Sofia Condez Alves
Também incluído no FEPIANO Especial 25 de abril, publicado em Abril de 2024
O calendário marcava 25 de abril de 1974. Para o mero estudante da Universidade do Porto, adivinhavase um dia como qualquer outro. Para aqueles que vinham das áreas mais distantes, o dia começava cedo, com um despertar antes do nascer do sol para apanhar o comboio em direção à grande cidade. Não era comum ter rádio, ou um estudante mais atento poderia ter reparado nos versos de Paulo de Carvalho presentes na programação das 22 horas do dia anterior. Ou até, se estivesse até tarde a acabar um trabalho, ouvido a voz de José Afonso pouco depois da meia-noite.
No caminho entre a estação e a universidade, ouviam-se murmúrios incertos que levantariam a sobrancelha de qualquer estudante ansioso. Dizia-se que naquele dia as portas da universidade estavam fechadas, que o reitor faltava, e que não haveria aulas. A maioria, tal como Tomé, duvidou desta ideia até que visse com os próprios olhos, podendo ser apenas uma piada infeliz do dia, não sendo até à chegada à faculdade que tais rumores se revelassem verdadeiros. Nos degraus em frente à porta principal, grupos de amigos juntavam-se para ouvir as notícias de que teria havido uma revolução em Lisboa.
“Salgueiro Maia, Delegado de Cavalaria do Movimento das Forças Armadas, teria ido naquela noite ao Quartel do Carmo onde o seu opositor, Marcello Caetano, que se tinha assumido em 1968 como o substituto de Salazar, se escondia.”
Salgueiro Maia, Delegado de Cavalaria do Movimento das Forças Armadas, teria ido naquela noite ao Quartel do Carmo onde o seu opositor, Marcello Caetano, que se tinha assumido em 1968 como o substituto de Salazar, se escondia. Liderado pelo general Spínola, a quem Caetano cedeu a pasta do governo, e por Costa Gomes (a não ser confundido com Gomes da Costa), os seus nomes tornaram-se, naquele dia, conhecimento geral. De facto, eram milhares as pessoas que se juntavam aos protestos pela liberdade, com cartazes que gritavam “Viva o Spínola” ou “Viva o Costa Gomes”, que só não teriam também as suas caras impressas porque os tinteiros já eram caros em 1974.
Os estudantes, como os pensadores do futuro, não pensaram duas vezes em juntar-se à multidão. Viam-se cravos e ouvia-se “Fascismo nunca mais” e “Viva o Stalin”. Não é certo que compreendiam aquilo que gritavam, mas como eles eram os restantes – as Donas de casa que ainda não adivinhavam a sua nova liberdade, as crianças que nunca tinham vivido outra realidade, e qualquer outro coitadinho que encontrassem pelo caminho. Muitos adolescentes da época, agora crescidos, confirmam que só vieram a aprender aquilo pelo que marchavam nos anos seguintes. A Mocidade Portuguesa, onde tinham passado as suas infâncias de calções pelo joelho, e onde tinham conhecido os seus amigos mais próximos, ensinou-lhes a adorar Salazar e a gostar de viver com o pouco que lhes era dado, sendo natural a dificuldade a assimilar as novas ideias que lhes estavam a ser introduzidas.
“Portugal estava agora a lidar com as complexidades da saída de um regime opressivo pelo qual esteve preso durante muito tempo, e a nação enfrentava agora a tarefa de reconstruir o futuro de um país, sem deixar para trás o seu passado.”
Os meses seguintes não foram tão felizes como o dia da revolução. As celebrações foram eventualmente substituídas por preocupações com o futuro do país e reorganizar completamente um Estado em atraso não poderia ser fácil. Portugal estava agora a lidar com as complexidades da saída de um regime opressivo, pelo qual esteve preso durante muito tempo, e a nação enfrentava agora a tarefa de reconstruir o futuro de um país, sem deixar para trás o seu passado. Foram demasiados os que se viram cegos com a sua nova liberdade que há uns dias nem sabiam que tinham. Os protestos de dia 25 passaram a encontros armados e o que tinha sido uma revolução pacífica desencadeou vários problemas com violência. Houve portas de casas a ser transgredidas, janelas destruídas e divisões roubadas. As ações da Comissão dos Trabalhadores exilaram vários empresários, cujas fábricas foram tomadas quando estes eram acusados de serem fachistas em segredo. Nas colónias, reinava a confusão, sendo muitos os portugueses a serem “devolvidos” ao país e exilados da vida que tinham construído.
Para os estudantes universitários, este período de transição permitiu-lhes embarcarem numa jornada de autodescoberta. Estando ainda na flor da idade, tinhase retirado a cortina da janela de possibilidades. De repente, não havia restrições à arte de pensar e os jovens eram convidados a questionar o que os rodeava. Surgiram novas oportunidades para a sua participação cívica e política e estes eram incentivados a se envolverem ativamente na construção de uma sociedade mais justa e democrática. Ainda, o acesso expandido a educação de mais qualidade, com um nível que já podia ser equiparado ao do resto da Europa, para além de novas fontes de informação e de mais tecnologia, permitiu a expansão dos horizontes intelectuais e culturais dos jovens.
Agora, cinquenta anos depois, quem viveu a revolução olha para trás com uma mistura de nostalgia e de gratidão. Neste 25 de abril, “livres habitamos a substância do tempo” (“25 de abril”, Sophia de Mello Breyner), podendo-se ler o que se quiser, ouvir qualquer música ou ver qualquer filme. Zeca Afonso, Paulo de Carvalho, Sophia de Mello Breyner, ou Manuel Alegre já não são nomes temidos, mas nomes celebrados e ensinados. O Dia do Estudante, abolido por Salazar, foi restituído, e o Dia do Trabalhador é valorizado, sendo agora os trabalhadores livres para protestarem pelos seus direitos. As ideologias oprimidas pelo Estado Novo são ouvidas em debates políticos e a liberdade de expressão não tirou a voz aos mais extremistas, mesmo a daqueles que não a apoiam. O sol pôs-se naquele 25 de abril levando consigo anos de opressão, e nasce a cada 25 de abril para relembrar o privilégio do que o povo português já não vive. A Revolução dos Cravos permitiu a Portugal reaprender quem era e o que fazia na Europa, e mostrou que no “depois do adeus”, ao morrer, renasceu (“E Depois do Adeus”, Paulo de Carvalho).
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