – que terão influência em todas as suas decisões!
O exemplo concreto que gostaria de explorar é o do IRS. Para mim é um prazer, no contexto das aulas de Economia e Finanças Públicas da Licenciatura em Economia, acompanhar a curiosidade dos estudantes enquanto vemos como é que uma parte do principal imposto sobre o rendimento funciona. A lógica dos escalões em vez das classes, o conceito de progressividade do imposto aplicado ao IRS e o sistema de deduções específicas e deduções à coleta que o imposto apresenta são aspetos que os estudantes desconhecem à priori. É também importante a questão da existência de mecanismos de retenção na fonte e da sua necessidade. Este ano, os estudantes voltaram a mencionar terem um prazer especial por esta matéria e deixo sempre a nota de que poderão ser úteis imediatamente para a sua família, normalmente desinformada sobre o assunto.
Como pudemos deixar que o nosso imposto mais importante fosse de leitura impossível para não-economistas? E ele de facto assim o é. Por trás da sua complexidade, está a necessidade de acautelar à situação específica de cada contribuinte. Por outro lado, isso gera um imposto que é impossível de comunicar, que gera a ilusão de que as pessoas pagam mais do que o que verdadeiramente pagam – o que é um desastre do ponto de vista da técnica tributária – e que gera iniquidades relevantes entre quem percebe e não percebe o imposto na exploração do seu sistema de deduções. Imagino um resultado do barómetro da Comissão, na eventualidade de se perguntar sobre a compreensão sobre o nosso imposto de natureza geral sobre o rendimento. Já no estudo do Reino Unido, os inquiridos identificaram que a Economia era um assunto difícil de abordar para o habitante comum, já que esta era comunicada de uma forma inacessível. Será que caímos na crítica habitual que se faz ao Direito? Será que criamos uma linguagem que só nós é que conseguimos falar, tal como no caso do IRS?
“A sociedade crê que não acertamos nas previsões económicas,que só queremos saber de dinheiro, lucros e dividendos”
Como podemos passar o que sabemos à nossa família e aos nossos círculos relacionais para os ajudarmos? Infelizmente, a nossa tarefa está dificultada. Em primeiro lugar, porque tenho a sensação, do meu viés, que a sociedade não gosta de nós. A sociedade crê que não acertamos nas previsões económicas, que só queremos saber de dinheiro, lucros e dividendos, que somos egoístas, e, ao mesmo tempo, mantém um tabu importante em relação a conversas financeiras. Se existe um estudo científico que valide esta intuição, não o encontrei. Em segundo lugar, porque tal como os treinadores de futebol, toda a gente acha que percebe um pouco de economia e é difícil mostrarmos o que sabemos a mais. Como discutir os efeitos negativos de uma subida do salário mínimo? Como explicar que um investimento diversificado de longo-prazo não é um risco, mas uma certeza? Como provar uma conta a quem não percebe de matemática e tem medo do escuro? E como podemos explicar quando, por um motivo não associado aos nossos conselhos e conversas, as coisas correram mal?
Em terceiro lugar, embrulhamo-nos na política. Lado a lado com o Direito, somos nós que assumimos posições de relevo na vida política. Por isso, a nossa dificuldade em comunicar ideias complexas a um público que não as conhece é facilmente confundida com a retórica de alguém que pretende obter benefícios próprios – num claro problema de seleção adversa. Isto impede-nos de identificarmos os bons economistas na política e de impedirmos os maus economistas de lá chegarem, o que gera desconfiança na nossa palavra.
Por isso, temos um dom. Não precisamos de ter medo do nosso viés. Temos mesmo um dom. Podemos guardá-lo para nós, beneficiar dele. Mas a sociedade precisa de nós e não o sabe. Tendo um diploma na nossa área, desfrutem, como eu, das mudanças da forma de pensar no nosso subconsciente de que se vão apercebendo, mas usem-nas para se lembrarem que temos de passar este dom – o que quer que este seja – ao resto da sociedade.
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