Conduzida por Francisca Duque e João Tavares
Com o apoio de Stanislav Barnash
Também incluída no FEPIANO 39, publicado em Dezembro de 2019
Durante a FEP Welcome Fest, o evento de receção dos novos alunos da faculdade, estivemos à conversa com Rui Moreira, Presidente da Câmara Municipal do Porto. Ensino, descentralização, ambiente e mobilidade foram os tópicos que estiveram no epicentro da discussão. Num diálogo informal, com várias intervenções do público, Rui Moreira pôde também partilhar um pouco da sua experiência pessoal, os momentos de maior dificuldade e as suas maiores vitórias desde que assumiu a presidência do município.
Vivemos numa cidade académica, reconhecida internacionalmente pelo ensino de excelência. O que considera que a cidade do Porto tem para oferecer aos estudantes?
Hoje, internacionalmente, a marca mais importante da cidade do Porto, e talvez não a mais visível, é a academia, a sua universidade. Porquê? Porque, quando olhamos para o que são hoje os nomes mais importantes e que mais refletem aquilo que é o espírito da cidade – Manuel Sobrinho Simões, Eduardo Souto de Moura, Álvaro Siza Vieira –, nós encontramos muitas pessoas que nos inspiram e que, de alguma maneira, fizeram a sua vida sempre muito baseados naquilo que é a academia. Mas a academia é muito mais do que isso: é também a oportunidade que temos para transformar uma cidade. Quando eu tinha a vossa idade, por altura do 25 de abril, pouquíssimas pessoas tinham acesso ao Ensino Superior – era apenas para alguns, que tinham a sorte de ter famílias que pudessem custear o seu ensino. Vivíamos numa sociedade em que, durante muitas décadas, o conhecimento era “olhado de lado”, e isso marcou muito os anos seguintes. Desde então, tem sido feito um grande esforço, que é muito patente – hoje, há muito mais candidaturas do que vagas, o que não acontecia quando esta faculdade abriu. Naquela altura, praticamente apenas vinha para cá quem conseguia cá chegar. Agora, é diferente e esta mudança transmite-se à cidade. Atualmente, a presença dos estudantes na cidade faz-se nos mais variados aspetos: faz-se aqui na academia, faz-se nas oportunidades, faz-se nas empresas que hoje procuram o Porto porque nós temos uma mão-de-obra qualificada, faz-se na oferta cultural (que é uma questão que me interessa particularmente) e, no fundo, faz-se na forma e nos usos da cidade. Esta evolução é um círculo virtuoso, porque a própria cidade e quem está à frente dela, hoje, têm preocupações diferentes. Há 30 ou 40 anos, a Universidade do Porto era vista como algo “à parte” da cidade – a cidade aceitava os estudantes, mas não os incorporava. Hoje, eu acho que os incorpora e, logicamente, isso obriga a grandes pressões. Até porque, não sei se têm consciência disto, mas a cidade do Porto tem cerca de 30 mil estudantes, e isso não é refletido nos números da demografia.
A marca mais importante da cidade do Porto, e talvez não a mais visível, é a academia
A cidade do Porto tem 235 ou 240 mil pessoas residentes, mas tem muito mais utentes. Durante o dia, frequentarão a cidade cerca de 700 mil pessoas, quando só cá pernoitam 235 a 240 mil habitantes, mais uns 20 mil estudantes. E isto obriga, de facto, a pensarmos a cidade e a olharmo-nos uns aos outros de uma forma completamente diferente.
Apesar de Portugal ter um ensino muito reconhecido a nível europeu, verificamos que muitos estudantes portugueses, sobretudo os que alcançam maiores médias, decidem emigrar após o término do seu percurso académico, procurando oportunidades de fixação no estrangeiro. O que acha que poderá ser feito com vista a atrair jovens portugueses qualificados para o mercado de trabalho nacional?
Na minha geração, nós também tivemos de migrar – uns para estudar, outros para trabalhar. A mim, aconteceu o contrário: eu fui estudar para o estrangeiro. Quando cá cheguei, em 1978, não arranjei emprego, e tive de migrar novamente. Vivi na Noruega, depois na Dinamarca e na Alemanha. É evidente que migrar durante algum tempo não é um grande drama – alguns de vocês vão fazer isso, provavelmente aproveitando o programa Erasmus. O que é preocupante é quando nos apercebemos de que isso resulta, não de uma opção nossa, mas da falta de oportunidades. Aquilo que nós temos tentado, nos últimos tempos (e aliás, quem coordena esse programa na Câmara Municipal do Porto é aqui professor, o Prof. Ricardo Valente), é atrair competências e empresas, através da InvestPorto. Tentamos explicar às empresas as vantagens de instalar aqui um polo em vez de levarem as nossas pessoas para outros países – aqui, as nossas pessoas são mais felizes; com um salário igual, vivem melhor; para as empresas, a renda é melhor; a cidade é confortável; … Ou seja, é uma tentativa de inversão do paradigma. Nos anos 60 e 70, Portugal tentava atrair a indústria que vinha à procura da mão-de-obra barata. Hoje, aquilo que nós temos de procurar é dizer que temos recursos, conhecimento, universidades, startups, … Porque não invertemos o paradigma e não atraímos essas competências? Mas este é um trabalho de “pesca à linha”: uma cidade como o Porto não consegue “pescar à rede”. Países como a Irlanda tem muito menos dificuldade, porque as suas condições de fiscalidade são tão mais competitivas para as empresas, que um presidente de câmara de uma cidade irlandesa pode ficar de braços cruzados à espera que o governo lhe venha ter à porta, porque é um paraíso fiscal. Aqui, o nosso paraíso tem de ser um paraíso amplo, ou seja, temos de explicar que a academia é boa, que as pessoas têm competências, que a cidade é confortável e interessante, e que as nossas pessoas (que eles estão a tentar atrair) talvez sejam mais felizes e, portanto, mais produtivas aqui. Mas isto é um trabalho muito longo. Portanto, durante algum tempo, pelo menos nalgumas áreas e especialidades, as pessoas vão continuar a migrar. E, quando migram, há uma perda grande, porque a sociedade (não é o Estado, é a sociedade) investe muito em educação. Cada vez que um recurso humano preparado por nós vai trabalhar para fora e não regressa, objetivamente, é uma perda. A minha filha é mais ou menos da vossa geração, um pouco mais velha.
Temos de explicar que a academia é boa, que as pessoas têm competências, que a cidade é confortável e interessante
Recentemente, licenciou-se em Economia, veio viver para Portugal e instalou-se aqui no Porto. Ao fim de um ano, teve de ir trabalhar para Lisboa, porque foi onde lhe deram melhores condições de trabalho. Ou seja, muitas vezes, nós pensamos no estrangeiro, mas também não temos sido capazes de criar este equilíbrio a nível nacional. Desde logo, por uma razão: o Estado, que é o maior empregador em Portugal, concentra o emprego qualificado basicamente em Lisboa. O facto de a capacitação das pessoas permitir ao Estado Central ter centros de competência espalhados pelo país também tem a ver com a capacidade de fixação. Porque, de outra maneira, andamo-nos a queixar dos estrangeiros, mas nós estamos a dar o mau exemplo na forma como nos organizamos. Mas isso é uma coisa que o vosso diretor, o Prof. José Varejão, tem vindo a trabalhar comigo. Temos um estudo para apresentar que explora a forma como, se vocês quiserem, Portugal é um pouco como uma mesa de snooker inclinada só para um buraco. Nós acabamos todos por cair naquele buraco, e isso não é a melhor forma de gerirmos o país. Nós colocamos muito o ónus no estrangeiro, nos nossos vizinhos, mas eu acho que há um grande problema em Portugal relativamente à concentração. Um estudo da Associação Comercial do Porto – que é uma casa importante, da qual eu também fui presidente, e que foi responsável pela fundação desta faculdade – demonstra o seguinte: hoje, 62% do valor das aquisições do Estado Português são feitas a empresas localizadas na Área Metropolitana de Lisboa. Isto representa muito mais este desequilíbrio do que qualquer outra coisa, e esta presença obsessiva do Estado numa cidade tem um enorme impacto na economia, e demonstra porque é que, às vezes, é difícil nós fixarmos competências, também no setor privado.
Precisamente nesse ponto, e sendo a desigualdade na distribuição das oportunidades uma grande preocupação dos estudantes na atualidade, considera que tem havido progressos ou retrocessos na questão da descentralização? Numa ótica de educação, emprego e investimento, que medidas têm sido tomadas de forma a quebrar este velho paradigma?
Sobre a matéria dos desequilíbrios, aqui no Porto, nós temos de ter algum cuidado. Porque, se é verdade que há um desequilíbrio no país, em que claramente há uma hiperconcentração numa única cidade ou área metropolitana, ainda assim, somos claramente privilegiados relativamente a territórios periféricos ou até ao interior. Portanto, temos de ter consciência de que, para qualquer esforço de descentralização ou de desconcentração, nós também vamos ter de ser capazes de dar o exemplo, porque o Porto também se tornou um polo magnético muito forte, que atrai muitas competências que, anteriormente, talvez estivessem mais bem estruturadas a nível da região e da área metropolitana. Portanto, temos de ter alguma prudência, mas há áreas de descentralização que são absolutamente óbvias. Algumas delas têm sido conseguidas a ferros nos últimos tempos, mas outras não têm sido conseguidas. Eu acho que uma das nossas maiores conquistas nestes anos em termos de descentralização teve a ver com o transporte público – os municípios das áreas metropolitanas passaram a ter competências específicas na área do transporte público, um setor com uma relevância que, hoje, nós próprios ainda não estimamos. Seguramente, dentro de 10 anos, vai haver uma redução significativa do transporte individual e uma maior aposta no transporte público. Para tal, vai ser preciso que o transporte público seja mais competitivo e sustentável. Para ser mais competitivo, tem de ser mais rápido e, acima de tudo, tem de ter uma rede mais estreita. Nessa matéria, parece-me que se conseguiram dar passos importantes relativamente à descentralização, mas há muitas outras áreas em que a descentralização, pura e simplesmente, não ocorreu.
Eu vejo-me confrontado diariamente com fenómenos de centralismo, alguns dos quais eu diria que são quase irónicos. Por exemplo, em 2007, o governo português de então resolveu que cada município devia ter um plano para as suas florestas, o que parece ser uma boa ideia. E escreveu a todos os municípios a pedir para que cada um apresentasse um plano para as suas florestas. Houve três municípios que não apresentaram – Porto, Amadora e São João da Madeira. Esses três municípios escreveram ao Ministério da Agricultura a dizer que não tinham floresta. Aliás, os planos diretores municipais demonstram que não há floresta. Há 6 meses, começamos a combater a vespa asiática aqui no Porto. Aliás, é na Área Metropolitana do Porto que há mais vespa asiática. Resolvemos, então, fazer um enorme esforço para a combater: utilizamos um conjunto de pessoas especialistas na matéria e escrevemos ao Ministério da Agricultura a perguntar se havia algum plano nacional e se estavam na disponibilidade de contribuir para a despesa que temos tido para a combater. E o Ministério escreveu dizendo que o Município do Porto, como não tem floresta, não pode ter ajuda no combate à vespa asiática. Achei estranho, porque a vespa asiática não aparece só nas florestas. Mas, passado uns dias, recebi do Ministério da Administração Interna uma carta a dizer que, na medida em que o Município do Porto não tinha apresentado um programa para o planeamento da sua floresta, seria multado em 450 mil euros. Eu escrevi novamente, dizendo que, conforme fica demonstrado pela vespa, nós não temos floresta, pelo que não podemos apresentar um plano para a tratar. Achei que o assunto estava mais ou menos resolvido, aliás encontrei o Sr. Ministro da Administração Interna aqui no Porto e disse-lhe isso mesmo. E ele respondeu “Pois, Sr. Doutor, tem razão: de facto, o Porto não tem floresta! Não se preocupe, que o assunto estará tratado!”. Passado alguns dias, uma Direção Regional das Autarquias Locais notificou-nos, mais uma vez, que o Município do Porto iria ser multado. Entrei em contacto com o presidente da câmara de S. João da Madeira, que conheço, e perguntei como eles estavam, e ele respondeu-me “Estou preparado para fechar a câmara! Para o Porto, 450 mil é mais ou menos suportável, mas eu fico sem dinheiro para pagar os ordenados!”. Isto tudo acabou por ser resolvido, mas demorou cerca de quatro meses, com incessantes cartas para autoridades centrais que não entendem, porque não conhecem suficientemente bem o Porto nem S. João da Madeira. Esta obsessão centralista em Portugal não é a nível do Sr. Presidente da República (que anda por aí todos os dias e conhece o país todo), nem a nível do Sr. Primeiro Ministro ou do Líder da Oposição, mas é a nível dos serviços centrais. Porquê? Porque é assim que o país está organizado. Portanto, eu acho que precisamos da descentralização também para isso, para demonstrarmos que, quando as decisões forem tomadas mais perto do cidadão, elas provavelmente serão mais bem tomadas, independentemente do decisor. E vou acabar apenas com outro exemplo que todos irão compreender, que é o poder percecionado.
O Estado, que é o maior empregador em Portugal, concentra o emprego qualificado basicamente em Lisboa
Quando encontro cidadãos na rua, eles imensas vezes vêem-me falar de problemas que lhes afetam, e que eles acham que a competência para os resolver é do presidente da câmara. Vou dar um exemplo: a questão da segurança. Vocês sabem que, aqui no campus, há problemas de segurança e, de vez em quando, a Federação Académica do Porto fala comigo para resolver alguns problemas. Por lei, o presidente da câmara não tem nenhuma competência em termos de proteção e segurança dos cidadãos. Eu não posso dar ordem a um Polícia para trazer o carro da Polícia para aqui. Tenho a mesma capacidade, o mesmo poder, que qualquer uma das minhas amigas e dos meus amigos. Se calhar, não está mal. A verdade é que a perceção que o cidadão tem é que esta competência cabe ao presidente da câmara, e isto quer dizer duas coisas: em primeiro lugar, que há um problema na forma como o Estado Central chega aos cidadãos e, em segundo lugar, que há a perceção do cidadão de que há competências que, de facto, deveriam estar mais próximas dele. E, se é assim, não há nenhuma razão lógica para não reestruturarmos este equilíbrio, ou seja, para que algumas coisas não sejam passadas por nós. Se o presidente da câmara do Porto se queixa disto, imaginem o que é o presidente da câmara de Vinhais, onde subitamente a presença do Estado desapareceu – havia um tribunal, um centro de saúde, um notário, …; no fundo, um conjunto de competências do Estado que não só assegurava que ali viviam pessoas, porque viviam fazendo esse trabalho, mas que era, sobretudo, a presença do Estado para as pessoas que lá viviam. A presença do Estado é muito importante, e não é apenas quando há incêndios. E, hoje, esta obsessão pelo centralismo fez com que, subitamente, estas competências desaparecessem. Perguntamos se conseguimos poupar alguma coisa com isto, porque a sinergia, em princípio, deveria representar um ganho ou um benefício económico.
Não me parece, porque a verdade é que o Estado continua a “comer” cada vez mais recursos e não parece ao cidadão comum que o Estado hoje seja mais eficiente. Quando eu comparo, hoje, a perceção que vocês normalmente têm do Estado com a perceção que o meu filho mais velho, agora com 36 anos, tinha quando era da vossa idade, vocês provavelmente desconfiam mais do Estado do que ele desconfiava. O que quer dizer que algo se está a perder. É um bocadinho aquela questão do lost in translation: alguma coisa está a ser perdida, pela nossa incapacidade de fazermos esta reforma.
Assumiu a presidência da Câmara Municipal do Porto numa altura de grande transformação da cidade. Referimo-nos ao crescimento massivo do turismo, à expansão do mercado imobiliário e ao aumento do nível de investimento. Neste sentido, quais foram as principais conquistas e as principais dificuldades que sentiu ao longo dos seus anos de presidência?
As cidades e as sociedades estão a mudar a uma velocidade vertiginosa. Há seis anos, durante a minha campanha pré-eleitoral, o Jornal de Notícias, numa das suas capas, dizia que 50% dos edifícios do centro histórico do Porto estavam abandonados e 25% em ruínas ou em muito mau estado. Portanto, vejam bem qual era a grande preocupação da cidade! Isto não foi há sessenta anos atrás, foi há seis. Nessa altura, aquilo que nós queríamos era ganhar prémios no turismo: “Porto Best Destination”, eu até andei com uma t-shirt, para que as pessoas votassem em nós e para que fôssemos conhecidos. Há seis anos atrás, a reclamação que as pessoas faziam na baixa era que passar, por exemplo, na Rua das Flores à noite era perigoso, porque a rua estava vazia. Isto era a realidade da cidade. Há sete anos atrás, era eu presidente da Sociedade de Reabilitação Urbana, e começamos a fazer umas obras no Morro da Sé – sítio onde, em breve, vamos ter uma residência de estudantes. Chegamos ao pé de algumas das pessoas que viviam naquelas casas e dissemos que, para que nós pudéssemos fazer obras nas casas, teriam de sair. E perguntamos às pessoas o que é que elas preferiam, se um realojamento temporário ou um realojamento permanente. 80% das famílias disseram que queriam um realojamento permanente. E porquê? Porque não queriam lá viver. Agora vejam que, em seis anos, isto mudou radicalmente. Hoje, qualquer um de vocês não se importa de encontrar uma residência de estudantes num apartamento na Sé. Os instrumentos que nós temos para adequar a nossa estratégia à mudança são bastante mais lentos do que a mudança. Hoje, o maior problema que nós temos no Porto é o problema da habitação. Porquê? Porque aquilo que aconteceu foi que, também há 6 ou 7 anos atrás, havia vários estudos em Portugal que diziam que havia 300 a 400 mil casas vazias. Provavelmente, continuam vazias, porque eu não acredito que tenha havido um aumento na procura que tenha ocupado essas 300 a 400 mil casas. O problema é que algumas delas estão situadas em locais onde as pessoas não querem viver ou onde as pessoas não arranjam emprego. Este desequilíbrio, esta hiperconcentração, provoca naturalmente uma alteração profunda naquilo que são as condições de vida. Eu vejo pelo meu filho David – ele foi viver para Lisboa e aconteceu-lhe a mesma coisa: foi receber o dobro do ordenado que recebia no Porto; um bom ordenado, mas que, mesmo assim, não era suficiente para pagar a renda. Portanto, teve de dividir casa com um amigo para conseguir “vencer a renda”. Se imaginássemos aquilo que acontecia há seis anos atrás, provavelmente não lhe teriam oferecido um ordenado tão bom, mas, por outro lado, a casa teria sido bem mais barata, ao ponto de ele talvez conseguir “vencer a renda” sozinho. Isto vai ser particularmente complicado para vocês se não houver políticas publicas ativas. O aumento do rendimento disponível das famílias, apesar de estar a crescer, não está a aumentar à mesma velocidade que o custo da habitação. Enquanto, na minha geração, considerávamos razoável pagar pela habitação cerca de 25% a 30% do nosso salário líquido, hoje há pessoas na cidade do Porto que não encontram habitação por 50% do seu salário. E isto vai obrigar, de facto, a uma nova fileira de políticas, umas delas municipais, mas também políticas públicas. E não vai ser o setor privado a resolver tudo – não resolve. E porque é que isto aconteceu? Porque o Estado abandonou as políticas da habitação. Quando eu vim para Portugal, no princípio dos anos 80, a nossa geração, que na altura era um pouco mais velha que vocês, era incentivada a comprar habitação com juro bonificado. Tivemos uma geração e meia de pessoas que compraram casa recorrendo ao juro bonificado. Chegavam ao banco, escolhiam uma casa, pediam juro bonificado e o Estado bonificava o juro, ou seja, subsidiava a compra de habitação própria. Quanto aos mais pobres, o Estado tinha uma coisa chamada “Plano de Erradicação das Barracas”, em que apostava cerca de 50% a 60% a fundo perdido na construção de habitação social. Depois, a partir de 2008 e 2009, devido à crise e a esta ideia de que havia casas a mais, de que havia outras necessidades, o Estado deixou de investir.
Quando as decisões forem tomadas mais perto do cidadão, elas provavelmente serão mais tomadas, independentemente do decisor
Qual é o problema: agora, é muito difícil voltar a investir, porque existe um enorme desequilíbrio entre a nova procura e a oferta. E essa é a minha maior preocupação: como é que consigo lançar os recursos municipais, conjuntamente com políticas públicas, quando os recursos disponíveis não são grandes, e quando o Estado Central pensa que isso se resolve através de benefícios fiscais. Eu peço desculpa, mas não é através de benefícios fiscais que se resolve o problema do desequilíbrio profundo entre aquilo que é a oferta e a procura.
Vivemos numa época em que o tema do ambiente está cada vez mais ordem do dia e se vê uma preocupação cada vez maior por parte da população nessa matéria. De que forma podem as câmaras municipais combater ou prevenir os principais problemas ambientais da atualidade?
Em primeiro lugar, na recolha e tratamento de resíduos sólidos urbanos. Nós, portuenses, estamos a conseguir chegar aos 30% na separação dos resíduos sólidos, sendo que, dos restantes, nem 1% vai para aterro. Estamos no bom caminho, mas esta é uma das áreas onde temos de ir mais além e investir. E, mais uma vez, tem de ser através de investimento publico, porque, se nós concessionarmos isto a privados, dificilmente conseguiremos motivar um privado a implementar a separação. Isto precisa do apoio de políticas públicas, mas também do comportamento dos cidadãos. Eu não sei se vocês têm esta sensação, mas é quase impossível uma pessoa ir ao supermercado fazer as compras do mês e não comprar uma quantidade absurda de embalagens, sobretudo de plástico. Ou seja, também aqui era preciso fazermos alguma coisa, mas, por muito conscientes que nós sejamos enquanto consumidores, é quase impossível. Também quando encomendamos livros, por exemplo através da Amazon. Um livro encomendado pela Amazon vem numa caixa de cartão que parece uma caixa de pizza; dentro dela, vem um plástico, umas favas de um material qualquer, … – é uma quantidade excessiva de materiais. A produção de detritos, que podem ser ou não recicláveis, continua a ser feita em grande escala. É importante convencer as pessoas de que, na medida do possível, devem tentar diminuir o consumo destas coisas. O que os municípios têm tentado fazer é intervir junto das escolas, porque, curiosamente, os miúdos são os maiores educadores dos adultos em matéria de bons comportamentos. A segunda coisa que podemos fazer é a criação de alguns impactos positivos no ambiente.
Hoje, o maior problema que nós temos no Porto é o problema da habitação
Por exemplo, plantar árvores nas bordas das autoestradas. Outra coisa que podemos fazer, que é a mais importante, é investir na mobilidade. Em Portugal, cerca de 27% dos combustíveis fósseis são consumidos em mobilidade. É aí que nós podemos e devemos fazer a diferença! Todos! Não podemos fazer esta diferença andando de bicicleta ou a pé, porque isso não resolve o problema. Também não se consegue com carros elétricos, porque isso é uma ilusão. Temos de o fazer através de uma nova geração de mobilidade, através do transporte público. Temos de dar condições de competitividade ao transporte publico, baixando o seu custo para o cidadão e garantindo a sua fiabilidade. Foi por isso que assumimos este compromisso de ficar com os transportes públicos. Estamos a falar de investimentos muito elevados, mas é na mobilidade que as políticas municipais e metropolitanas podem fazer mais diferença, e é isso que está a acontecer na Europa. Há dias, eu disse numa assembleia municipal (e deixo-vos aqui esta aposta) que, daqui a 10 anos, na Europa, ninguém pagará um bilhete para andar de metro, de autocarro ou de outro modo de transporte publico. As cidades vão ter de chegar ao ponto de subsidiar, através da sua criação de riqueza, o transporte publico gratuito, porque vai ser a única forma de, nas cidades, combatermos as alterações climáticas e chegarmos aquilo que é o nosso sonho: as emissões de carbono zero. Sem resolvermos o problema da mobilidade, não há qualquer outra forma de o fazer.
Pergunta do público selecionada:
Há pouco, disse que os carros elétricos eram uma ilusão. Queria pedir-lhe se poderia explicar melhor porque pensa isso.
Os carros elétricos vão resolver algumas coisas, principalmente baixando de preço. Não vou fazer considerações sobre o impacto ambiental das baterias nem sobre aquilo que será o fim da vida útil destes automóveis e destas baterias. Não sou especialista nessa matéria e já ouvi várias teorias, pelo que não me quero pronunciar. Mas há uma coisa que vai estar de acordo comigo: em termos de mobilidade, os carros elétricos, relativamente aos carros a gasóleo ou a gasolina não alteram nada. Um carro elétrico ocupa tanto espaço numa rua como um carro a gasolina ou a gasóleo. Quer isto dizer que, se conseguíssemos substituir todos os carros que temos hoje a gasolina ou a gasóleo por carros elétricos num estalar de dedos, o problema da mobilidade, amanhã, seria exatamente o mesmo que era ontem. O transporte público é sempre muito mais ambientalmente aceitável do que o individual, mas, na medida em que não vai buscar cada um de nós a sua casa, a solução para ele ser mais competitivo é ter uma velocidade comercial melhor e ser gratuito. A velocidade comercial da STCP, em algumas zonas da cidade, é de 7 km/h. Se nós conseguirmos melhorar essa velocidade para 20 km/h, um conjunto assinalável de pessoas que hoje não usam o transporte público já não terão o problema de andar cinco minutos até à paragem de autocarro, porque esses cinco minutos serão depois recuperados pela velocidade do autocarro. Portanto, parece-me que o transporte individual de passageiros, não resolvendo o problema da mobilidade, impede também que seja resolvido o problema da apropriação do espaço público.
O transporte público é sempre muito mais ambientalmente aceitável do que o individual
No fundo, é uma pena chegarmos a uma rua e observarmos que, dos dois lados, estão carros estacionados. Se calhar, aquele espaço era muito melhor para outros fins. Isso, com o transporte individual por si, não é possível: seja o carro elétrico, o carro a pedais, o carro que for! O espaço público é escasso, e isso é particularmente visível numa cidade como o Porto. Assim, gostaria que o transporte fosse gerido de uma forma que resolvesse ou compensasse essa escassez. Eu acho que, a par de andar a pé, de bicicleta ou de trotineta, o transporte público, apesar de tudo, é mais eficiente do que o transporte individual.